Remar contra o aplauso fácil. Dizer o que é
significativo e não conveniente, contra o imediatismo fútil e a dicotomia cega
Ana Paula Henkel
Quem me acompanha há algum
tempo, aqui na Oeste ou em outras plataformas e nas minhas
redes sociais, já deve ter percebido quanto falo do meu pai e quanto ele foi um
norte moral para mim. Homem forte, protetor e um sábio mestre que tive durante
quatro décadas na minha vida. No último 19 de março, Dia de São José, foi
aniversário de morte do meu querido pai. Há nove anos, eu recebia um telefonema
de minha irmã às 5 horas da manhã dizendo que meu melhor amigo tinha nos
deixado. Durante os dias desta semana, dias que apertam o coração de saudade e
são recheados de memórias, “causos” e histórias com o meu velho, algumas
conexões do passado com o presente são inevitáveis.
Quando Margaret Thatcher
chegou ao poder, em 1979, muitos no Ocidente acreditavam que a Guerra Fria não
podia ser vencida. Quando ela deixou o cargo, o Muro de Berlim havia caído, e a
Europa Oriental, libertada. Um ano depois, a União Soviética desmoronou no lixo
da História. A democracia e a liberdade estavam avançando, e o mundo assistia
às ações do trio espetacular que deu a maior contribuição para que isso pudesse
acontecer: Thatcher, Ronald Reagan e o papa João Paulo II. E foi com meu pai
que ouvi pela primeira vez os nomes desses líderes históricos. As conversas que
tivemos durante décadas sobre esses ícones mundiais que mudaram o curso da
humanidade são um legado preciosíssimo que tenho comigo.
Foi também graças a meu pai
que aprendi quem eram J. R. Guzzo e Augusto Nunes. As revistas semanais para as
quais esses dois mestres escreviam chegavam religiosamente toda sexta-feira em
casa. Antes de qualquer notícia, meu pai se sentava à mesa da cozinha e
folheava o exemplar rapidamente para chegar aos artigos de Guzzo e Augusto. Do
quarto, era possível ouvi-lo de vez quando falando com si mesmo, ou quem sabe
com os colunistas, com seu delicioso sotaque mineiro: “Mas o que isso minha
gente…”. Bastava minha mãe aparecer na cozinha e ele dizia para ela como se
estivesse oferecendo um doce irresistível: “Senta aqui, Maria. Você precisa ler
o Guzzo hoje!”
Meu pai foi professor e
diretor de escola por muitos anos e, para tocar em temas controversos e
importantes que precisavam ser debatidos com professores em algum momento na
semana, a tática era infalível e sem o menor confronto: os artigos de Augusto
Nunes e Guzzo eram “despretensiosamente” deixados abertos na mesa do cafezinho
da sala dos professores. Em pouco tempo, o assunto eram os textos, com
importantes pontos para a visão liberal que meu pai sempre teve, mas que às
vezes encontrava resistência em alguns professores.
Os anos se passaram, a menina do interior de Lavras, Minas Gerais, cresceu, conheceu o mundo jogando uma penca de campeonatos de vôlei, ganhou algumas medalhas e outra penca de amigos maravilhosos e, sempre que voltava para descansar dos longos torneios, passava horas falando sobre política com o pai, que guardava religiosamente as revistas semanais para alimentar boas resenhas. A compreensão de alguns assuntos levava tempo, eu era uma adolescente. Mas, paralelamente ao esporte, posso dizer que meu entendimento sobre política, economia e comportamento foi alimentado durante muitos anos por três grandes mestres: meu pai, J. R. Guzzo e Augusto Nunes. Embora eles não soubessem, a união desses três homens e suas palavras me socorreu em muitos questionamentos ao longo dos anos.
E por que essa volta ao
passado nestes primeiros parágrafos? Porque exatamente nesta semana, quando o
coração aperta de saudade de meu pai e de tudo o que ele significou para mim,
a Oeste comemora um ano de vida. E é aqui, depois de anos
dedicados ao esporte profissional e mais alguns estudando — tarefa que jamais
cessará na vida —, que vivo atualmente o que muitos matemáticos, como meu pai,
chamariam de probabilidade raríssima.
Parece que foi ontem que
Augusto e Guzzo me convidaram para um jantar em São Paulo por ocasião de minha
visita ao Brasil. Como já éramos amigos e havíamos nos encontrado em outras
ocasiões, fiquei feliz em vê-los novamente. Para minha surpresa, a conversa na
ocasião era sobre um projeto que estava prestes a nascer — a Revista Oeste —
e o interesse em que eu fizesse parte dele. Curiosamente, em uma daquelas
sacadas do destino (algo como “se liguem aí embaixo que estamos conectando tudo
aqui de cima!”), naquela noite em particular, eu havia levado dois presentes
para meus dois mestres, dois livros sobre a vida de Ronald Reagan e seu legado
de coragem na defesa da liberdade.
A conversa se estendeu por
horas. Falamos de governos, liberdades, Thomas Sowell, Churchill, Thatcher,
John Adams… e, claro, Reagan. Quatro horas se passaram e o projeto ao qual eles
se referiam não apenas parecia um sonho, mas toda aquela noite parecia o rolo
de um filme bom em câmera lenta. Algumas vezes imaginei meu pai ali, sentado
com a gente e conversando sobre assuntos que ninguém imaginava que ele sabia,
um homem simples do interior apaixonado pelo campo, que falava sobre Edmund
Burke e Russell Kirk.
