A “ciência” viu-se apropriada por devotos da virologia de veterinários, da fancaria das TVs e da hipocondria do inquilino de Belém. Isto é, por místicos que não fazem a mínima ideia do que é a ciência
Alberto Gonçalves
Antes da Covid, o “argumento” mais revelador da falta de argumentos e de neurónios de quem o utilizava era o da Rennie. Quando alguém confrontava um palerma com alguma coisa que lhe desagradasse, o palerma respondia imediatamente: “Toma Rennie que isso passa”, e a seguir retirava-se triunfante e seguro de que ganhara o debate.
Num país cujo serviço de saúde
não colapsasse à primeira oportunidade, o palerma ganharia a avaliação de uma
junta de psiquiatras, mas esse é outro ponto. Aqui, o ponto é o recuso ao
refluxo gástrico, vulgo azia, para encerrar uma discussão. Às vezes, o
Kompensan substituía a Rennie, embora não houvesse massa encefálica que
substituísse o ar morno na caixa craniana dessa gente. Bons tempos.
Em tempos de Covid, e contra
todas as expectativas, o nível da “argumentação” conseguiu baixar. Hoje, a
turba indistinta do “fique em casa”, do “confinamento” eterno e das máscaras
permanentes é tão desprovida de razão que faz o pessoal da Rennie parecer
sofisticado por comparação. O caso é particularmente irónico na medida em que,
no lugar dos antiácidos, a nova estirpe de magos da retórica invoca a ciência.
Ou melhor, aquilo que julga ser ciência, na verdade umas curvas estatísticas
apresentadas em reuniões no Infarmed por matemáticos e veterinários desejosos
de agradar ao governo.
Não importa que as curvas
sejam inúteis a descrever o presente e desastrosas a prever o futuro. Não
importa que ninguém perceba a sensatez de trucidar uma economia débil a partir
de curvas mal amanhadas. E não importa que as curvas se limitem a confirmar as
conclusões previamente tomadas pelo dr. Costa e pelo prof. Marcelo: manter os
cidadãos em clausura parcial, rebentar com a iniciativa privada e produzir mais
dependência face ao Estado e às quadrilhas que o controlam.
Importa que, na cabeça dos
tontos, as curvas e as desumanas restrições que delas “decorrem” são “ciência”.
E importa sobretudo que, armados com solenidade “científica”, os tontos se
sentem habilitados a insultar e perseguir quem deles discorda.
Quem sugerir que o estado de emergência não é adequado para lidar com uma doença que quase só afeta gravemente velhos é “negacionista”.
Quem lembrar que teria sido
decente proteger os velhos, em alternativa a prender a população em peso, é
“terraplanista”.
Quem notar que a evolução da
Covid não depende exclusivamente de “confinamentos” e regras abstrusas é
“medieval”.
Quem inventariar os países e
as regiões em que a falta de “confinamento” e de regras abstrusas coabita com o
decréscimo nos infectados e nos mortos é “conspiracionista”.
Quem insiste em conviver com
familiares e amigos é “bolsonarista”.
Quem repara que o Brasil tem
menos mortos “com” ou “de” Covid do que Portugal é “primitivo”. Quem não
respeita as normas decretadas por governantes que não se dão ao respeito – nem
respeitam as próprias normas – é “fascista”.
Quem questiona a prepotência é
“nazi”.
Quem não sai de casa sem se
disfarçar de iraniana ou assaltante de bancos é “antissocial”.
Quem não reduz a vastidão do
universo a um vírus é “inconsciente”.
Quem recorda que a existência
implica sempre riscos é “criminoso”.
Quem previne que esta demência
coletiva terá consequências muito feias para todos, exceto para os
irresponsáveis que a provocaram, é “assassino” e indigno de merecer o
proverbial ventilador no dia em que precisar de um.
Estamos nisto. É,
literalmente, o mundo ao contrário. De repente, a “ciência” viu-se apropriada
por devotos da virologia de veterinários, da fancaria dos telejornais e da
hipocondria do inquilino de Belém.
Ou seja, por místicos que não
fazem a mínima ideia do que é a ciência. Boa parte destes “cientistas”
instantâneos até se diz de esquerda, o que os coloca logo no mesmo campeonato
da credibilidade de astrólogos, cartomantes, homeopatas e cultores do Feng
Shui. Muitos não sabem ler uma tabela estatística. Muitos são incapazes de
alinhavar uma frase sem dois erros ortográficos e três de sintaxe. Muitos
julgam que Steinmetz é um defesa do Dortmund. Mas nenhum abdica de uma ideia
infantil acerca do que é ciência para fundamentar o seu dogmatismo.
Em circunstâncias normais, não
custaria deixar os fanáticos a berrar sozinhos e assistir de bancada ao
espetáculo. Afinal, há certa graça em ver em ação as principais características
do método científico: a intolerância, a fúria e a vontade de enfiar blasfemos
na cadeia ou na fogueira.
A chatice é que as
circunstâncias não são normais, e estes adeptos do pensamento mágico (sem a
parte do pensamento) não contam apenas com a força da cegueira, que já é
bastante. Para azar dos que prezam a civilização, os fanáticos contam com a
força literal, a dos senhores que legislam alucinações e a da polícia que as
executa.
A boçalidade, enfim, tomou por
completo o poder, através dos que o ocupam e através dos que os apoiam. Salvo
milagre, os fatos estão condenados a subjugar-se a indivíduos que enchem a boca
com ciência como antes a enchiam com liberdade, embora desconheçam a primeira e
detestem a segunda. Terraplanistas, negacionistas e primitivos são eles.
Título e Texto: Alberto
Gonçalves, Observador,
27-3-2021
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