A liberdade em Portugal não se conquistou só contra o Estado Novo, mas também, em 1975, contra a esquerda militar e os partidos de extrema-esquerda que agora desfilam na Avenida da Liberdade.
Rui Ramos
Parece, no momento em que escrevo, que a Iniciativa Liberal não vai poder desfilar pela Avenida da Liberdade na tarde do dia 25 de Abril. A comissão promotora da marcha não deixa. Houve gente que se indignou, como hoje é costume, mas houve também muita gente que reparou: por que haveria os organizadores da marcha de serem obrigados a aceitar a Iniciativa Liberal? Mais: porque haveria a Iniciativa Liberal de querer juntar-se a essa marcha?
Não é segredo que, desde os
anos 70, essa manifestação em Lisboa é uma iniciativa da esquerda comunista, a
que se foram juntando os conselheiros da revolução, entretanto despedidos pela
revisão constitucional de 1982. Não celebram a liberdade, mas fazem o luto pelo
regime militar socialista que não conseguiram manter em 1975. Lamentam a
democracia (que acham meramente “formal”), lamentam a economia de mercado (a
que chamam “recuperação capitalista”), lamentam a integração europeia (na
“Europa dos monopólios”), e lamentam, o que é bastante compreensível, já não
terem a idade que tinham em 1975.
Não é uma marcha de vencedores
— é um desfile de derrotados, sustentado pelo aparelho das câmaras municipais e
dos sindicatos controlados pelo PCP. Por isso, durante décadas, não ocorreu a
ninguém se intrometer nos seus rituais. A Mário Soares, por exemplo, creio que
nunca deve ter passado pela cabeça aparecer na avenida de cravo ao peito, mesmo
nos seus últimos anos, quando aceitou as mais disparatadas companhias na
contestação à Troika. Sabia que só poderia suscitar velhas memórias rancorosas
sobre o seu papel na resistência ao militarismo socialista. O Abril deles
não era o dele. Nem deveria ser o da Iniciativa Liberal.
Temos, portanto, este mistério: por que razão a Iniciativa Liberal haveria de querer entrar numa cerimónia de nostalgia pela última revolução socialista da Europa? Quero admitir que a IL é mesmo liberal no sentido que é dado à palavra na Europa. Concluiu que não vale a pena pregar para convertidos, e que a sua missão é evangelizar no terreno do adversário? Levou mesmo a sério o que Afonso Henriques nos Lusíadas diz a Cristo (“aos infiéis, Senhor, aos infiéis, e não a mim, que creio o que podeis”)? Tenciona este ano pedir também um stand ao PCP na Festa do Avante? Provavelmente, não. É mais trágico: trata-se, pelo que se pode deduzir de alguns protestos, de disputar a liberdade à esquerda comunista e neocomunista. Haverá coisa mais bizarra? Portugal deve ser o único país do mundo onde liberais sentem necessidade de ir provar que também são pela liberdade – participando numa manifestação da extrema-esquerda. Faz sentido? Não faz.
Já não deveríamos precisar de
tantas revisões da matéria dada sobre a história da liberdade em Portugal, mas
cá vai. Sim, o atual regime de liberdade política resultou do derrube de uma
ditadura conservadora em 25 de Abril de 1974. Mas não, não foi obra dos
partidos de esquerda, nem sequer, exclusivamente, de militares que já tivessem
aderido ou viessem a aderir à esquerda. Na Pontinha, no posto de comando do
MFA, estava o então major Sanches Osório, que depois foi secretário-geral do Partido
da Democracia Cristã (e como tal perseguido), e na rua estava o então major
Jaime Neves, que desarmou o militarismo esquerdista a 25 de novembro de 1975.
Os “capitães de Abril” não se fizeram todos esquerdistas. E não, a liberdade em
Portugal não se conquistou só contra o Estado Novo, mas também, em 1975, contra
a esquerda militar e os partidos de extrema-esquerda que agora desfilam na
Avenida da Liberdade. Não, nem a liberdade nem sequer Abril são dos comunistas,
e não é preciso ir à avenida pedir água benta para se ser liberal.
Mas posto isto, compreendo a
frustração da Iniciativa Liberal. Porque é que aqueles que impediram Portugal
de passar de uma ditadura a outra em 1975 não disputaram o “dia da liberdade” e
não instituíram as suas festas, as suas marchas, as suas flores? Por que é que
deixaram que em Portugal a liberdade fosse comemorada pelos seus maiores
inimigos? Talvez se diga: conservadores e liberais não pertencem à rua. Não é
verdade. Em 1975 ou em 1980, liberais e conservadores estiveram na rua. Nessa
época, contra a tutela militar, foi necessário defender a soberania do voto, o
pluralismo partidário e a alternância no poder. Mas a liberdade, se depende
disso, não depende só disso. Depende também de cidadãos que possam, com o seu
trabalho, poupanças e investimentos, alcançar aquela autonomia perante o Estado
que é a única garantia real de uma vida livre. Não há liberdade sem cidadãos
independentes. Foi isso que, desde 1976, os governos de Mota Pinto, Sá
Carneiro, Pinto Balsemão, Cavaco Silva, Durão Barroso, e Passos Coelho tentaram
assegurar. Como seria de esperar, falaram de liberdade. Mas falaram mais vezes
de “crise”, de “modernização”, ou da “Europa”. Esperaram talvez assim prevenir
a resistência dos instalados de um sistema adverso à liberdade. Mas dessa
maneira, o que era uma libertação, pareceu uma imposição. O que deveria ter
sido celebrado, foi como que sofrido. É pena. Os liberais e conservadores
também deveriam ter tido as suas festas da liberdade e as suas marchas. Porque
a liberdade precisa de ser celebrada para melhor ser defendida.
E nunca isso foi tão
importante como agora. Nos últimos anos, o Partido Socialista colonizou o
Estado, e a partir do Estado submeteu a sociedade aos constrangimentos e às
inseguranças que provocam o empobrecimento e favorecem a dependência. Desde
2015, trouxe comunistas e neocomunistas para a área do poder, com um programa
autoritário de vigilância, “cancelamento” e reinvenção de linguagens, memórias
e identidades. O principal teatro do Estado discorre, com grandes cartazes,
sobre a “beleza” de “matar fascistas”, isto é, de matar quem não pensa como a
extrema-esquerda (é esta a definição de “fascista”). Nunca, desde 1976, a
liberdade em Portugal esteve tanto em risco. No entanto, uma imprensa domada continua
a tentar alarmar a nação com o moinho de vento do “populismo”. Como se muda
isto? Talvez alguma coisa comece a mudar quando quem quer verdadeiramente a
liberdade tiver as suas marchas e as suas festas, e souber que na Avenida os
comunistas não comemoram a liberdade. Porque o Abril deles não é o nosso.
Título e Texto: Rui Ramos,
Observador,
23-4-2021
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