José Antonio Ureta
A pergunta óbvia que surge
diante dessa drástica medida é a seguinte: Tem um Papa poder para derrogar um
rito que vigorou na Igreja por 1400 anos e cujos elementos essenciais provêm
dos tempos apostólicos? Porque, se de um lado o Vigário de Cristo tem a plena
et suprema potestas nas matérias atinentes “à disciplina e
ao governo da Igreja difundida pelo orbe”, conforme ensina o Concilio Vaticano
I , de outro lado ele deve respeitar os costumes universais da Igreja em
matéria litúrgica.
A resposta é dada de maneira
peremptória no parágrafo n°1125 do Catecismo da Igreja Católica promulgado
por João Paulo II: “Nenhum rito sacramental pode ser modificado ou manipulado
ao arbítrio do ministro ou da comunidade. Nem mesmo a autoridade suprema da
Igreja pode mudar a liturgia a seu bel-prazer, mas somente na obediência da fé
e no respeito religioso do mistério da liturgia”.
Comentando esse texto, o então Cardeal Joseph Ratzinger escreveu: “Parece-me muito importante que o Catecismo, ao mencionar os limites do poder da suprema autoridade da Igreja com relação à reforma, chame a atenção para aquela que é a essência do primado, tal como é sublinhado pelos Concílios Vaticanos I e II: o papa não é um monarca absoluto cuja vontade é lei, mas o guardião da autêntica Tradição e, por isso, o primeiro a garantir a obediência. Ele não pode fazer o que quiser e, justamente por isso, pode se opor àqueles que pretendem fazer tudo o que querem. A lei a que deve se ater não é a ação ad libitum, mas a obediência à fé. Por isso, diante da liturgia, tem a função de um jardineiro e não a de um técnico que constrói máquinas novas e joga as velhas fora. O ‘rito’, ou seja, a forma de celebração e de oração que amadurece na fé e na vida da Igreja, é forma condensada da Tradição viva, na qual a esfera do rito expressa o conjunto de sua fé e de sua oração, tornando assim experimentáveis, ao mesmo tempo, a comunhão entre as gerações e a comunhão com aqueles que rezam antes de nós e depois de nós. Assim, o rito é como um dom concedido à Igreja, uma forma viva de parádosis.” [Termo grego usado 13 vezes na Bíblia, o qual pode ser traduzido por tradição, instrução, transmissão.]
Na sua excelente
obra A Reforma da Liturgia Romana, Mons. Klaus Gamber — considerado
pelo Cardeal Joseph Ratzinger como um dos maiores liturgistas do século XX —
desenvolve esse pensamento. Parte ele da constatação de que os ritos da Igreja
Católica, tomada a expressão no sentido de formas obrigatórias de culto,
remontam em definitivo a Nosso Senhor Jesus Cristo, mas foram se desenvolvendo
e se diferenciando gradualmente a partir do costume geral, sendo depois
corroborados pela autoridade eclesiástica.
Dessa realidade, o ilustre
liturgista alemão tira as seguintes conclusões:
1. “Se o rito nasceu do costume geral — e sobre
isto não há dúvida para o conhecedor da história da liturgia —, não pode ser
recriado na sua totalidade”. Nem no começo da Igreja isso aconteceu, pois “as
formas litúrgicas das jovens comunidades cristãs também se separaram
progressivamente do ritual judaico”.
2. “Como o rito foi se desenvolvendo no transcurso
dos tempos, poderá continuar fazendo o mesmo no futuro. Mas esse
desenvolvimento deverá ter em conta a atemporalidade de cada rito e efetuá-lo
de maneira orgânica (…) sem ruptura com a tradição e sem uma intervenção
dirigista das autoridades eclesiásticas. Estas não tinham outra preocupação nos
concílios plenários ou provinciais senão de evitar irregularidades no exercício
do rito”.
3. “Existem na Igreja vários ritos independentes.
