Os artistas jamais deram cinco minutos do seu tempo para entender um mínimo a respeito dos assuntos sobre os quais têm posições tão extremadas
J. R. Guzzo
Desta vez, os artistas vêm com
exigências extras. Além de acabar com os incêndios na mata, o Brasil tem de se
comprometer também com o respeito aos “direitos humanos” — sem maiores
informações sobre onde e como esses direitos estariam sendo concretamente
desrespeitados no presente momento, e sem revelar quais as providências
objetivas que o governo deveria tomar a propósito. Exigem também, para que
Biden assine o acordo, uma maior participação da “sociedade civil” na questão
amazônica — nada menos que a sociedade civil, em pessoa. Não fica claro, na prática,
quem é essa “sociedade civil”, ou o que ela teria a ver com o assunto.
Querem, enfim, que “os índios” recebam mais proteção e ajuda do poder público. De novo, não se diz o que teria de ser feito, e não se leva em conta que as terras reservadas aos índios no Brasil já somam hoje quase 1.200.000 quilômetros quadrados, ou cerca de 14% de todo o território nacional — isso para uma população de 800.000 pessoas, no máximo, das quais mais de 300.000 vivem em áreas urbanas. Mais de 400 das 700 reservas estão justamente na Amazônia, onde ocupam acima de 20% do território total. Nenhum país tem tanta terra assim para as chamadas populações indígenas. Fazer mais que isso?
Os artistas, aí, estão no
caminho da alucinação. Quais países, entre os 200 que formam o planeta,
poderiam se comprometer com o tipo de coisa que eles estão exigindo? Está certo
que tratem o Brasil como uma republiqueta, até porque não sabem direito o que é
o Brasil — mas há coisas que nem a republiqueta mais ordinária consegue topar.
Dizer o quê? É assim mesmo que uma atriz ou um ator norte-americano funciona,
em condições normais de temperatura e pressão, quando quer se meter com
política. Como suas almas gêmeas das empresas gigantes de tecnologia, que
querem ir morar na Lua e salvar a humanidade de tudo o que desaprovam, trata-se
de milionários à procura do que fazer em benefício do bem universal.
Estão sempre assinando as
mesmas petições, sobre as mesmas coisas: racismo, transgêneros, homofobia,
eliminação do masculino e feminino na linguagem, veganismo, os crimes de
Cristóvão Colombo, liberdade para as crianças escolherem o próprio sexo,
direito dos avestruzes, denúncia da “cultura clássica”, denúncia da “direita”,
denúncia do “lucro” (salvo o próprio), defesa da “mulher”, defesa das “minorias”,
defesa do meio ambiente em outros países, sobretudo no Brasil. Esse último tema
é campeão no bonde de Hollywood e arredores: é um dos mais fáceis, mais baratos
e com retorno mais garantido em termos de cartaz que está disponível hoje em
dia na praça. Que risco você corre falando mal do Brasil, da “destruição da
floresta” e do governo “genocida”? Nenhum; é só lucro, aplauso e dever
cumprido, sem nenhum sacrifício, perante a própria consciência.
O que destrói a Amazônia é a metástase do favelamento em volta das
cidades
Uma das maiores vantagens
desse tipo de atitude é que os artistas não precisam pensar em nada para
assinarem qualquer folha de papel que acham rentável para a sua imagem. Não
precisam e não gostam de pensar: jamais deram cinco minutos do seu tempo para
entender um mínimo a respeito dos assuntos sobre os quais têm posições tão
extremadas. No caso do Brasil, não saberiam dizer se Manaus é a capital de
Buenos Aires, ou se Curitiba é um afluente que desemboca na margem esquerda do
Rio Amazonas; tudo o que sabem sobre as realidades brasileiras é o que lhes
dizem o Greenpeace, a menina Greta e Giselle Bündchen.
Se fizessem um esforço mínimo
para entender um pouco do que estão falando, saberiam o que qualquer pessoa
séria sabe há muito tempo: que o grande inimigo da natureza, do meio ambiente e
do equilíbrio ecológico na floresta amazônica é a miséria. O que destrói a
Amazônia é a metástase do favelamento em volta das cidades. É a falta de
saneamento, de água tratada e de energia elétrica. É a ausência de renda para
os seus 20 milhões de moradores, que obriga muitos deles a qualquer coisa para
sobreviver. É o crime, a desigualdade e a negação de justiça. Saberiam, também,
que é impossível evitar queimadas naturais numa área com mais de 4 milhões de
quilômetros quadrados, ou dez vezes o tamanho da Califórnia. Mas é assim que
trabalha a cabeça dos artistas. Na Califórnia pode ter incêndio, toda hora. Na
Amazônia não pode, nunca.
Supõe-se que o governo
norte-americano, que não nasceu ontem, ouça o que têm a dizer os seus
diplomatas para tomar decisões sobre o tratado, e não se impressione mais do
que o necessário com a espetacular ignorância das suas estrelas — um
terceiro-secretário da Embaixada dos Estados Unidos em Brasília, no fim das
contas, sabe mais sobre as realidades da Amazônia do que todos os artistas da
Netflix somados. É difícil, de qualquer forma, imaginar uma crise de verdade
por causa de um manifesto, ou mesmo por causa da floresta inteira. Os Estados
Unidos foram o primeiro país a estabelecer relações diplomáticas com o Brasil,
em 1808 — ainda no tempo de dom João VI. Foram os primeiros a reconhecer a
independência brasileira, em 1822. Foram os primeiros, enfim, a abrir uma
embaixada em Brasília, em 1960, e ali vêm dando expediente diário nos últimos
61 anos.
Na prática, e na vida real,
essa história toda acaba dando num grande “E daí?”. Não querem acordo? Então
não vai ter acordo. Os Estados Unidos e a Amazônia continuarão a ser exatamente
o que são. A alternativa é jogar uma bomba de hidrogênio em São Gabriel da
Cachoeira — ou de preferência em Brasília, caprichando na pontaria para a coisa
cair bem em cima do Palácio do Planalto. É provavelmente o sonho dos
intelectuais brasileiros que se aliaram ao manifesto dos norte-americanos
contra o seu próprio país. Pensando um pouco, qual a novidade, nisso também?
Agredir o Brasil e os brasileiros é o que eles fazem o tempo todo, a menos que
Lula esteja na Presidência da República — mas aí também não vai haver manifesto
nenhum.
Título e Texto: J. R. Guzzo,
revista Oeste, nº 57, 23-4-2021
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