terça-feira, 27 de abril de 2021

[Aparecido rasga o verbo] Rotina insana

Aparecido Raimundo de Souza

NAQUELA NOITE, O MENDIGO tiraria a barriga da miséria. Daria trabalho aos cinco ou seis dentes que conseguiram sobreviver inteiros, apesar das cáries que definhavam os demais dentro do ádito deformado, numa rapidez espantosa e fora do normal. Tomaria um bom banho (o último do qual tinha na lembrança, distava de mais ou menos um mês atrás) e trocaria os farrapos por peças menos desgastadas que lhe foram doadas pela comunidade e, com a ajuda de Deus, faria uma boa refeição. Finalmente, a sua barriga se encantaria com um som diferente, que não lembrasse os dias dos roncos intermináveis.

Naquela noite, faria um ajantarado à altura da sua orexia esfomeada. Percebera, ao passar pela fonte luminosa, no parque existente no centro da cidade, que uma porção de gente (notadamente os casaizinhos de namorados que vinham de fora), atirava moedas à água. Além deste dinheiro, os enamorados, de contrapeso, aproveitavam para permutarem, numa sofreguidão incontrolada, trocas incessantes de abraços e carícias. A noite, depois das oito horas, o chafariz ficava ainda maior e encantadoramente mais lindo e acolhedor. 

Parecia um arco-íris com as suas sete cores sobressaindo em meio à algazarra das crianças que brincavam ao seu derredor. Nesta noite, claro, os tons seriam mais chamativos. Estariam recheados de moedas de todos os valores, montantes que seriam aceitos nos botecos e barzinhos existentes naquela localidade distante mais de cento e cinquenta quilômetros da capital paulista. O mendigo esperou que a noite caísse por inteira e, com ela, os casais de pombinhos (os passageiros e os da cidade) fossem embora e as algazarras dos meninos se acomodassem num dormir de sonhos dourados. 

Suportou, por boas horas, as atroadas insolentes da barriga vazia. Clamores de socorro advindos do mais profundo das suas entranhas não o deixavam quieto. Na verdade, lamentações que protestavam  por alguma coisa que não o deixasse somente a ver navios, ou pior, a perscrutar visões animalescas de um prato vazio, todavia, cheio das melhores guloseimas sendo devoradas por sua boca cansada de mastigar algo mais sólido que simples espocares de salivas cheirando a  podridão. Nesta noite, à espera pelo afastamento de todo mundo pareceu ser maior que os demais dias da semana. 

As pessoas custaram, à beça, a se recolherem. Os pequenos se demoraram em acharem seus quartos. Os já casados, as alcovas  propensas à continuidade das blandícias mais desveladas e impetuosas. Até os velhinhos que jogavam damas e cartas nas mesas de granito doadas por uma fabrica sediada na cidade vizinha, igualmente se esqueceram que as horas se faziam favoráveis para sumirem do pedaço e, que na noite seguinte, poderiam recomeçar tudo de novo, sem maiores atropelos. 

Finalmente, a cidadela se aquietou no seu descanso perenal. O marasmo desceu com tudo e sossegou os afoitos e retardatários. Sozinho, no meio do deserto ficado, caminhou com a lentidão da fome negra que o afligia. Andava devagar, em face da fraqueza que o deixava à pele e ossos. Sonhava, todavia, com o que poderia comer. Botar para dentro, se entupir, se empanturrar. Esta noite não se daria ao desplante de só tapear o estômago com restos de comidas deixados aos ócios das lixeiras espalhadas pelas calçadas do ‘Bar e pizzaria Ponto do Bizonhão’. 

Este estabelecimento, o Bizonhão, colado à praça, ficava com as portas escancaradas dia e noite, em face não só dos moradores locais, como, por frentear com a rodovia que cortava a localidade, ou seja, a BR que interligava municípios distintos e populosos, além de ponto obrigatório das paradas dos ônibus de viagens que circulavam indo ou vindo, com passageiros, ora para a capital, ora para outros destinos.

