Do ponto de vista político, para todos os efeitos, a principal Corte de Justiça do país passou a ser propriedade privada de Lula. Que raio de 'ordem constitucional' é essa?
J. R. Guzzo
O Brasil está vivendo numa
situação de desordem. De um lado, por conta da pior epidemia de sua história,
foi paralisado por governadores e prefeitos que ganharam poderes de ditador —
como acontecia na América Central ou em algum fundão da África, onde os
golpistas derrubam o governo, ocupam o palácio e tomam a central de energia
elétrica. De outro, e aí está o pior da história, todo o sistema de leis entrou
em colapso; parou de funcionar como um conjunto organizado, lógico e previsível
de direitos e obrigações, e foi substituído por uma junta civil de onze
juízes-advogados que aboliu a Constituição, anulou as funções dos Poderes
Executivo e Legislativo, e hoje decide o que o cidadão brasileiro pode, não
pode e é obrigado a fazer.
O desmanche da economia, das
liberdades individuais e da vida social do Brasil, comandado pelas “autoridades
locais” e por seus comitês de “cientistas”, deve durar enquanto durar a covid.
A baderna instalada na sociedade brasileira pelo Supremo Tribunal Federal já
são outros 500. Os ministros governam por default, como se diz.
Perceberam que o Legislativo, de um lado, se pôs de joelhos diante deles — mais
de um terço dos seus integrantes tem processos penais nas costas e estão no
Congresso para se esconder da polícia; só o STF pode lhes causar problemas, e
ninguém ali quer problema. Já sabem, de outro lado, que têm diante de si um
Executivo frouxo, derrotado, sem músculos, sem energia e sem cérebro — incapaz
de reagir às agressões que recebe o tempo todo dos ministros e incapaz,
sobretudo, de defender as convicções dos seus próprios eleitores. O STF, assim,
não tem nenhum motivo para mandar menos. É óbvio que só vai mandar mais.
O último surto dessa ditadura de Terceiro Mundo com pose de “sociedade civil” e roupa de lorde inglês foi um insulto em duas fases aos cidadãos que cumprem a lei e pagam os seus impostos, e mesmo aos que não pagam nada. Num primeiro momento, o ministro Edson Fachin anulou de uma vez só todas as quatro ações penais que envolvem o ex-presidente Lula, inclusive sua condenação por corrupção e lavagem de dinheiro em terceira e última instância. O ministro não deu um pio sobre provas, culpa, confissões ou qualquer outra coisa que tenha a ver com um processo criminal; apenas disse que Lula tinha de ser processado em outro lugar, e por isso as sentenças de condenação assinadas por nove magistrados não valem mais nada. Mas o STF achou que só isso não bastava: além de premiar o réu, decidiu que também tinha de condenar o juiz. Num segundo momento, então, a ministra Cármen Lúcia acrescentou a avacalhação ao desastre: declarou o juiz Sergio Moro “suspeito” — com base em informações obtidas por meio de crime — de ter sido parcial na primeira das nove sentenças de condenação. Não apenas Lula não tem culpa de nada; agora, o culpado é o juiz que mandou o chefe supremo para o xadrez. Do ponto de vista político, para todos os efeitos, a principal Corte de Justiça do país passou a ser sua propriedade privada.
Que raio de “ordem
constitucional” é essa? O STF, tudo de uma vez só, endossa o “toque de
recolher” imposto pelos governadores — medida que poderia ser decretada
unicamente em estado de sítio. Não existe estado de sítio no Brasil, mesmo
porque só o presidente da República, pela Constituição, tem o direito de
decretar uma providência assim; mas o STF não toma conhecimento dessa
deformidade.
Os ministros prendem um
deputado, sem ter nenhum direito a isso; ao mesmo tempo, conduzem há mais de um
ano um inquérito perfeitamente ilegal contra seus inimigos, com censura à
imprensa e prisão de jornalistas. Anulam leis votadas de maneira legítima pelo
Congresso. Declaram nulos decretos do presidente da República. Proíbem a
polícia de voar de helicóptero sobre as favelas do Rio de Janeiro. Vetam a
nomeação de funcionários de primeiro escalão do Executivo. Anulam por motivos
políticos, como fizeram neste caso de dupla proteção a Lula, processos que
correm legalmente na Justiça. Atendem, de maneira quase automática, a petições
de partidos políticos de esquerda que perdem votações no plenário do Congresso.
O STF não está mais
funcionando, nem por aproximação, como uma Corte constitucional — o que poderia
ter a ver com a Constituição, por exemplo, a alteração de menos de 0,1% na área
de um parque nacional, que a Câmara aprovou e o STF anulou? Também não está
funcionando como um tribunal de Justiça comum. Está governando — e está
governando em favor de uma orientação política e partidária muito bem definida.
As mentes civilizadas fazem de conta que o STF é neutro. Como assim, “neutro”?
Oito dos seus onze ministros foram escolhidos justamente pelos dois governos
mais corruptos da História do Brasil, os de Lula e de Dilma Rousseff — são, ao
mesmo tempo, os mais beneficiados pelo “salva ladrão” geral que vem marcando
sistematicamente as decisões penais do tribunal. Como seria possível esperar
imparcialidade de um órgão composto de nomeações puramente políticas? Isso não
sai nunca a preço de custo para o público pagante. Basta ver as decisões de
cada um dos onze. Quem está ganhando?
Os ministros vivem numa atmosfera de anestesia moral permanente
É curioso. O STF diz que
Sergio Moro é “suspeito”. E ele mesmo, o STF, não é suspeito de nada? Além de
todas as suas outras aberrações, o tribunal vem funcionando, há anos, como um
escritório de advocacia para ladrões milionários, sejam eles políticos ou não.
