Carina Bratt
Ventos irrequietos e agitados,
devastadores e buliçosos, passaram a soprar a todo instante, fazendo ressurgir
cadáveres insepultos, defuntos em estado de decomposição, como se pretendessem
varrer, da paisagem bucolizada, todas as lembranças que ainda perduravam
guardadas em algum lugar, à sete chaves. Ao apartado, espaçadamente remotado e,
por toda parte, a quinta extensa e contínua, esticada desde a banda da linha férrea
até o asfalto da BR, se pressente que algo sobrenatural se fez instituído de
vontade própria. Um não sei o que destruiu, abateu, em câmera lenta, o reino
vegetal que antes se vestia de cores flamantes e suntuosas.
No mesmo tom, as flores
coloridas perderam o viço, a exuberância, o vigor, a robustez, o pulso da
vibração. As árvores que sobreviveram tentaram conservar as ilusões, os
desvarios, os simulacros de um ‘ontem’ que há muito ficou estagnado,
imobilizado, represado na sobrecarga da poeira acumulada de décadas e décadas.
As casas, que outrora sorriam, estão igualmente, caindo aos pedaços. Seus
antigos ocupantes se foram. Partiram. Criaram longas pernas e fugiram,
amedrontados, pela estrada que agora é só um caminho abandonado ao acaso em
meio a um matagal que mal se dá para enxergar a trilha original. O presente,
por sua vez, se institucionalizou.
As variedades do hoje que tomavam conta deste mundinho encantado, sufocaram as recordações, os gritos das crianças, os mugidos dos gados soltos no pasto e os cacarejares das galinhas à porta da cozinha. Havia um poço, logo ali, perto do paiol e da residência do capataz e dos empregados. Um córrego de águas rápidas e límpidas (que desciam das montanhas e cortavam o terreno imenso, em forma de cobras se movendo em lisonjeirados espirais), se escafedeu. Do poço restou um pedaço de muro cheio de ervas daninhas. Do córrego, um fio tênue de líquido barrento pareceu se fartar de pavor e, agora, demonstra ter medo de correr pelo leito serpenteando os quatro cantos da fazenda.
Lá, bem ao distante, uns
balanços de correntes enferrujadas choramingam copiosamente a ausência de
crianças que vinham se regurgitarem em dardejos trepidantes, enquanto o almoço
não ficava pronto e se via servido e posto à disposição da fome severa na mesa
ampla da varanda cheia de rosas e margaridas olorosas. No geral, um mau odor
ascendeu, emergiu e impregnou as coisas. Encheu o ar, adensou a paisagem,
saturou o vento, insuflou o sol. Até o estado deplorável que estanciava toda a
localidade, torceu o nariz, se arrepiou, receoso de inalar a podridão que se
materializou, indigesta. Fantasmas de rostos iracundos passeiam, para lá e para
cá, em corridas desenfreadamente às cegas. Às vezes se encontram em esbarrões
surreais, soltando urros tresloucados, como se o inferno tivesse, de repente,
destramelado todas as portas de acesso.
O infinito, por seu turno, se
perdeu, se esfacelou de canto a canto, se desarmonizou em fotografias de
retratos amarelentos, dando, ao local, uma série de quadros exaustivos,
repletados de envelhecimentos precocemente milenares. O tempo fruitivo e
gostoso, melodioso e deleitável, passou ligeiro, sumiu às carreiras. Deixou um
turbilhão de figuras áridas, um batalhão de semblantes sofridos em cada desvão,
em cada canto, em cada mansarda. Rostos envergonhados, despudorados do bom
senso, se apresentam a todo momento, sem serem chamados. Uma saudade dolorida,
cheia de complexos que não se dissolvem criou asas enormes.
Talvez, por essa razão, a
maldita sensação arruaçada de velório reinante, de falecimento insuportável,
não se vai embora, não se deslancha. Igual passo, não arreda, não se divorcia,
não se afugenta. Perdura, insiste, resiste, se faz cada vez mais intransigente,
maior e turbulentamente engrandecida e autônoma. Quem sabe, tudo mudasse, se
uma espiadela carinhosa dos olhos vivos e bondosos de Deus pairasse, por estas
paragens. Certamente salvaria a docilidade... enfim, resguardaria a lenidade
que um dia fixou residência aqui e, sem mais nem menos, se foi embora, no para
sempre, se dilapidando para sempiternos e longevos rincões.
Título e Texto: Carina
Bratt, de Vila Velha, no Espírito Santo. 4-7-2021
Anteriores:
Cúmplice de mera encenação
Linhas byronianas
Incidentes acontecem
Deu ruim
Pausa para pequena meditação
Meus possíveis pontos de uma fuga irreal
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não aceitamos/não publicamos comentários anônimos.
Se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-