Por todo o lado se fala de um “novo normal” e nesse “novo normal” eu vejo menos liberdade, mais coação, mais polícia, mais abusos, vejo uma vida mais triste, claustrofóbica. Vejo e não gosto nem quero
José Manuel Fernandes
Parece que a culpa é da alínea
k). K, de Kafka. Só pode ser. Ainda se fosse a alínea g), de “gomas”,
talvez se entendesse, ou a alínea s), de “sandes”, era mais razoável. Mas não: o raio da alínea
prescreve “a observância da proibição de consumo de refeições ou produtos à
porta do estabelecimento ou nas suas imediações”, logo o senhor da Lousã que
foi à máquina buscar umas gomas (à máquina, não a um estabelecimento) e o
desgraçado de Torres Novas que levou a sandes para dentro do automóvel (mas
deixou-se ficar por ali), caíram sob a alçada da alínea k). Talvez só
mesmo aquela velhota de Paço d’Arcos que estava a comer um pão mesmo
junto à padaria é que não havia dúvida, alínea k) com ela – mesmo que
a multa possa ter significado o equivalente a uma semana de pensão de velhice.
E assim estamos. À conta desta
e de outras alíneas há gente multada por correr numa praia e operações stop
onde perguntam se vamos às compras, passear o cão ou se, em alternativa, temos
o dever de recolher ao lar. Pior: há um país que aplaude o zelo das autoridades.
Não só acha normal, como bate palmas e pede mais. Um país, eu diria mesmo um
mundo – porque leio jornais, porque vejo televisões, porque estou atento ao que
se passa noutros países – que parece rendido ao poder mais musculado deste
“novo normal” e que parece disposto e tratar como loucos todos os que se
atrevem a discordar. Ou mesmo só a duvidar.
Às vezes interrogo-me
sobre quando foi que tudo isto começou, quando foi que começamos a
habituarmo-nos a menos liberdade? Talvez tenha sido a seguir ao 11 de Setembro.
Eu lembro-me. “Temos de sacrificar algumas liberdades ao nome da nossa
segurança” era o mantra desses dias. Eu próprio defendi essa ideia, citando
Fareed Zakaria que já então previa que “por todo o Mundo veremos os governos
tornarem-se mais poderosos, mais intrusivos e mais importantes”. Não se
enganou. Para garantir a nossa segurança não passaram apenas a dificultar a
entrada nos aviões – também começaram a espalhar câmeras de vigilância um pouco
por todo o lado e a multiplicar as bases de dados.
Quando as redes sociais chegaram, e começamos a partilhar as nossas vidas na internet, encolhemos os ombros: que é que tínhamos a esconder? Quando nos pediram para trazer sempre uma fatura com o nosso número de contribuinte, achámos bem, era por uma boa causa, era para evitar a fuga ao fisco. Quando começamos a usar smartphones com geolocalização não nos preocupamos com a privacidade, pois era, e é, muito mais confortável abrir um navegador e ele ter logo à nossa disposição a lista dos destinos para onde costumamos ir àquela hora. Afinal, para que serve a inteligência artificial senão para nos tornar a vida mais fácil?
E ainda não havia pandemia.
Sem darmos por isso, ou sem nos importarmos, fomos deixando que a Autoridade
Tributária passasse a saber onde almoçamos e jantamos, onde fazemos compras e
onde passamos férias. Sem nos importarmos fomos deixando o nosso rasto
eletrônico por todo o lado, da tão prática Via Verde aos novos passaportes com
reconhecimento facial. Sem que sequer tivéssemos noção disso, os algoritmos que
trabalham em cima das gigantescas bases de dados que alimentamos continuamente
já sabem mais sobre nós do que nós próprios.
A profecia estava a
materializar-se – os governos estavam a tornar-se mais poderosos, mais
intrusivos e mais importantes – mas só longinquamente tínhamos noção de que
isso um dia podia ser perigoso. Na China o número de câmeras de videovigilância
já se conta por centenas de milhões, essas câmeras já têm capacidade de
identificar rostos usando mecanismos de inteligência artificial e o regime já
as utiliza para controlar a população, não apenas os dissidentes, mas para
saber quem merece viajar em 1ª ou 2ª classe por se comportar como um “bom
cidadão”.
“O medo não convive bem com a
liberdade”, escrevia eu há quase 20 anos logo a seguir ao 11 de Setembro, para
argumentar que aquilo que os terroristas pretendiam era precisamente limitar a
nossa liberdade criando um clima de medo. Hoje talvez pudesse antes escrever
que “o vírus não convive bem com a liberdade” pois com o vírus veio um medo
como há muito não sentíamos.