No Ocidente, além do rito romano, existem os ritos galicano (já desaparecido),
ambrosiano e moçárabe; no Oriente, entre outros, os ritos bizantinos, armênio,
siríaco e copta. Cada um desses ritos percorreu uma evolução autônoma, no
transcurso da qual suas particularidades específicas foram formadas. Este é o
motivo pelo qual não se pode simplesmente intercambiar entre eles elementos
desses ritos diferentes”.
4. “Cada rito constitui uma unidade homogênea.
Portanto, a modificação de qualquer de seus componentes essenciais significa a
destruição de todo o rito. Exatamente isto é o que ocorreu pela primeira vez
nos tempos da Reforma, quando Martinho Lutero fez desaparecer o cânon da missa
e uniu o relato da Instituição diretamente com a distribuição da comunhão”.
5. “O regresso a formas primitivas não significa,
em casos isolados, que se modificou o rito, e de fato este regresso é possível
dentro de certos limites. Desta forma, não houve ruptura com o rito romano
tradicional quando o Papa São Pio X voltou a estabelecer o canto gregoriano em
sua primitiva forma”.
O ilustre fundador do
Instituto Teológico de Regensburg prossegue comentando que “enquanto a revisão
de 1965 havia deixado intacto o rito tradicional (…), com o ‘ordo’ de 1969 se
criava um novo rito”, que ele chama de ritus modernus, já que
“não basta, para falar de uma continuidade do rito romano, que no novo missal
tenham sido conservadas certas partes do anterior”.
Para comprová-lo do ponto de
vista estritamente litúrgico — dado que os graves erros teológicos, como o
rebaixamento do caráter sacrificial e propiciatório da missa, mereceriam artigo
à parte —, basta citar o que disse sucintamente o Prof. Roberto de Mattei a
respeito dessa verdadeira devastação litúrgica:
“Durante a Reforma,
introduziu-se gradualmente toda uma série de novidades e variantes, algumas
delas não previstas nem pelo Concílio nem pela constituição Missale
Romanum de Paulo VI. O quid novum não pode se limitar
à substituição do latim pelas línguas vulgares. Consiste também no desejo de
conceber o altar como uma ‘mesa’, para enfatizar o aspecto do banquete em vez
do sacrifício; na celebratio versus populum, em substituição
daquela versus Deum, tendo como consequência o abandono da
celebração para o Oriente, isto é, para Cristo simbolizado pelo sol nascente;
na ausência de silêncio e meditação durante a cerimônia e na teatralidade da
celebração, muitas vezes acompanhada de cantos que tendem a profanar uma Missa
na qual o sacerdote é frequentemente reduzido ao papel de ‘presidente da
assembleia’; na hipertrofia da Liturgia da Palavra em relação à Liturgia
Eucarística; no ‘sinal’ da paz, que substitui as genuflexões do sacerdote e dos
fiéis, como ação simbólica da passagem da dimensão vertical à horizontal da
ação litúrgica; na Sagrada Comunhão, recebida pelos fiéis em pé e na mão; no
acesso das mulheres ao altar; na concelebração, tendendo à ‘coletivização’ do rito.
Consiste, sobretudo e finalmente, na mudança e substituição das orações do
Ofertório e do Cânon. A eliminação em particular das palavras mysterium
fidei da fórmula eucarística pode ser considerada, como o Cardeal
Stickler observa, como o símbolo da desmistificação e, portanto, da humanização
do núcleo central da Santa Missa”.
