Editorial
Nesta quinta-feira, está na pauta do Supremo Tribunal Federal um julgamento que pode ao menos restaurar um mínimo de dignidade à corte no tratamento que ela tem dado recentemente ao combate à corrupção, ou pode aprofundar seu suicídio moral. O plenário analisará se o habeas corpus que levou à declaração da suspeição de Sergio Moro “perdeu seu objeto” (ou seja, tornou-se nulo) no momento em que o STF confirmou a anulação de todas as ações da Lava Jato contra o ex-presidente Lula em Curitiba.
Foto: Rodrigo Sierpinski/Gazeta do Povo |
Não estão em jogo, aqui, os
atos propriamente ditos de Moro à frente da 13ª Vara Federal de Curitiba –
embora estejamos certos de que magistrados insatisfeitos com a Lava Jato os
recordarão em seus votos –, mas uma questão meramente processual: se a extinção
de uma ação judicial leva à extinção subsequente de todos os recursos
impetrados dentro desta ação. A lógica básica leva a concluir que sim, mas a
Segunda Turma já anulou a lógica quando quis julgar a suspeição enquanto
vigorava, mesmo que em caráter liminar, a anulação de todas as ações. O fato é
que, se o plenário da corte não declarar a perda de objeto de todos os recursos
ligados aos processos anulados, estará não apenas criando uma bizarrice processual
– o habeas corpus que permanece vivo embora a ação dentro do qual ele tenha
sido impetrado seja nula –, mas cometendo uma enorme injustiça contra um
magistrado que jamais se portou da forma abusiva com que seus detratores tentam
descrevê-lo.
Os adversários de Moro e da Lava Jato não têm como alegar que a
operação infringiu a lei; o que realmente os incomoda é o rigor com que Moro
agiu – nada mais que todo o rigor que a lei permitia
Moro foi muito mais que alguém que apenas estava no lugar certo, na hora certa (como afirmaram, para minimizar seu trabalho, certos bolsonaristas por ocasião do rompimento do ex-juiz e ex-ministro com o governo Bolsonaro): era, também, a pessoa certa, dotada das qualidades morais, da competência técnica e de profundos conhecimentos sobre esquemas de lavagem de dinheiro, tema no qual tornou-se especialista após assumir, em 2002, a 2ª Vara Federal, que depois se tornaria a 13ª Vara; atuou em casos como o Banestado e auxiliou a ministra Rosa Weber enquanto o Supremo julgou o mensalão. E, totalmente consciente do desfecho que havia tido na Itália a Operação Mãos Limpas, estava disposto a não deixar que a impunidade prevalecesse quando a Lava Jato chegou às suas mãos. E aqui é preciso repetir o que já afirmamos em várias outras ocasiões: pode até haver quem considere ser impossível combater ladroagem tão intrincada sem cruzar os limites da legalidade uma ou outra vez, já que do outro lado há gente que não se vê limitada por lei ou moralidade alguma. Mas não, definitivamente não foi este o caso de Sergio Moro.
Tanto foi assim que os atos
pelos quais Moro está sendo achincalhado por ministros como Gilmar Mendes, ou
que foram invocados por Cármen Lúcia em sua surreal mudança de voto na sessão
de 23 de março, se deram, no máximo, dentro daquela zona cinzenta a que também
nos referimos em outras ocasiões, em que são possíveis interpretações
diferentes, já que é impossível ao texto legal prever todas as circunstâncias
de sua aplicação. Os adversários de Moro e da Lava Jato não têm como alegar que
a operação infringiu a lei; o que realmente os incomoda é o rigor com que Moro
agiu – nada mais que todo o rigor que a lei permitia. Algo que não
deveria passar de discordância em questões sujeitas à interpretação e à
discricionariedade do juiz, e que no máximo renderia debates nos meios de
comunicação e em veículos especializados, foi retorcido e distorcido para ser
levado aos tribunais e transformado em “abuso”, irregularidade ou até mesmo
ilegalidade.
Essa estratégia ganha ares de
indignidade ainda maiores quando sabemos que os adversários de Moro querem
construir uma narrativa de “excesso” sistemático amparados em uma quantidade
ínfima de atos, que se pode contar nos dedos das mãos, quando a verdadeira
essência da Lava Jato está nos milhares de decisões tomadas ao longo de anos e
jamais questionadas. Essas decisões, em sua ampla maioria, foram respaldadas
pelas instâncias superiores – como o TRF4, por exemplo, que confirmou quase
todas as condenações proferidas por Moro, em muitos casos até mesmo elevando a
pena.
