sexta-feira, 16 de abril de 2021

[Aparecido rasga o verbo] Paternidade garantida

Aparecido Raimundo de Souza

O CHICO BERREDO TRABALHAVA no caminhão da coleta de resíduos de lixos da prefeitura. Era, portanto, um gari legalizado, diferente dos catadores que labutavam por conta e risco, no anonimato do dia a dia, sem direito à coisa alguma. O Chico adorava a profissão. Acordava cedo e bem disposto. Não se atrasava, sempre chegava no trabalho com meia hora, ou, às vezes, até mais, de antecedência. Pela sua dedicação e versatilidade em levar a sério o humilde, mas honrado trabalho (que lhe garantia um salário digno), se considerava um cara feliz, sem contar que se destacava, aos olhos de seu encarregado, como um funcionário exemplar. 

Os colegas que dividiam os sacos das sujidades, as caixas com restos de comidas podres e latões cheios de vermes, abusavam dele. Na maioria das vezes, os próprios parceiros o faziam de bobo, deixando que corresse e se esforçasse mais que os outros, notadamente quando o possante barulhento saia para os resgates e os apanhos dos detritos e dejetos espalhados pelas avenidas da cidade. Havia um particular em Chico Berredo, que o diferenciava dos demais. Usava um tapa olho na vista esquerda, desde os oito anos, em face de um acidente doméstico que ocorrera com ele, nos idos de moleque. 

Apesar deste infortúnio profundamente marcante, a sua vida seguia um cardápio trivial. O tampão, como uma mancha negra grudado por um elástico, à semelhança de um pirata, não o impedia de levar uma vida normal. Apesar de simples e desconhecido profissional que recolhia os monturos dos emporcalhamentos alheios, se constituia numa criatura íntegra e de coração grandioso. Tinha uma namorada nova e bonita, de aparência jovial, agradável e marcante, igualmente dona de um sorriso indescritível e um corpo exuberantemente escultural. Resumindo, uma donzela cuja silhueta provocava inveja e cobiça em outros rapazes. Se chamava Grazielle e Chico Berredo fazia o possível e o impossível, para vê-la feliz. 

Valia tudo, no seu modo de pensar, para merecer o amor que ela, em troca, dizia lhe dedicar de alma inteira. Ledo engano! Grazielle não se constituia numa moça de prendas virtuosas e méritos idôneos. Traia o pobre rapaz com o Bastião Dentuço, colega de Chico Berredo. Ambos, Chico Berredo e Bastião Dentuço, bem poderiam ser considerados unha e carne. Pareciam irmãos de sangue. Para o deletério dos pecados se tornar ainda mais insalubre, os dois dividiam o estribo da traseira-plataforma catinguenta do mesmo veículo automotor. Iam e voltavam para casa, em igual horário. O que diferenciava, a chegada, em definitivo, em sua residência, apenas um pormenor. O Chico Berredo, antes de se ver em seu reduto de lazer, passava pela casa dos pais. 

De idade avançada, os velhinhos careciam de cuidados especiais. Filho único, se desdobrava assistenciando os autores da sua vida, perdendo, com este desvio de rota, bem umas duas horas antes de, efetivamente, chegar em seu cafofo, tomar um banho, trocar de roupas e descansar. Já o Bastião Dentuço, bicho solto, tinha a seu favor, o resto da tarde e parte da noite para se entregar aos afagos e comprazimentos da estonteante Grazielle. Como nada fica oculto, no para sempre, um dia, por azar, a beldade apareceu grávida. Vizinhos contiguados e, além do mais, fofoqueiros de plantão, os famosos bisbilhoteiros maldizentes da vida alheia, resolveram dar uma ajudazinha à Chico Berredo. 

Sem perda de tempo, puseram a ideia em prática, claro, de uma forma prudente, discreta e sagaz, relatando a ele, sem dar nas traves, as traições escabrosas e vergonhosas da jovem criatura que ele, Chico Berredo, achava ser a mulher perfeita e acurada, ideal e, mais que primorosa, a dona e a musa incontestável dos seus sonhos e encantos. Por assim, começaram a chegar, na caixinha de correio do portão de Chico Berredo, um calhamaço de bilhetinhos anônimos e insinuosos com as mensagens de alerta e vigilância. Depois, via WhatsApp, pintaram gracejos e chacotas originados de números de existências ignoradas, dando conta das ‘puladas de cerca’ da libertina franjosca. 

