sábado, 27 de março de 2021

A coragem como bússola

Remar contra o aplauso fácil. Dizer o que é significativo e não conveniente, contra o imediatismo fútil e a dicotomia cega


Ana Paula Henkel

Quem me acompanha há algum tempo, aqui na Oeste ou em outras plataformas e nas minhas redes sociais, já deve ter percebido quanto falo do meu pai e quanto ele foi um norte moral para mim. Homem forte, protetor e um sábio mestre que tive durante quatro décadas na minha vida. No último 19 de março, Dia de São José, foi aniversário de morte do meu querido pai. Há nove anos, eu recebia um telefonema de minha irmã às 5 horas da manhã dizendo que meu melhor amigo tinha nos deixado. Durante os dias desta semana, dias que apertam o coração de saudade e são recheados de memórias, “causos” e histórias com o meu velho, algumas conexões do passado com o presente são inevitáveis.

Quando Margaret Thatcher chegou ao poder, em 1979, muitos no Ocidente acreditavam que a Guerra Fria não podia ser vencida. Quando ela deixou o cargo, o Muro de Berlim havia caído, e a Europa Oriental, libertada. Um ano depois, a União Soviética desmoronou no lixo da História. A democracia e a liberdade estavam avançando, e o mundo assistia às ações do trio espetacular que deu a maior contribuição para que isso pudesse acontecer: Thatcher, Ronald Reagan e o papa João Paulo II. E foi com meu pai que ouvi pela primeira vez os nomes desses líderes históricos. As conversas que tivemos durante décadas sobre esses ícones mundiais que mudaram o curso da humanidade são um legado preciosíssimo que tenho comigo.

Foi também graças a meu pai que aprendi quem eram J. R. Guzzo e Augusto Nunes. As revistas semanais para as quais esses dois mestres escreviam chegavam religiosamente toda sexta-feira em casa. Antes de qualquer notícia, meu pai se sentava à mesa da cozinha e folheava o exemplar rapidamente para chegar aos artigos de Guzzo e Augusto. Do quarto, era possível ouvi-lo de vez quando falando com si mesmo, ou quem sabe com os colunistas, com seu delicioso sotaque mineiro: “Mas o que isso minha gente…”. Bastava minha mãe aparecer na cozinha e ele dizia para ela como se estivesse oferecendo um doce irresistível: “Senta aqui, Maria. Você precisa ler o Guzzo hoje!”

Meu pai foi professor e diretor de escola por muitos anos e, para tocar em temas controversos e importantes que precisavam ser debatidos com professores em algum momento na semana, a tática era infalível e sem o menor confronto: os artigos de Augusto Nunes e Guzzo eram “despretensiosamente” deixados abertos na mesa do cafezinho da sala dos professores. Em pouco tempo, o assunto eram os textos, com importantes pontos para a visão liberal que meu pai sempre teve, mas que às vezes encontrava resistência em alguns professores.

Os anos se passaram, a menina do interior de Lavras, Minas Gerais, cresceu, conheceu o mundo jogando uma penca de campeonatos de vôlei, ganhou algumas medalhas e outra penca de amigos maravilhosos e, sempre que voltava para descansar dos longos torneios, passava horas falando sobre política com o pai, que guardava religiosamente as revistas semanais para alimentar boas resenhas. A compreensão de alguns assuntos levava tempo, eu era uma adolescente. Mas, paralelamente ao esporte, posso dizer que meu entendimento sobre política, economia e comportamento foi alimentado durante muitos anos por três grandes mestres: meu pai, J. R. Guzzo e Augusto Nunes. Embora eles não soubessem, a união desses três homens e suas palavras me socorreu em muitos questionamentos ao longo dos anos.

E por que essa volta ao passado nestes primeiros parágrafos? Porque exatamente nesta semana, quando o coração aperta de saudade de meu pai e de tudo o que ele significou para mim, a Oeste comemora um ano de vida. E é aqui, depois de anos dedicados ao esporte profissional e mais alguns estudando — tarefa que jamais cessará na vida —, que vivo atualmente o que muitos matemáticos, como meu pai, chamariam de probabilidade raríssima.

Parece que foi ontem que Augusto e Guzzo me convidaram para um jantar em São Paulo por ocasião de minha visita ao Brasil. Como já éramos amigos e havíamos nos encontrado em outras ocasiões, fiquei feliz em vê-los novamente. Para minha surpresa, a conversa na ocasião era sobre um projeto que estava prestes a nascer — a Revista Oeste — e o interesse em que eu fizesse parte dele. Curiosamente, em uma daquelas sacadas do destino (algo como “se liguem aí embaixo que estamos conectando tudo aqui de cima!”), naquela noite em particular, eu havia levado dois presentes para meus dois mestres, dois livros sobre a vida de Ronald Reagan e seu legado de coragem na defesa da liberdade.

A conversa se estendeu por horas. Falamos de governos, liberdades, Thomas Sowell, Churchill, Thatcher, John Adams… e, claro, Reagan. Quatro horas se passaram e o projeto ao qual eles se referiam não apenas parecia um sonho, mas toda aquela noite parecia o rolo de um filme bom em câmera lenta. Algumas vezes imaginei meu pai ali, sentado com a gente e conversando sobre assuntos que ninguém imaginava que ele sabia, um homem simples do interior apaixonado pelo campo, que falava sobre Edmund Burke e Russell Kirk.