Quando os garçons começaram a
colocar as cadeiras em cima das mesas e a conta chegou, mestre Guzzo então se
voltou para mim e disse: “Querida Ana, então pense com carinho na proposta,
veja se você quer fazer parte desse projeto. Escreveremos sobre tudo o que
falamos hoje e que sempre estamos trazendo à luz do dia: a liberdade em várias
esferas”. Augusto e Guzzo já conheciam a relação que meu pai tinha com seus
textos e artigos; então, com dificuldade em encontrar as palavras para
descrever aquele jantar, respondi imediatamente: “Mestre Guzzo, não preciso de
tempo algum para pensar. Meu pai me trouxe até aqui, até vocês, tenho certeza.
Será uma grande honra fazer parte desse time”.
A coragem para derrubar muros e defender a liberdade em várias esferas
Los Angeles chegou num piscar
de olhos e, nos Jogos de 1984, o vôlei masculino brasileiro brilhou com a
medalha de prata e eu devorei cada segundo de cada jogo. Anos mais tarde, eu
estaria participando de uma Olimpíada, levando uma medalha de bronze para casa,
tendo como técnico um dos ídolos daquela geração de 1984 que eu, aos 12 anos de
idade, acompanhei pela TV. Nem em meus sonhos mais profundos poderia imaginar
isso como realidade.
E foi então que, mesmo depois
de encerrar a carreira no esporte, a sensação de classificação para mais uma
Olimpíada voltou. Dessa vez, a convocação havia sido feita na mesa de um
restaurante. O mesmo frio na barriga, o mesmo peso bom da responsabilidade de
representar um país, um ideal, a mesma seriedade na dedicação da rotina diária,
as noites sem dormir. Tudo de novo, e tudo muito bom. A vida é cíclica e, às
vezes, os ciclos se entrelaçam e esboçam que a próxima tela terá as mesmas
tintas, mas será um quadro totalmente diferente.
Há um paralelo invisível, mas
profundamente similar entre o passado de atleta olímpica e o que vivemos aqui
na Oeste. E esse paralelo não é apenas de minha parte. Depois da
honra do convite de nosso mestre Guzzo, quando pude conversar ao longo de todo
este primeiro ano com vários profissionais da revista, como meu incrível editor
Kaíke Nanne com quem discuto ideias toda semana, foi inevitável pensar que mais
uma Olimpíada estava à minha frente, apenas pelo incrível nível de
comprometimento, seriedade e dedicação de cada membro da equipe.
Mas aqui, na Oeste,
há muito mais similaridades com o esporte olímpico do que as pessoas imaginam.
Quando me perguntam algum “segredo”, algo que possa ter feito a diferença, para
que eu conseguisse competir em quatro Olimpíadas, volto às lições do meu velho.
A sabedoria de se colocar perto de pessoas melhores que você, indivíduos que o
empurrarão para o seu melhor, que possam tirá-lo da zona de conforto e fazer
crescer, que possam lhe apresentar o medo para que você encontre e revele sua
coragem.
Quando iniciamos o projeto
da Oeste, foi solicitado que enviássemos um vídeo curto com algumas
palavras sobre o que pensamos acerca da civilização ocidental, o Oeste.
Aqui, repito o que disse em meu vídeo: que a proposta da revista é enaltecer,
proteger e reafirmar o valor da liberdade, elemento que sustenta pilares
sólidos de nações prósperas. Sem ela, não há imprensa, não há boas ideias, não
há crescimento econômico.
Em tempos estranhos, com
liberdades sendo cerceadas todos os dias, dê uma chegadinha ali no YouTube e
assista ao inesquecível discurso de Reagan no Portão de Brandemburgo, em
Berlim, quando disse a inspiradora frase: “Mr. Gorbachev, tear down this
wall!” (Senhor Gorbachev, derrube esse muro!).
Por essa razão, a defesa moral
do que é certo, Reagan inspirou e ainda inspira milhões. Foi também por essa
razão que a Oeste nasceu. Os tempos, bastante estranhos
trazidos por uma pandemia que colocou máscaras no mundo e arrancou outras
tantas na esfera política e intelectual, pedem uma vigília bem mais atenta; do
zelo para com a vida humana ao cuidado com a frágil economia, até a necessária
e incansável defesa de nossos direitos constitucionais, constantemente
usurpados.
E a Oeste é
isso. A coragem para remar contra o aplauso fácil. A coragem para dizer o que é
significativo e não conveniente. A coragem contra o imediatismo fútil, contra a
dicotomia cega. A coragem para defender políticas e não políticos. A coragem
para derrubar muros e defender a liberdade em várias esferas.
Há uma máxima aristotélica
segundo a qual a coragem é a primeira das qualidades humanas porque garante
todas as outras. A Oeste é Reagan, é Burke, é Churchill, é
Thatcher, é Sowell… e, antes de tudo, é Aristóteles.
Título e Texto: Ana Paula
Henkel, revista Oeste, nº 53, 26-3-2021
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