A maior revolução litúrgica
ocorreu de fato no Ofertório e no Cânon. O Ofertório tradicional, que preparava
e prefigurava a imolação incruenta da Consagração, foi substituído pelas Beràkhôth do Kiddush,
ou seja, pelas bênçãos da ceia pascal dos Judeus. O Pe. Pierre Jounel, do
Centro de Pastoral litúrgica e do Instituto Superior de Liturgia de Paris, um
dos especialistas do Consilium que preparou a reforma litúrgica, descreveu no jornal La
Croix o elemento fundamental da reforma da Liturgia da Eucaristia: “A
criação de três Orações Eucarísticas novas quando até então não existia senão
uma, a Oração Eucarística I, fixada no Canon Romano desde o século IV. A
Segunda foi retomada da Oração Eucarística de [São] Hipólito (século III) tal
como foi descoberta numa versão etíope no fim do século XIX. A Terceira se
inspirou do esquema das liturgias orientais. A Quarta foi elaborada numa noite,
por uma pequena equipe em torno do Pe. Gelineau”.
O referido Pe. Joseph
Gelineau, S.J. não estava enganado quando saudava entusiasmado a reforma,
declarando: “Na verdade, é uma outra liturgia da Missa. É preciso dizê-lo sem
rodeios: o rito romano tal como nós o conhecíamos não existe mais, ele foi
destruído”.
Como, então, pretende o Papa
Francisco afirmar, em sua recente carta aos bispos, que “quem queira celebrar
com devoção segundo a anterior forma litúrgica não terá dificuldade em
encontrar no Missal Romano reformado segundo a mente do II Concílio do Vaticano
todos os elementos do Rito Romano, em particular o cânone romano, que constitui
um dos seus elementos mais caracterizantes”? Parece uma ironia tão amarga
quanto o título do motu próprio Custódios da Tradição…
Se o Novus Ordo Missae não
é uma mera reforma e implica uma tal ruptura com o rito tradicional, a
celebração deste último não pode ser proibida, pois, como reitera Mons. Klaus
Gamber, “não existe um só documento, nem sequer o Codex Iuris canonici,
que diga expressamente que o Papa, enquanto Pastor supremo da Igreja, tenha o
direito de abolir o rito tradicional. Tampouco se fala em alguma parte que
tenha o direito de modificar os costumes litúrgicos particulares. No caso
presente, este silêncio é de grande significado. Os limites da plena et
suprema potestas do Papa têm sido claramente determinados. É
indiscutível que, para as questões dogmáticas, o Papa deve se ater à tradição
da Igreja universal e, por conseguinte, segundo São Vicente de Lérins, ao que
se tem crido sempre, em todas as partes e por todos (quod semper, quod
ubique, quod ab omnibus). Vários autores expressamente adiantam que, em
consequência, não compete ao poder discricionário do Papa abolir o rito
tradicional”.
Mais ainda, caso o fizesse,
incorreria no risco de separar-se da Igreja. Mons. Gamber escreve, de fato, que
“o célebre teólogo Suárez (+ l6l7), referindo-se a autores mais antigos como
Caetano (+ 1534), pensa que o Papa seria cismático se não quisesse, como é seu
dever, manter a unidade e o laço com o corpo completo da Igreja, como por
exemplo, se excomungasse toda a Igreja ou se quisesse modificar todos os ritos
confirmados pela tradição apostólica”.
Foi provavelmente para evitar
esse risco que oito dos nove cardeais — da Comissão nomeada por João Paulo II
em 1986 para estudar a aplicação do Indulto de 1984 — declararam que Paulo VI
não tinha realmente proibido a Missa antiga. Mais ainda, à pergunta: “- Pode um
bispo proibir hoje a um sacerdote em situação regular de celebrar uma missa
tridentina?”, o Cardeal Stickler afirmou que “os nove cardeais foram unânimes
em dizer que nenhum bispo tinha o direito de proibir um padre católico de
celebrar a missa tridentina. Não há nenhuma proibição oficial, e eu penso que o
Papa não decretará nenhuma proibição oficial”.
O Papa Francisco, porém, no
motu próprio Traditionis Custodes, autorizou de fato aos
bispos a proibir dita celebração. Tanto é assim que a Conferência Episcopal da
Costa Rica se apressou em decretar coletivamente que “não se autoriza a o uso
do Missale Romanum de 1962 nem de nenhuma das expressões da
liturgia anterior a 1970”, pelo que “nenhum presbítero tem autorização para
continuar celebrando segundo a liturgia antiga”.
