A comissão inventada, agora, para "apurar responsabilidades" na administração da covid-19 promete ser um exagero em matéria de hipocrisia, desonestidade e mentira pura e simples
J. R. Guzzo
Comissões parlamentares de inquérito, de qualquer nível e para qualquer finalidade, são possivelmente o maior clássico em matéria de fraude que a vida pública brasileira criou nos últimos 500 anos. Ao contrário do boi, nada se aproveita de uma CPI.
Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Senado |
Jamais as investigações de
deputados e senadores investigam realmente alguma coisa e, com certeza, jamais
descobrem o que os seus criadores e participantes prometem descobrir. Na melhor
das hipóteses, são pura perda de tempo e desperdício acintoso de dinheiro
público. Na pior, e mais frequente, são apenas uma ferramenta para se fazer
chantagem. Em qualquer dos casos, CPI é sinônimo de farsa, e farsa de terceira
categoria. Um drama de circo teria vergonha de oferecer ao distinto público
algo tão ruim.
Mesmo com esse histórico, a
CPI inventada, agora, para “apurar responsabilidades” na administração da
covid-19 promete ser um exagero em matéria de hipocrisia, desonestidade e
mentira pura e simples. Não há absolutamente nada de concreto e objetivo a
apurar — salvo, é óbvio, a única coisa que realmente deveria ser apurada: a
roubalheira desesperada à qual Estados e municípios se dedicam há mais de um
ano, desde que receberam do STF a autonomia total para cuidar da epidemia e,
por força da situação de emergência, ganharam o direito de fazer compras sem
licitação.
Mas essa investigação, justamente, os parlamentares que agem no submundo do Congresso não querem fazer. Ladroagem e incompetência, só se for federal; a corrupção que de fato existe, a estadual e municipal, tem de continuar protegida.
Nada representa tão bem o espírito da coisa quanto as ameaças feitas por um dos pretendentes mais agitados à presidência da CPI. É uma obra-prima. O homem, representante do Amazonas, afirmou em público — e foi levado altamente a sério por muito jornalista — que o governo federal “não fez nada para evitar a entrada do vírus no Brasil”. Acredite se quiser: foi isso mesmo o que ele disse, e é em cima dessa razão que ele quer processar o governo, certamente por genocídio.
Senador Omar Aziz (PSD-AM), foto: Marcos Oliveira/Agência Senado |
Como assim, “não impediu”? E
qual dos 200 países do mundo conseguiu impedir? Estados Unidos? Inglaterra?
Austrália? A Europa supercivilizada? A África? O que ele sugere como explicação
para os 3 milhões de mortes que a covid-19 causou no mundo até agora?
A estupidez, como se sabe
desde sempre na política brasileira, é livre. O curioso é a ligeireza que os
colegas do deputado e o resto do “Brasil que pensa” dedicam a surtos como esse
— hoje em dia está valendo tudo, decididamente. Para coroar o seu desempenho, o
candidato a chefe dessa nova farsa disse que não cederia a “pressões” para
incluir os Estados e municípios na CPI. É claro que não: seu Estado, o
Amazonas, é um daqueles em que mais se roubou por conta da epidemia.
Manaus descobriu-se de repente
sem balões de oxigênio — pela simples razão de que os governos locais, que têm
a responsabilidade direta pelo sistema hospitalar público, só foram se lembrar
do problema quando as pessoas estavam morrendo por falta de ar. Mas o deputado
não aceita “pressões”. CPI, só nos outros.
Título e Texto: J. R. Guzzo,
Gazeta do Povo, via revista Oeste, 20-4-2021, 6h40
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