Quando os garçons começaram a colocar as cadeiras em cima das mesas e a conta chegou, mestre Guzzo então se voltou para mim e disse: “Querida Ana, então pense com carinho na proposta, veja se você quer fazer parte desse projeto. Escreveremos sobre tudo o que falamos hoje e que sempre estamos trazendo à luz do dia: a liberdade em várias esferas”. Augusto e Guzzo já conheciam a relação que meu pai tinha com seus textos e artigos; então, com dificuldade em encontrar as palavras para descrever aquele jantar, respondi imediatamente: “Mestre Guzzo, não preciso de tempo algum para pensar. Meu pai me trouxe até aqui, até vocês, tenho certeza. Será uma grande honra fazer parte desse time”.

A coragem para derrubar muros e defender a liberdade em várias esferas

Parte de mais um time. A primeira Olimpíada de que me recordo em detalhes foi a 1980, em Moscou, que teve o ursinho Misha, mascote dos Jogos, chorando na cerimônia de despedida. Lembro-me de ter ficado triste com o término daquelas duas semanas de esportes na TV e com o fato de que teria de esperar mais quatro anos para a próxima Olimpíada.

Los Angeles chegou num piscar de olhos e, nos Jogos de 1984, o vôlei masculino brasileiro brilhou com a medalha de prata e eu devorei cada segundo de cada jogo. Anos mais tarde, eu estaria participando de uma Olimpíada, levando uma medalha de bronze para casa, tendo como técnico um dos ídolos daquela geração de 1984 que eu, aos 12 anos de idade, acompanhei pela TV. Nem em meus sonhos mais profundos poderia imaginar isso como realidade.

E foi então que, mesmo depois de encerrar a carreira no esporte, a sensação de classificação para mais uma Olimpíada voltou. Dessa vez, a convocação havia sido feita na mesa de um restaurante. O mesmo frio na barriga, o mesmo peso bom da responsabilidade de representar um país, um ideal, a mesma seriedade na dedicação da rotina diária, as noites sem dormir. Tudo de novo, e tudo muito bom. A vida é cíclica e, às vezes, os ciclos se entrelaçam e esboçam que a próxima tela terá as mesmas tintas, mas será um quadro totalmente diferente.

Há um paralelo invisível, mas profundamente similar entre o passado de atleta olímpica e o que vivemos aqui na Oeste. E esse paralelo não é apenas de minha parte. Depois da honra do convite de nosso mestre Guzzo, quando pude conversar ao longo de todo este primeiro ano com vários profissionais da revista, como meu incrível editor Kaíke Nanne com quem discuto ideias toda semana, foi inevitável pensar que mais uma Olimpíada estava à minha frente, apenas pelo incrível nível de comprometimento, seriedade e dedicação de cada membro da equipe.

Mas aqui, na Oeste, há muito mais similaridades com o esporte olímpico do que as pessoas imaginam. Quando me perguntam algum “segredo”, algo que possa ter feito a diferença, para que eu conseguisse competir em quatro Olimpíadas, volto às lições do meu velho. A sabedoria de se colocar perto de pessoas melhores que você, indivíduos que o empurrarão para o seu melhor, que possam tirá-lo da zona de conforto e fazer crescer, que possam lhe apresentar o medo para que você encontre e revele sua coragem.

Quando iniciamos o projeto da Oeste, foi solicitado que enviássemos um vídeo curto com algumas palavras sobre o que pensamos acerca da civilização ocidental, o Oeste. Aqui, repito o que disse em meu vídeo: que a proposta da revista é enaltecer, proteger e reafirmar o valor da liberdade, elemento que sustenta pilares sólidos de nações prósperas. Sem ela, não há imprensa, não há boas ideias, não há crescimento econômico.

Em tempos estranhos, com liberdades sendo cerceadas todos os dias, dê uma chegadinha ali no YouTube e assista ao inesquecível discurso de Reagan no Portão de Brandemburgo, em Berlim, quando disse a inspiradora frase: “Mr. Gorbachev, tear down this wall!” (Senhor Gorbachev, derrube esse muro!).

Por essa razão, a defesa moral do que é certo, Reagan inspirou e ainda inspira milhões. Foi também por essa razão que a Oeste nasceu. Os tempos, bastante estranhos trazidos por uma pandemia que colocou máscaras no mundo e arrancou outras tantas na esfera política e intelectual, pedem uma vigília bem mais atenta; do zelo para com a vida humana ao cuidado com a frágil economia, até a necessária e incansável defesa de nossos direitos constitucionais, constantemente usurpados.

E a Oeste é isso. A coragem para remar contra o aplauso fácil. A coragem para dizer o que é significativo e não conveniente. A coragem contra o imediatismo fútil, contra a dicotomia cega. A coragem para defender políticas e não políticos. A coragem para derrubar muros e defender a liberdade em várias esferas.

Há uma máxima aristotélica segundo a qual a coragem é a primeira das qualidades humanas porque garante todas as outras. A Oeste é Reagan, é Burke, é Churchill, é Thatcher, é Sowell… e, antes de tudo, é Aristóteles.

Título e Texto: Ana Paula Henkel, revista Oeste, nº 53, 26-3-2021

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