Em questão de dias, a caixa postal do seu celular se fartou de tantas porandubas dando conta das patranhas e pormenorizando os ‘causos’ e biografando, sobretudo, os procedimentos vergonhosos e abusivos da sua doce rainha Grazielle, à revelia de sua ausência. Vai daqui, vem dali, tanto fizeram os ‘amigos’, entre aspas, o Chico Berredo acordou. Despertado da sua cega sonolência, os chifres a lhe enfeitarem a coruta da cabeça, flagrou a Grazielle e o Bastião Dentuço numa intimidade abrupta, onde ele achava fosse o único mocinho da história. Chico Berredo e Bastião Dentuço partiram para as vias de fato. 

Neste destoado insano, se agrediram, se surraram, se estapearam, se mimosearam, culminando com um puxando uma faca e, o outro, uma peixeira. ‘Vô te matá, desgraçadu! —, teria dito o Chico Berredo’. ‘Morru filiz. Vô pro infernu comu home machu qui sô’ — juraram os vizinhos, replicara o Bastião Dentuço. ‘Pió você, que irá pra cadea presu e ainda fantasiadu di cornu mansu...’.

Em abundante atrito, a azáfama deu BO. Um amontoado de viaturas se enfileirou na porta. A rua pacata, de cima em baixo, se fez em assuada balbúrdia. Ambos os contendores culminaram conduzidos ao plantão da Civil, algemados. Na frente do delegado, depois de muita conversa fiada xingamentos e mais trocas de farpas, os dois ex-amigos chegaram a um acordo sobre quem ficaria, dali para frente, com a vagabunda da Grazielle. 

O mais importante: celebraram, uma negociação aliançada em uma trégua de nução de cavalheiros sobre a paternidade do futuro bebê, que crescia à protuberância de uma barriga cada dia mais arredondada e saliente:
—‘É o siguinti, seo doto delegadu’ — disse o Chico Berredo apontando o Bastião Dentuço ao policial... O que o senhor propõe, seu Chicão?
Chico Berredo encarou o representante da ordem muito sério, depois o seu desafeto:
— ‘Tenhu seo dotô, uma manera facil de resolvê esta pendenga entri eu e esti salafráio seim vergonha i cafajesti’. 

Não fosse o sisudo detentor do distintivo gritar por reforço de outros agentes, que se reuniam numa sala ao lado, os dois bicudos teriam se engalfinhado ali mesmo.
— Calma — berrou o carrancudo da lei, furioso. Se comportem ou boto todo mundo em cana. Seu Chico, termine o que ia dizendo. Qual é a sua proposta para acabar com esta palhaçada?
Chico Berredo continuou:
— ‘Seo doto delegadu, eu só queria dize o siguinti. Sugiru uma trégoa até a nacida da cria. Se ela ou ele, fô um bebê normal é dele. Nãum vô discuti, nem brigá...’.

Bastião Dentuço, sem compreender bulhufas, interrompeu:
— ‘Nãum capitei onde este trasti qué chegá’.
Chico Berredo partiu para cima, novamente.
— ‘Trasti é a sua mãim...’.
O Tira, indignado, mandou seus subordinados algemarem os dois.
— Mais uma gracinha, vão conhecer as comodidades do meu hotel xilindró. Quanto a você (vociferou encarando Chico Berredo), vomita logo o que tinha em mente antes que eu perca, de vez, as estribeiras e recolha os nervosinhos para uma estada num dos meus cubículos.

Chico Berredo, fez uma pequena e concisa exposição dos fatos, Relatou ao delegado os infindáveis bilhetes que passara a receber dando conta da traição da sua ‘ex-namorada’. Discorreu, em seguida, os telefonemas infindáveis que tirara a paz de seu celular, bem ainda as mensagens (chegadas de números desconhecidos) bailando as infidelidades da ‘sua Grazielle’. Por fim, concluiu o seu arrazoado de uma forma bastante elucidativa. Apesar disto, todos, saíram boquiabertos e atônitos:
— ‘Terminano... seo dotô, si o rebentu, vié com um tapa olhu do ladu isquerdu, o sinhô há de concordá cumigu, que o pai ligitimu sô eu...’.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, do Sítio Changri-La - ES/MG, 16-4-2021

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