E com o medo veio também a
irracionalidade – e muito menos liberdade.
A primeira coisa que
aprendemos, ou que devíamos ter aprendido, com esta crise é que a ciência não é
feita de certezas, é feita de dúvidas. A mesma ciência que conseguiu o quase
impensável – produzir várias vacinas viáveis e eficazes em menos de um ano,
algo inimaginável antes deste vírus ter colocado à humidade os desafios que
colocou – ainda não é capaz de nos dizer tudo aquilo que gostaríamos de saber
sobre como nos comportarmos para diminuirmos os riscos de contágio.
Demasiados políticos não estiveram à altura das circunstâncias, e mesmo países onde os sistemas de saúde estariam melhor preparados resistiram mal. O melhor indicador para avaliar como os diferentes países se comportaram ainda é o do excesso de mortalidade face a um ano normal, e no “ano Covid” Portugal, como se vê no gráfico abaixo, não fica nada bem no retrato. Nada que surpreenda, mas aparentemente também nada que apoquente em demasia o gentio.
Por cá o que perturbou a paz
dos espíritos foi uma manifestação de “negacionistas” e um juiz “negacionista”.
A gente de bem deste país não descansou enquanto não viu o homem suspenso de funções – a
Justiça desta vez foi célere – e a diligência até mobilizou o diretor-geral da
PSP, sinal de que a pátria estava mesmo em perigo. A figura, de resto assaz
caricata, agradeceu a publicidade, mas todo o alvoroço não mostrou senão como
se invertem facilmente prioridades. Distraímo-nos com isto enquanto somos o
país que detém a presidência da União Europeia, mas onde menos se discute o
porquê do fiasco do programa europeu de vacinação. Por quê? Porventura porque
todos pensam que estaríamos ainda piores se a Europa não tivesse tratado das
compras por nós.
Entretanto as prioridades do
plano de vacinação vão sofrendo tratos de polé, ao sabor dos diferentes grupos
de pressão. Quando é claro, na maior parte dos países da Europa, que o único
critério inquestionável é o da idade, aqui vão introduzindo grupos
profissionais atrás de grupos profissionais, com os nossos octogenários, os
mais vulneráveis, os que já podiam e deviam estar todos ou quase todos
vacinados, a ficar para trás. Tem razão quem alerta que muitos netos acabarão a receber a vacina antes dos avós agora que o grupo de
pressão dos professores levou a melhor e lá os temos, nas escolas, de braço
estendido, a levar a sua picadinha.
Mas tudo isto são
detalhes. Já estamos habituados a ser malgovernados. Já sabemos que faz parte
da nossa natureza a chico-espertice. Já não esperamos muito mais – se é que
esperamos alguma coisa – de um Governo que já nos falhou em quase tudo.
O que me preocupa mesmo é por
todo o lado se fala de um “novo normal” e nesse “novo normal” eu vejo menos
liberdade, mais coação, mais polícia, mais abusos, vejo uma vida mais triste e
claustrofóbica. Vejo e não gosto e não quero.
É verdade: o vírus vai
continuar por aí. Se calhar a vacina diminui o risco, mas não o elimina. É
provável – horror dos horrores – que vamos continuar a morrer de Covid. Como
aliás morremos de inúmeras outras doenças, é a lei da vida. Será que somos
capazes de nos habituar a isso ou, como as crianças superprotegidas que andamos
a criar, no futuro também só vamos querer sair à rua se na rua todos andarem de
máscara?
E a polícia, que se habituou a
tomar simples recomendações como sendo leis para serem cumpridas à risca, e
passou a aplicar multas com galhardia, será que vai voltar à civilidade que
nitidamente dá sinais de estar a perder? Entretanto o sr. Magina já mandou
saber se não houve abuso por parte dos agentes que não deixaram aquele senhor
tomar a sua refeição dentro do carro em Torres Novas? Ou dos que levaram a
idosa de Paço d’Arcos até ao multibanco para garantir que ela pagava logo ali a
multa? Ou ainda está ocupado a responder ao juiz “negacionista”?
Mas é melhor parar que já
estou a ir longe demais. Porventura a pisar o risco. E por isso a correr o
risco de enfurecer os guardiães do templo que acham que não usar máscara é um
delito comparável a conduzir a 200 km/h. Mas quanto a tais figuras, não
duvidemos que Portugal sempre teve os “Dantas” que cada época mereceu.
Título e Texto: José Manuel
Fernandes, Observador,
31-3-2021, 0h12
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