terça-feira, 6 de abril de 2021

[Aparecido rasga o verbo] O cobrador da geladeira

Aparecido Raimundo de Souza

O INTERFONE DO PORTÃO
de entrada da casa do ricaço Fiasco Tomba Chato, tocou cinco vezes. Na sexta, ele atendeu:
— Quem é?
— Bom dia para o senhor também. Meu nome é Boleto de Moraes. Estou procurando pela senhora SBP Tomba Chato. Ela se encontra?
— O prezado é parente do Alexandre?
— Não conheço. Quem é este Alexandre?
— Deixa pra lá. Por qual motivo deseja falar com a SBP?
— A conta da geladeira.

— Que geladeira?
— A que ela comprou em doze vezes.
— Doze?
— Isto. Dez mais duas.
— Deve haver algum engano. Eu dei o dinheiro para ela comprar o refrigerador à vista.
— Ai eu não sei, senhor. Apenas bato nas casas em nome da loja para a qual trabalho. A propósito: o que o senhor é da senhora SBP Tomba Chato?
— Marido.
— Então, seu marido, mil perdões. Qual é a sua graça?

— Até agora, nenhuma...
— Desculpe, qual seu nome?
— Fiasco Tomba Chato.
— OK, seu Fiasco. A sua esposa, dona SBP comprou um aparelho em uma de nossas filiais e não pagou nenhuma. Só deu a entrada. No todo, até agora, temos duas vencidas.
— Seu Boboleto, ela ainda não se levantou. Está dormindo. Volte outra hora. Pode ser?
— Seu Fiasco meu nome é Boleto.
— Dá tudo no mesmo, amigo. Boleto, Bogueto, Bolespo...
— Seu Fiasco me dá uma moral. Acorda ela. Não levarei mais que cinco minutos. O senhor pode marcar em seu relógio. Eu vim de longe e a pé...

— Vamos tentar chegar a um consenso. Se eu fosse pagar estas duas atrasadas, seu Parcela, em quanto ficaria cada um destes boletos em aberto?
— Perdão de novo, seu Fiasco. Meu nome é Boleto e não parcela. O senhor confundiu tudo outra vez. Não se preocupe. Acontece. Vejamos. Temos duas em atraso. Farei as contas. Espere um minuto.
— Faz o seguinte. Vou liberar o portão. Acabe de chegar...

Boleto entrou. Diante dele, surgiu um sujeito extremamente alto (parecia o Burj Khalifa, em Dubai, nos Emirados Árabes), trajando apenas uma sunga preta. Sem camisa, seu corpo musculoso e todo trabalhado em tatuagens as mais diversas, lhe emprestava ares de um personagem que vivia metido em academia de musculação.
— Pode sentar numa destas mesinhas. Fica melhor para fazer as contas...
— Eu agradeço a sua cortesia.

Dois minutos se passaram:
— Aqui está. Seiscentos e setenta e cinco reais, com dez centavos, seu Fiasco.
— Ok, vou colocar em dia. Pode providenciar os recibos.
Mais cinco minutos correram ligeiros. Tempo que o Boleto de Moraes levou para acertar os documentos.
— Aqui estão, seu Fiasco. Assinei as prestações em atraso como recebidas e coloquei meu carimbo.
— Perfeito.
— Sua esposa dona SBP deve ser uma mulher feliz.

— Por?
— Tem um maridão simpático e generoso.
— Nem tanto. Ela prefere os mosquitos e os pernilongos. Aliás, seu Bolereto, o amigo me lembra uma barata...
Risos. Apesar de meio sem graça, pela comparação um tanto esdrúxula, Boleto de Moraes sorriu de um canto a outro da boca:
— Gostei do seu humor. Perdão, seu Fiasco. Só quero fazer uma ressalva. Meu nome é Boleto. BO-LE-TO. ‘Bê... Ó... Éle... Ê... Tê... Á...’. Mas eu lembro ao senhor uma barata? Poderia saber por quê?
— Detalhes, meu amigo, detalhes. Nesta altura do campeonato, barata, Bometo, Bogrieto, no fim...

Em face desta conversa meio que fora de esquadro, Boleto se distraiu e entregou os recibos assinados e carimbados ao marido da devedora:
— Então, estamos em dia?
— Certamente, seu Fiasco. Falta, agora, o senhor liberar a grana. Os seiscentos e setenta e cinco reais com dez centavos. Lembrou?
O que aconteceu em seguida, se constituiu, realmente, num baita de um fiasco. Um fiasco, a bem da verdade, em dose dupla. De posse dos recibos quitados, o espertalhão do Fiasco tratou de guarda-los num bolsinho da sunga. Ato contínuo, o indivíduo partiu para cima do indefeso Boleto, cobrindo-o de tapas, safanões e pontapés.

O pobre cobrador, coitado, pego de surpresa, e sem saída, apanhou até dizer chega. Se viu surrado pior que cachorro sem dono caído de um caminhão de manifestantes em plena avenida Paulista. Saiu das garras de Fiasco em pandarecos, mais amassado que dinheiro em bolso de bêbado. Sangrando e todo arranhado, o infeliz se viu jogado por um empregado que pintou, do nada e, a um gesto do patrão, colocou o desgraçado —, colocou não —, atirou, como um saco de lixo, do lado de fora da rica e suntuosa residência.

Rindo e debochando a mais não poder, gritou:
— No próximo mês, seu Bobeto, traga as dez prestações faltosas. Transmita ao seu chefe de cobrança, que estarei aqui, à espera de sua pessoa, ou de outro chato para tombar e esmagar como uma barata. Antes que me esqueça: o amigo ao qual acabei de pagar as duas da geladeira, foi o oitavo cobrador que apareceu para me importunar. Só hoje, com o senhor, inteirou oito, oito... É mole? Espero, antes que o dia acabe, receber mais um. O nono. Que venha, pois, o nono. Passe bem. Ah, vá pela sombra...
O cobrador, literalmente estirado na calçada, se levantou catando cavaco, se pôs em pé, segurando num poste, depois num carro, o rosto inchado, a carroceria barbaramente hematomada. Apesar de todo estropiado, não perdeu a linha, nem a pose. Se limitou a encarar o seu algoz e o capanga que o espiavam de longe e balbuciar, quase a um fio de voz:
— In... fe... liz... dos... in... fer... nos... Meu... no... me... é... Bo... le... to... Bo... le... to... Se... rá... o... Be... ne.. di... to?!

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, do Sítio Changri-La - ES/MG, 6-4-2021

Colunas anteriores: 
E assim, a passos largos, caminhamos para a crucificação encarnada 
Receita rápida 
O capim dos pastos 
Overdose 
De repente, um parque de diversões 

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