Por todo o anterior,
subscrevemos plenamente as conclusões tiradas pelo Pbro. Francisco José
Delgado: “Acho que a coisa mais inteligente a fazer agora é defender com muita
calma a verdade sobre as leis perversas. O Papa não pode mudar a Tradição por
decreto ou dizer que a liturgia pós-Vaticano II é a única expressão da lex
orandi no Rito Romano. Como isso é falso, a legislação que brota desse
princípio é inválida e, segundo a moral católica, não deve ser observada, o que
não implica em desobediência.”
Não é preciso possuir um
conhecimento especializado de eclesiologia para compreender que a autoridade e
a infalibilidade papais têm limites e que o dever de obediência não é absoluto.
São numerosos os tratadistas do melhor quilate que reconhecem explicitamente a
legitimidade da resistência pública às decisões ou ensinamentos errados dos
pastores, inclusive do Soberano Pontífice. Eles foram amplamente citados no
estudo de Arnaldo Xavier da Silveira intitulado “Resistência pública a
decisões da autoridade eclesiástica”, publicado pela revista Catolicismo em
agosto de 1969.
No caso atual, é lícito não
apenas “não observar” o motu próprio do Papa Francisco, mas até resistir à sua
aplicação, segundo o modelo ensinado por São Paulo (Gal 2, 11). Não se trata de
pôr em discussão a autoridade pontifícia, pela qual devem sempre crescer nosso
amor e nossa veneração. É o próprio amor ao Papado que nos deve levar a
denunciar Traditionis Custodes, por pretender eliminar
ditatorialmente o rito mais antigo e venerável do culto católico, no qual todos
os fiéis têm o direito de abeberar-se.
Observa o ilustre teólogo
Francisco de Vitoria (1483-1486): “Por direito natural, é lícito repelir a
violência pela violência. Ora, com tais ordens e dispensas, o Papa exerce
violência, porque age contra o Direito, conforme ficou acima provado. Logo, é
lícito resistir-lhe. Como observa Caetano, não afirmamos tudo isto no sentido
de que cabe a alguém ser juiz do Papa ou ter autoridade sobre ele, mas no
sentido de que é lícito defender-se. A qualquer um, com efeito, assiste o
direito de resistir a um ato injusto, de procurar impedi-lo e de se defender”.
O modelo de resistência firme,
mas impregnada de veneração e respeito pelo Sumo Pontífice, através da qual os
católicos podem hoje pautar a sua própria reação, é a Declaração de Resistência
à Ostpolitik do Papa Paulo VI, redigida pelo saudoso Prof.
Plinio Corrêa de Oliveira com o título “A política de distensão do Vaticano com
os governos comunistas – Para a TFP: omitir-se? ou resistir?”. Dizia ela, no
seu parágrafo crucial:
“O vínculo da obediência ao
Sucessor de Pedro, que jamais romperemos, que amamos com o mais profundo de
nossa alma, ao qual tributamos o melhor de nosso amor, esse vínculo nós o
osculamos no momento mesmo em que, triturados pela dor, afirmamos a nossa
posição. E de joelhos, fitando com veneração a figura de S.S. o Papa Paulo VI,
nós lhe manifestamos toda a nossa fidelidade.
“Neste ato filial, dizemos ao
Pastor dos Pastores: Nossa alma é Vossa, nossa vida é Vossa. Mandai-nos o que
quiserdes. Só não nos mandeis que cruzemos os braços diante do lobo vermelho
que investe. A isto nossa consciência se opõe.”
Título e Texto: José Antonio Ureta, Fratres
In Unum. com, 23-7-2021
ESTA MERDA É COMUNISTA, ARGENTINO NÃO TEM ESTIRPE HONESTA PARA SER PAPA.
ResponderExcluirMissa em latim? Não! Missa em eclesialês.
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