terça-feira, 13 de abril de 2021

[Aparecido rasga o verbo] Sempre o tempo...

Aparecido Raimundo de Souza 

HOUVE UM TEMPO EM QUE eu passava na porta de um bar, queria entrar, sentar, tomar um copo de café com leite e comer um pãozinho com manteiga, mas não tinha condições. O bolso estava furado, a carteira sem um centavo para fazer um cego cantar. Houve um tempo em que me perdia espiando, de boca aberta, os olhos arregalados, para dentro de uma destas lojas de eletrodomésticos, namorando com uma porção de televisores tela plana ligados em canais diferentes que prendiam a atenção de uma multidão, bem como de aparelhos de som e sofisticados, DVDs... E, infelizmente, eu continuava liso, leso e louco, não dispondo dos meios de sobrevivência, ao menos para entrar e trocar umas ideias com os vendedores. 

Houve um tempo em que eu precisava, urgentemente, substituir o único par de meias e os sapatos furados. Lembro que fiquei de olhos compridos em algumas vitrinas masculinas, mas este derriço não prosperou. Também houve um tempo em que me detinha por longo período na porta de uma lojinha em liquidação de queima de estoque, todavia, não tinha fundos na carteira para levar para casa uma calça jeans, pelo menos uma camisa de malha, ou uma bermudinha simples, visando jogar no lixo as tranqueiras surradas que usava o ano inteiro. Eu sabia que precisava me virar nos trinta o mais breve possível, ou logo estaria indo para a rua procurar emprego, com uma mão na frente, outra atrás arriscando a ser preso, como se fosse um mentecapto. 

Houve um tempo em que sentava nos bancos da estação rodoviária e ali ficava horas e horas apreciando o movimento do ir e vir das pessoas que embarcavam cheias de malas e cuias, apressadas, cada uma delas com um sorriso largo estampado nos lábios e a imensidão do caminho a ser seguido fazendo cócegas na aflição desenfreada para que os ônibus partissem sem mais delongas. Neste corre-corre incessante, atrelado ao afogo dos meus problemas (onde o agito e o nervosismo eram a tônica), cansei de topar com gente se despedindo, crianças chorando e idosos impacientes. Presenciei abraços sendo trocados com efusão, carinhos permutados com ímpetos de veemência. Ouvi enxurradas de juras de amor saciadas com as intensidades das emoções à flor da pele, enquanto os motoristas, numa lerdeza enervante, conferiam passagens e documentos de embarque. 

Ladeado por um adversário poderoso, resoluto e selvagem, eu escutava choros e preces, clamores e pedidos de ‘volte logo’. Nesta peregrinação, presenciei lágrimas de tristezas, me frenteei, no mesmo quadro, com esperanças se entrelaçando, saudades, carinhos e probabilidades de volta se renovando. Sentia, com a nitidez de uma reconstituição diária, todas as cenas brotando do fundo da alma, ideias e pensamentos que se misturavam, num surdo temor e, na impetuosidade única, no instante seguinte, como se contra-atacassem, rejuvenescessem e se acalorassem, numa palpitação mágica, como se saídas do nada, e trouxessem escondidas, desejos eternos. Houve um tempo... Em que eu levantava a cabeça para o azul celeste e topava com um avião solitário cortando o espaço. Esta cena se fazia bonita, porém, a aeronave sumia na poeira do céu imenso, sem deixar rastro da sua passagem. 

Houve um tempo —, em que o tempo se desfazia em sequelas de escuridão —, e eu... Eu me via só e desamparado, perdido, isolado das coisas mais corriqueiras, o peito vazio, despojado de sentimentos nobres. O meu ‘eu interior’ completamente dilacerado e ferido, rasgava as convicções, embaralhando tudo em minha volta e transformando as minhas expectativas, num poço de desgostos e incertezas sem fim. Houve um tempo em que sorria ao topar comigo parado, como um imbecil entremeado numa desastrosa multidão... Por breve instante, sonhava que a Felicidade caminhava ao meu lado, de braços dados e, à tiracolo, se fazia abarrotada de uma Esperança menina, qual flor adolescente prometendo um porvir afável e ameno e, que em breve, nasceria sem máculas. 

