domingo, 18 de abril de 2021

[As danações de Carina] Vida submersa

Carina Bratt

A pequena Maria Rita, de apenas seis anos, ficava de olhos compridos e arregalados, espiando a mãe dando um duro danado, no tanque e nas duas máquinas de lavar roupas. Além das vestimentas de casa, e dos demais afazeres do cotidiano, a sua mãe lavava para fora. Todo santo dia aparecia no portão umas mulheres carregando pesados sacos ou bolsas e, dentro deles, um amontoado sem fim de camisas, calças, saias, blusas, roupas de crianças, de bebês, enfim, o chão de cimento da área de serviço ao lado da cozinha se vestia de cores as mais diversas, como foliões num carnaval fora de época.

Extremamente ativa e pacienciosa, Beti se desdobrava, numa agonia incansável. Separava saco por saco, para não dar problemas, notadamente na hora em que tudo ficava pronto e nos conformes. Sabia, de antemão, se acaso se descuidasse e caísse na burrice de entregar as peças erradas às freguesas que a ela confiavam seus trajes elegantes, certamente perderia os valores que cada uma desembolsava religiosamente em dia.

Maria Rita, parecia entender a situação. A seu modo. Não chorava, não dava trabalho. Ficava ali perto, brincando com suas velhas bonecas, de quando em vez comendo alguma coisa que a mãe trazia correndo. De outra feita, se pegava entretida com o aparelho de televisão do tempo do ronca com os desenhos do Maguila Gorila e o Papa Léguas, seus preferidos.

Maria Rita brincava sozinha, sem a proximidade de outras crianças da sua idade. Os dias entravam tristes e terminavam melancólicos. Vivia, a pequena, uma infância vazia, truncada, sem o alvoroço das gritarias, sem a graça de alguém da sua idade, para dividir a solidão imensa que acordava cedo e se estendia até quase às dezenove horas, quando a mãe dava um basta na situação e se dedicava a cuidar de outros afazeres igualmente importantes.

Nesta hora, desligava as duas máquinas, o ferro de passar, conferia os varais, refazia as peças passadas. Tudo nos conformes, apagava as luzes e partia para uma outra jornada. Preparar o jantar. Logo o seu marido, o Luiz Manoel chegaria da rua, vindo do trabalho de bicicleta, cansado, faminto, e carecia que a última refeição estivesse pronta e na mesa, ou então se recolheria sem colocar alguma coisa que o sustentasse à repetição da rotina do dia seguinte. Da sua residência até o serviço, vinte e oito quilômetros, perfazendo um total de cinquenta e seis.

Saco vazio, não tinha como parar em pé. Maria Rita não sabia deste pormenor. Todavia, entendia que antes de ser colocada no aconchego do berço, ao lado da cama da mãe, ela lhe prepararia uma saborosa mamadeira para que dormisse de barriguinha cheia e sonhasse sonhos dourados de uma criança feliz.

Seu pai, o Luiz Manoel, não se condicionava a lhe dar atenção paternal. Frio, calado, chegava barulhento, tomava um banho demorado, colocava um pijama listrado, e enquanto Beti não lhe chamasse para a mesa posta, o caladão se entretinha a assistir ao jornal em frente a outra televisão que ficava num canto da sala, ao lado de uma cristaleira com as duas portas cujos vidros haviam se quebrado.

Presente de um amigo do serviço, que lhe dera a tranqueira, para desocupar espaço em vista da chegada de uma nova. Luiz Manoel quase não falava. Seco, meio imbecilizado, parecia dar os passos certos e contados dentro da casa, ou seja, ia e vinha somente aonde se fazia necessário. Dirigia à esposa pouca prosa, o mínimo que pudesse de palavras.

A ela, Maria Rita, de quando em vez, grunhia um ‘olá gatinha linda do papai’ destituído, todavia, de emoção, de carinho, ou de qualquer outro vínculo terno que transmitisse um contato mais demorado.

Resumindo, o sujeito se assemelhava a um morto vivo que partira deste mundo e se esquecera de onde ficava o cemitério para se jogar dentro de uma cova aberta e se cobrir com a terra fria. Desta forma, passavam os dias, os meses, os anos e nada mudava, nem para melhor, nem para pior. A vida do casal estancara num desvio lúgubre do destino e nada acontecia que fizesse a rotina pacata deslanchar para melhores perspectivas.

Em espaços distanciados, às vezes, no tardão da noite, Maria Rita, no escondidinho dos seus seis anos, acordava assustada. Enquanto chupava o dedinho, ouvia o pai e a mãe num reboliço incomum sobre a cama barulhenta que dava a impressão de querer se desintegrar em meio a palavras ininteligíveis que ela não entendia coisa alguma. De resto, depois vinha um banho rápido dividido entre os dois e, logo em seguida, tudo mergulhava num torpor imensurável.

Até que, num começo de noite, a mesma hora de sempre, do nada, seu pai Luiz Manoel não retornou do costumeiro da repetição dos hábitos a que ela estava acostumada. Um telefonema inesperado e estranho, fez a Beti atender o celular. Ato contínuo, desligou correndo as máquinas, abandonou as roupas sem serem colocadas nos varais, passou a mão numa bolsa de documentos, juntou a pequena Maria Rita no colo, e voou para o meio da rua.

O destino, um hospital longe de casa, da rua, do bairro. Uma notícia angustiosa, dura de ser digerida, lhe fez as lágrimas cobrirem o rosto mostrando os primeiros sinais de cansaço. Luiz Manoel, seu marido, havia sido atropelado. Um motorista sem carteira, alcoolizado e, em alta velocidade, colheu, em cheio, a bicicleta que o levava e trazia de casa, todos os dias. Beti perdeu o marido tragicamente e, a sua vida, de pior passou a ser mais sacrificada e sobrecarregada.

Passado o impacto da perda, o habitual de sempre voltou aos trilhos. Beti continuou a sua vida inglória e modesta, com as suas lavações de roupas para fora, as mesmas figuras de sempre trazendo peças e mais peças, numa sequência cada vez mais volumosa e acirrada. Luiz Manoel nunca mais voltou. Maria Rita deixou de ouvir o desgastado e repetitivo ‘olá gatinha linda do papai’, e o barulho desordenado em algumas noites, em que a cama fazia, quebrando por algum tempo, a harmonia do seu repouso.

Dos males, o pior, ou dos males, uma coisa boa e edificante surgiu para alegrar a casa, a Beti e, sem dúvida alguma, a Maria Rita. A barriga da sua mãe cresceu, aos poucos. Com os dias subsequentes, se avolumou a olhos vistos. Logo, uma nova vidinha daria o ar da graça e a Beti, não só ela, a casa toda, a Maria Rita, a ausência do Luiz Manoel se faria reiniciada.

Mais que isto, se faria retocada, pujante, opulenta, intensa, efetiva e dadivosa. Beti estava grávida e, mais alguns meses à frente, daria luz à um menino. Um companheiro irmãozinho para fazer parceria à Maria Rita e a alegria ímpar que escorria de seus meigos olhinhos infantis como promessas imorredouras de um porvir que prometia ser melhor do que aquele em que vivia.

Título e Texto: Carina Bratt, do sítio Shangri-La – ES/MG. 18-4-2021

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