Prova do que afirmamos é o
fato de que, para atribuir “abuso” ou “ação política” a Moro, ou anular seus
atos, os ministros do Supremo precisam ignorar que todas as decisões do juiz
tinham amparo na lei, especialmente a lei processual penal. Foi assim quando a
corte anulou uma condenação ainda do caso Banestado, apesar de os atos
questionados estarem previstos pelo Código de Processo Penal. Foi assim quando
a corte anulou condenações da Lava Jato alegando que corréus delatores e
delatados entregaram alegações finais ao mesmo tempo, o que também é previsto
no CPP – em um dos casos, inclusive, Moro chegou a conceder prazo adicional a
um réu, Márcio Ferreira, ao perceber que as alegações finais de um delator continham
informações novas; a defesa de Ferreira não quis acrescentar mais nada, e mesmo
assim a condenação foi anulada pelo Supremo.
Que Moro tenha colocado as ferramentas da lei a serviço do combate à
corrupção não tem nada de abusivo, mas de heroico. O ex-juiz foi inspiração e
esperança para muitos brasileiros
E o mesmo pode ser dito dos
atos diretamente invocados para se alegar a suspeição de Moro, como a condução
coercitiva de Lula ou o levantamento do sigilo da delação de Antonio Palocci:
tudo estritamente dentro da lei. Mesmo no caso mais controverso, o da liberação
das gravações das interceptações telefônicas que captaram conversa entre Lula e
a então presidente Dilma Rousseff, anulada por Teori Zavascki, a avaliação
desfavorável a Moro foi feita a posteriori, jamais se podendo atribuir ao juiz
qualquer intenção de desrespeitar a lei – até porque havia muitos bons motivos,
baseados em princípios constitucionais, para a liberação do conteúdo, que
revelou um escancarado desvio de finalidade na nomeação de Lula para um
ministério. Se não fosse assim, as conversas não teriam sido usadas por (ironia
das ironias) Gilmar Mendes para suspender a nomeação de Lula, um dia depois da
cerimônia de posse.
Por fim, é preciso lembrar
ainda que a falsa narrativa da suspeição ganhou força a partir do fim de 2018,
quando Moro aceitou o convite de Jair Bolsonaro para o Ministério da Justiça.
Esta é uma tese tão falaciosa quanto delirante, que faz uma análise posterior
das intenções do até então juiz federal, como se ele tivesse tomado todas as
decisões que tomou não por estar convencido de que eram corretas, ou por causa
das inúmeras provas existentes contra Lula, mas única e exclusivamente como
parte de um jogo para retirar Lula da disputa presidencial de 2018 e facilitar
a eleição de Bolsonaro, com o ministério servindo de “recompensa”. Aceitar esse
tipo de argumentação seria levar ao extremo a falácia do post hoc ergo
propter hoc, uma falsa relação de causalidade entre dois acontecimentos que
apenas se sucedem no tempo. Em outras palavras, “se A ocorre antes de B, é
porque A é a causa de B”. Além disso, é uma tese que manieta homens
públicos, doravante impedidos de fazer o que julgam ser o melhor para o país –
como, no caso de Moro, a escolha de deixar a magistratura para se tornar
ministro – porque todos os seus atos passados passariam a ser julgados à luz de
suas escolhas presentes e futuras.
As escolhas de Moro na
condução da Lava Jato jamais foram fáceis, mas sempre foram feitas tendo em
vista o que a legislação lhe permitia fazer e que ferramentas ela lhe dava para
melhor julgar. Que ele tenha colocado essas ferramentas a serviço do combate à
corrupção não tem nada de abusivo, mas de heroico. Moro foi inspiração e
esperança para muitos brasileiros: o país inteiro foi testemunha da coragem, da
dedicação e da competência do então juiz federal, que soube ser rigoroso sem
desrespeitar prerrogativas dos réus, nem atropelar seu direito de defesa. Tudo
isso mostra a gravidade e a torpeza da desqualificação a que ele vem sendo
submetido. Manter a suspeição do ex-juiz, além da aberração processual já
mencionada, equivale a dizer a todos os demais juízes deste país que não, eles
não podem se mover dentro do que diz a lei se for para aplicá-la com rigor,
pois serão perseguidos por isso. Alguém que, na magistratura, agiu com
integridade será injustamente sacrificado, mas a injustiça não termina ali:
quem quer que deseje fazer o mesmo ouvirá do Supremo que combater a corrupção
no Brasil não compensa.
Título e Texto: Editorial,
Gazeta do Povo, 20-4-2021, 19h10
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-