Houve um tempo — meu Deus! —, um tempo de muitas esperas sucessivas... As horas paravam, como se emperradas. Por algum tempo, o sol sumia, o vento deixava de soprar, as flores perdiam o viço, o azul do firmamento se mesclava cheio de densas nuvens carregadas e de pesados silêncios. Houve um tempo em que a impressão de não ter mais saída, se fazia opressiva e eu pensava finalizar à vida, acabar com a história, antecipar o meu destino inglório, cortar, de vez, o ar benfazejo que me mantinha respirando. Contudo, do nada, o assombro! Como o mar proceloso abandonando os restos de um naufrágio, emergiu diante de meu espanto, um tempo ‘in pace’, onde a existência, tão fértil em renovação, passou a me sorrir de forma plena. O vento soprou meus cabelos, o sol se pôs alegre e saltitante e os pássaros voltaram a cantar. Veio um outro tempo, logo a seguir, um espaço empolgante, em que a solidão se fez amena, a tristeza fugiu, e as dores que escorriam de dentro de meu âmago, prenhas de agruras e inquietações, se transformaram em ondas de bonanças e me arrancaram, finalmente, de uma enorme cissura atroz. 

Atrás deste tempo, um outro clima de benignidades atonou trazendo mais alegrias e contentamentos. A escureza, que andava casmurra, se viu subitamente intimidade, invadida por um foco de luz muito forte e de intensa claridade. Foi nesta brecha do destino que eu parei e me olhei no espelho, me contemplei diante do cristal do banheiro de casa e percebi que o meu sorriso se abria em desenhos coloridos da mais pura e gostosa Tranquilidade. O meu rosto brilhou com um adusto descomedido. O coração zimbrou acelerado, como se quisesse saltar peito à fora. E, de fato, neste dia, vergastou... Recordo que tranquei a porta do apê e sai correndo, desembestado como se tivesse com o pescoço da minha mãe na forca. Chamei o elevador, mas no afã da impaciência que me movia, optei descer pelas escadas, e o fiz saltando os degraus, de três em três. 

Saltando não, correndo... Voando, como se tivesse asas nos pés. Me sentia meio alucinado, meio imoderado, meio fora de mim. O porteiro estranhou não lhe ter dado o bom dia costumeiro. Talvez, se tivesse bebido, demonstrasse uma  energia mais devassa numa hora tão tresloucada como aquela. Na verdade, eu me via labrusco, ou pior, selvagem, sei lá... Acho que as duas coisas ao mesmo tempo. Uma agonia infortuniosa me espremia, me adstringia, me tirava do sério. Meus sobressaltos (todos alinhados), me empurravam para leões famintos, feras que sempre teimavam em me esperar do lado de fora, na rua, no ponto de ônibus, na estação do metrô, enfim, sempre, quando saia de casa com o frenesi insubordinado atado aos calcanhares algo novo me freava. Todos nós temos leões de presas afiadas, nos espreitando em algum lugar... 

Entretanto, milagrosamente, eu tinha, neste dia, um motivo ímpar, um instante mágico, para me desgarrar dos percalços que me perseguiam. Uma causa sublime me aguardava e eu tinha urgência em ganhar o espaço e me desamarrar de tudo, das coisas, das futilidades, do mundo. Eu ia em busca de um ensejo grandioso e perfeito, um magnânimo de proporções harmoniosas que me fazia esquecer das intempéries e deixar, de lado, o que de ruim me cercava os passos. Eu tinha a ansa e a força do Onipotente que, me impulsionavam, num apelo mudo, como o príncipe encantado de uma história de fadas: ‘vai, vai, não pare...’ E eu, cioso daquele esplendoroso que me aguardava, de fato, não parei. Os leões que fossem para os raios que os partissem. A coragem, a ousadia e a relevância para tanta e tamanha euforia?! Eu recebera um telefonema da maternidade. Minha mulher acabava de entrar na sala de parto. Meu Deus, na sala de parto! Ela estava dando à luz. EU IA SER PAI... EU IA SER PAPAI PELA PRIMEIRA VEZ. 

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, do sítio Shangri-La Pequiá, divisa do Espírito Santo com Minas Gerais. 13-4-2025 

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Elas são boas assim: nuas e cruas 
O cobrador da geladeira 
E assim, a passos largos, caminhamos para a crucificação encarnada 
Receita rápida 
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