Aparecido Raimundo de Souza
Os colegas que dividiam os sacos das sujidades, as caixas com restos de comidas podres e latões cheios de vermes, abusavam dele. Na maioria das vezes, os próprios parceiros o faziam de bobo, deixando que corresse e se esforçasse mais que os outros, notadamente quando o possante barulhento saia para os resgates e os apanhos dos detritos e dejetos espalhados pelas avenidas da cidade. Havia um particular em Chico Berredo, que o diferenciava dos demais. Usava um tapa olho na vista esquerda, desde os oito anos, em face de um acidente doméstico que ocorrera com ele, nos idos de moleque.
Apesar deste infortúnio profundamente marcante, a sua vida seguia um cardápio trivial. O tampão, como uma mancha negra grudado por um elástico, à semelhança de um pirata, não o impedia de levar uma vida normal. Apesar de simples e desconhecido profissional que recolhia os monturos dos emporcalhamentos alheios, se constituia numa criatura íntegra e de coração grandioso. Tinha uma namorada nova e bonita, de aparência jovial, agradável e marcante, igualmente dona de um sorriso indescritível e um corpo exuberantemente escultural. Resumindo, uma donzela cuja silhueta provocava inveja e cobiça em outros rapazes. Se chamava Grazielle e Chico Berredo fazia o possível e o impossível, para vê-la feliz.
Valia tudo, no seu modo de pensar, para merecer o amor que ela, em troca, dizia lhe dedicar de alma inteira. Ledo engano! Grazielle não se constituia numa moça de prendas virtuosas e méritos idôneos. Traia o pobre rapaz com o Bastião Dentuço, colega de Chico Berredo. Ambos, Chico Berredo e Bastião Dentuço, bem poderiam ser considerados unha e carne. Pareciam irmãos de sangue. Para o deletério dos pecados se tornar ainda mais insalubre, os dois dividiam o estribo da traseira-plataforma catinguenta do mesmo veículo automotor. Iam e voltavam para casa, em igual horário. O que diferenciava, a chegada, em definitivo, em sua residência, apenas um pormenor. O Chico Berredo, antes de se ver em seu reduto de lazer, passava pela casa dos pais.
De idade avançada, os velhinhos careciam de cuidados especiais. Filho único, se desdobrava assistenciando os autores da sua vida, perdendo, com este desvio de rota, bem umas duas horas antes de, efetivamente, chegar em seu cafofo, tomar um banho, trocar de roupas e descansar. Já o Bastião Dentuço, bicho solto, tinha a seu favor, o resto da tarde e parte da noite para se entregar aos afagos e comprazimentos da estonteante Grazielle. Como nada fica oculto, no para sempre, um dia, por azar, a beldade apareceu grávida. Vizinhos contiguados e, além do mais, fofoqueiros de plantão, os famosos bisbilhoteiros maldizentes da vida alheia, resolveram dar uma ajudazinha à Chico Berredo.
Sem perda de tempo, puseram a ideia em prática, claro, de uma forma prudente, discreta e sagaz, relatando a ele, sem dar nas traves, as traições escabrosas e vergonhosas da jovem criatura que ele, Chico Berredo, achava ser a mulher perfeita e acurada, ideal e, mais que primorosa, a dona e a musa incontestável dos seus sonhos e encantos. Por assim, começaram a chegar, na caixinha de correio do portão de Chico Berredo, um calhamaço de bilhetinhos anônimos e insinuosos com as mensagens de alerta e vigilância. Depois, via WhatsApp, pintaram gracejos e chacotas originados de números de existências ignoradas, dando conta das ‘puladas de cerca’ da libertina franjosca.
Em questão de dias, a caixa postal do seu celular se fartou de tantas porandubas dando conta das patranhas e pormenorizando os ‘causos’ e biografando, sobretudo, os procedimentos vergonhosos e abusivos da sua doce rainha Grazielle, à revelia de sua ausência. Vai daqui, vem dali, tanto fizeram os ‘amigos’, entre aspas, o Chico Berredo acordou. Despertado da sua cega sonolência, os chifres a lhe enfeitarem a coruta da cabeça, flagrou a Grazielle e o Bastião Dentuço numa intimidade abrupta, onde ele achava fosse o único mocinho da história. Chico Berredo e Bastião Dentuço partiram para as vias de fato.
Neste destoado insano, se agrediram,
se surraram, se estapearam, se mimosearam, culminando com um puxando uma faca
e, o outro, uma peixeira. ‘Vô te matá, desgraçadu! —, teria dito o Chico
Berredo’. ‘Morru filiz. Vô pro infernu comu home machu qui sô’ — juraram os
vizinhos, replicara o Bastião Dentuço. ‘Pió você, que irá pra cadea presu e
ainda fantasiadu di cornu mansu...’.
Em abundante atrito, a azáfama deu BO. Um amontoado de viaturas se enfileirou na porta. A rua pacata, de cima em baixo, se fez em assuada balbúrdia. Ambos os contendores culminaram conduzidos ao plantão da Civil, algemados. Na frente do delegado, depois de muita conversa fiada xingamentos e mais trocas de farpas, os dois ex-amigos chegaram a um acordo sobre quem ficaria, dali para frente, com a vagabunda da Grazielle.
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