domingo, 4 de julho de 2021

[As danações de Carina] Entre o contínuo cair da aridez

Carina Bratt

O TEMPO PASSOU. Se esvaiu, inexorável, a cada dia que correu desembestado. Deixou, atrás de si, uma pesada desordem opressiva de intensa e infinita saudade. Uma saudade insatisfeita, angustiante, dolorida, macambuziada, destoada, cheia de feridas que não se curaram como deveriam. As cicatrizes desse tempo também não se fecharam, ao contrário, viraram, a cada minuto engolido pelos ponteiros do relógio, chagas eternas, cujas marcas seguiram altivas e estão visíveis aos olhos dos mais saudosos, usque aos devaneios, aos sonhos e as quimeras de pessoas que viveram em épocas remotas de um ‘ontem’ desfalecidamente mortificado.

Ventos irrequietos e agitados, devastadores e buliçosos, passaram a soprar a todo instante, fazendo ressurgir cadáveres insepultos, defuntos em estado de decomposição, como se pretendessem varrer, da paisagem bucolizada, todas as lembranças que ainda perduravam guardadas em algum lugar, à sete chaves. Ao apartado, espaçadamente remotado e, por toda parte, a quinta extensa e contínua, esticada desde a banda da linha férrea até o asfalto da BR, se pressente que algo sobrenatural se fez instituído de vontade própria. Um não sei o que destruiu, abateu, em câmera lenta, o reino vegetal que antes se vestia de cores flamantes e suntuosas.

No mesmo tom, as flores coloridas perderam o viço, a exuberância, o vigor, a robustez, o pulso da vibração. As árvores que sobreviveram tentaram conservar as ilusões, os desvarios, os simulacros de um ‘ontem’ que há muito ficou estagnado, imobilizado, represado na sobrecarga da poeira acumulada de décadas e décadas. As casas, que outrora sorriam, estão igualmente, caindo aos pedaços. Seus antigos ocupantes se foram. Partiram. Criaram longas pernas e fugiram, amedrontados, pela estrada que agora é só um caminho abandonado ao acaso em meio a um matagal que mal se dá para enxergar a trilha original. O presente, por sua vez, se institucionalizou.

As variedades do hoje que tomavam conta deste mundinho encantado, sufocaram as recordações, os gritos das crianças, os mugidos dos gados soltos no pasto e os cacarejares das galinhas à porta da cozinha. Havia um poço, logo ali, perto do paiol e da residência do capataz e dos empregados. Um córrego de águas rápidas e límpidas (que desciam das montanhas e cortavam o terreno imenso, em forma de cobras se movendo em lisonjeirados espirais), se escafedeu. Do poço restou um pedaço de muro cheio de ervas daninhas. Do córrego, um fio tênue de líquido barrento pareceu se fartar de pavor e, agora, demonstra ter medo de correr pelo leito serpenteando os quatro cantos da fazenda.

Lá, bem ao distante, uns balanços de correntes enferrujadas choramingam copiosamente a ausência de crianças que vinham se regurgitarem em dardejos trepidantes, enquanto o almoço não ficava pronto e se via servido e posto à disposição da fome severa na mesa ampla da varanda cheia de rosas e margaridas olorosas. No geral, um mau odor ascendeu, emergiu e impregnou as coisas. Encheu o ar, adensou a paisagem, saturou o vento, insuflou o sol. Até o estado deplorável que estanciava toda a localidade, torceu o nariz, se arrepiou, receoso de inalar a podridão que se materializou, indigesta. Fantasmas de rostos iracundos passeiam, para lá e para cá, em corridas desenfreadamente às cegas. Às vezes se encontram em esbarrões surreais, soltando urros tresloucados, como se o inferno tivesse, de repente, destramelado todas as portas de acesso.

O infinito, por seu turno, se perdeu, se esfacelou de canto a canto, se desarmonizou em fotografias de retratos amarelentos, dando, ao local, uma série de quadros exaustivos, repletados de envelhecimentos precocemente milenares. O tempo fruitivo e gostoso, melodioso e deleitável, passou ligeiro, sumiu às carreiras. Deixou um turbilhão de figuras áridas, um batalhão de semblantes sofridos em cada desvão, em cada canto, em cada mansarda. Rostos envergonhados, despudorados do bom senso, se apresentam a todo momento, sem serem chamados. Uma saudade dolorida, cheia de complexos que não se dissolvem criou asas enormes.

Talvez, por essa razão, a maldita sensação arruaçada de velório reinante, de falecimento insuportável, não se vai embora, não se deslancha. Igual passo, não arreda, não se divorcia, não se afugenta. Perdura, insiste, resiste, se faz cada vez mais intransigente, maior e turbulentamente engrandecida e autônoma. Quem sabe, tudo mudasse, se uma espiadela carinhosa dos olhos vivos e bondosos de Deus pairasse, por estas paragens. Certamente salvaria a docilidade... enfim, resguardaria a lenidade que um dia fixou residência aqui e, sem mais nem menos, se foi embora, no para sempre, se dilapidando para sempiternos e longevos rincões.

Título e Texto: Carina Bratt, de Vila Velha, no Espírito Santo. 4-7-2021

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