Hoje, antes do relógio da estação de trem assinalar meia noite, ele, o mendigo jogado às traças, o esquecido das moradias de becos e desvãos, teria um jantar magnânimo e, como um rei, em seu castelo imaginário, desfrutaria de uma suculenta especiaria graças as moedinhas que os caminheiros e peregrinos fizeram a fineza de dispensarem à simpática obra de alvenaria e seu imenso manancial de água jorrando em continuidade empolgante. Se achegou, pois, sem mais delongas, à fonte sagrada e, ali, espiou para todas as direções. A paz, de fato, reinava. A caluda se fazia densa e aconchegante. 

A igreja matriz, airosamente acesa, emprestava um quadro bonito de ser visto à paisagem bucólica e sem agitos e embaraços. O indigente estancou. Olhou o bebedouro. Realmente, nenhuma alma viva circulando. Parecia, em face de seus trajes, um doidivanas à porta do paraíso. O Édem glorioso, de fato, estava bem ali, sobre as corredeiras cantantes da bica, jorrando sem sabate, esperando apenas que ele entrasse e recolhesse as moedinhas jogadas para, em seguida, se fartar e, depois, devidamente nutrido e saciado, se recolhesse, pressuroso, à sua aconchegante cama construída com velhas caixas de supermercado. 

Depois de se empanzinar, se recolheria ao lugar de sempre e dormiria à sono solto, alegre, satisfeito e feliz, acolhido e amparado nos afagos e adulações de um opulento resto de noite que logo o receberia, em sua casa improvisada, no alto do coreto onde, em dias de comemorações e datas festivas, a banda da guarnição da Polícia Militar aparecia e tocava as mais variadas, marchinhas que iam das tradicionais carnavalescas aos sucessos que marcaram época nos velhos anos de sessenta, setenta, oitenta e noventa. 

De repente, o silêncio se fez total e pesado. Denso e sepulcral. O desprezado mendigo acordou com várias pessoas estranhas ao seu redor. Dois homens, um de cada lado, o seguravam nos braços, como se tivesse sofrido um súbito desmaio. Lembrou que havia entrado na fonte. Estava com as vestes molhadas. Puxou, num gesto lento, para junto do peito, o saco plástico e sentiu, pelo peso, que ali estavam todas as moedas que lhe fora possível ajuntar. 

Olhou, de novo, para cima e em volta de si. Além de uma dezena de faces indistintas, seguidas de ruídos e rumores babélicos se projetando em seus tímpanos ao mesmo tempo, divisou à tiros de balas de festim, a viatura da polícia, a única da cidade e, ao lado dela, a ambulância com seus faróis ligados e as luzes vermelhas do teto, rodopiando freneticamente em torno do seu próprio eixo. Enxergou o médico que dava plantão no PA local. O que estaria acontecendo? Tentou se levantar empurrando os cidadãos que o detinham. Não conseguiu. Quis perguntar alguma coisa para alguém... Toda aquela multidão que o cercava, entretanto, permaneceu calada, pelo menos no sentido de lhe dar ouvidos. 

Até a sua voz resolveu lhe trair, não saindo em socorro da sua desdita. Carecia entender a situação. A vontade de colocar algo sólido na barriga ainda dava sinais de estar à mil por hora. Olhou em circundante, mais uma vez. Os rostos sisudos e apalermados continuavam grudados nele. Com as moedinhas na sacola de plástico, ele em breve mataria a fome.  A voz do médico do PA local, entretanto, descreveu, para os que ali se achavam ajuntados, à sua decisão final, esclarecendo, em poucas palavras, as dúvidas que pairavam no ar:

— Gente, este infeliz está morto. Empacotou as botas. Nada mais nos resta fazer aqui. Que venha o rabecão!
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, do Sítio Shangri-La - ES/MG, 27-4-2021 


Colunas anteriores: 
Fogo pelos cotovelos 
A parte da história que forma o defunto 
CPI – Com abelhas ou sem, um ‘Mel’ necessário 
Paternidade garantida 
Sempre o tempo... 
Elas são boas assim: nuas e cruas 
O cobrador da geladeira 
E assim, a passos largos, caminhamos para a crucificação encarnada 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-