E o beneficiado não é apenas o PT, nem de longe — nesse mesmo bonde estão o
alto almirantado do PSDB, o centrão mais extremo e tudo aquilo que, de um jeito
ou de outro, consegue roubar alguma coisa de algum cofre do governo. A
propósito, o ministro Gilmar Mendes, o principal inimigo do juiz Sergio Moro e
das investigações antiladroagem da Operação Lava Jato, achou que deveria fazer,
sem ninguém lhe pedir, um elogio público aos advogados de defesa de Lula. Ou
seja, não ficou contente só em condenar o juiz que condenou Lula — também pisou
em cima. Esse é o “garantismo” que existe no STF real; o que se garante, mesmo,
é o atendimento dos desejos, ideias e interesses pessoais dos ministros, dos
seus amigos e dos amigos dos amigos.
Nesse último episódio, como se
sabe, a ministra Cármen tomou a espantosa decisão de mudar o voto que ela
própria tinha dado tempos atrás sobre o mesmíssimo assunto; decidira, então,
que o juiz Sergio Moro não era suspeito de coisa nenhuma. Mas agora, sem que
tenha acontecido rigorosamente nada de novo, e depois de ter “conversado muito
com o ministro Gilmar Mendes”, resolveu atender o atual chefe da facção
pró-Lula do STF e voltou atrás; disse que o seu primeiro voto não valia mais, e
veio com um segundo exatamente ao contrário, este a favor do ex-presidente e
contra o juiz que o mandou para a cadeia. Não há sustentação nenhuma para o que
Cármen fez, nem do ponto de vista jurídico, nem do ponto de vista lógico, nem
do ponto de vista da honradez; na verdade, como lembrou a advogada e deputada
estadual Janaina Paschoal, poderia ser enquadrada em crime de responsabilidade
— se o STF, é claro, não mantivesse as leis do país, o tempo todo, em estado de
morte cerebral. A conduta de Cármen, em todo caso, combina perfeitamente com a
atmosfera de anestesia moral permanente em que vivem hoje os ministros do
tribunal.
O STF, pelas decisões que
tomou nos últimos anos, transformou-se na maior ameaça à segurança jurídica no
Brasil em que vivemos; como em qualquer país subdesenvolvido, aqui a mesma lei
é diferente a cada vez que é aplicada pelo STF, e vai sempre na direção daquilo
que os ministros estão querendo no momento. Tudo serve, nada é previsível. O
cidadão, como resultado, está sempre inseguro: nunca sabe o que vão resolver, e
nunca consegue se sentir protegido pela lei. A decisão de Cármen levou o STF a
novos patamares de insegurança jurídica; é como se tivesse dobrado a aposta.
Trata-se de insegurança jurídica direto na veia — o que pode haver de mais
inquietante que um ministro do Supremo que muda uma decisão já tomada por ele
mesmo? Se nem o próprio voto de um ministro vale mais nada, podendo ser trocado
como um boné de praia, então o que está valendo? Se isso não é insegurança,
então o que poderia ser?
O fato é que esse tipo de
atitude não é novidade, levando-se em conta a qualidade individual dos
integrantes do STF. Só é compreensível falar um pouco mais da ministra Cármen,
aliás, porque foi ela a última a vir para o noticiário por conta do que fez;
normalmente, o mais prático é ignorar que existe. Cármen Lúcia é uma pessoa
pequena. Nunca se destacou em nada. Tem a firmeza ética de uma gelatina de
segunda linha. Sua contribuição à ciência jurídica é igual a três vezes zero;
como ocorre com seus colegas, nunca produziu em sua atividade profissional mais
do que uma turva aglomeração de palavras repetidas, copiadas, mal pensadas e
mal escritas. Até algum tempo atrás, Cármen tinha posições contrárias a Lula e
à corrupção porque tinha medo do que poderiam fazer os militares; havia uns
ruídos, aqui e ali, de que eles estariam insatisfeitos com a impunidade dos
ladrões. Mas o tempo passou, os militares nunca saíram de onde estiveram e a
estática sumiu; quando a ministra perdeu o medo, trocou de voto e de lado.
(Essas coisas não acontecem só com ela: a coragem pessoal jamais trouxe algum
problema para os atuais ministros do STF.)
Se tudo isso já não fosse mais
do que desastroso do ponto de vista da estabilidade legal, ainda sobra uma
pergunta: se o STF é tão “garantista” que exige o cumprimento rigorosíssimo da
lei nos mínimos detalhes quando se trata dos direitos dos réus, por que esse
mesmo STF admite como válidas informações obtidas por meio da prática de
crimes? Foi o que aconteceu no processo em que Moro foi condenado. Que raio de
“garantia” ao cumprimento da lei existe numa coisa dessas? O tribunal não só
admitiu como “provas” contra Moro gravações criminosas de conversas
telefônicas; baseou unicamente nelas a sua decisão. E a lei? Não está escrito
ali que qualquer elemento obtido de forma ilegal não pode jamais servir de
“prova” para coisa nenhuma? Está. Mas a lei, hoje, não é o que está escrito; é
apenas aquilo que os ministros querem neste ou naquele momento.
A conduta atual do STF produz
um Brasil cada vez mais subdesenvolvido, mais pobre, mais desigual, com menos
oportunidades para todos, menos progresso, menos produção e menos esperança. É
uma receita acabada de falência.
Título e Texto: J. R. Guzzo,
revista Oeste, nº 53, 26-3-2021
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