Deixamos de ser Portugal para ser outra
coisa qualquer, não sei o quê…
Otto Czernin
Nós sempre tivemos a mania de
ser os maiores.
Eu andei muitos anos num
colégio interno em Abrantes, o famoso e temeroso La Salle. Quando fui para lá
tinha 10 ou 11 anos. Ainda me lembro do dia em que lá cheguei. Foi num domingo,
já às portas do Outono, se não me engano em setembro de 1968. Nessa altura
morava no Monte Estoril, no Largo Ostende, feio e famoso pelas suas garagens
automóveis. Depois da ida à Igreja dos Inglesinhos, como nós lhe chamávamos,
por ser maioritariamente frequentada por estrangeiros e porque os padres eram
irlandeses dominicanos enviados a Portugal logo após a implantação da
república, o que não deixa de ser irónico, Portugal, país de missionários,
passar a país de missão…
Enfim, depois da missa, lá
partimos para Abrantes, a minha Mãe, nascida e criada em Cascais, a minha Avó
inglesa e o meu Pai, austríaco, ao volante de um velho VW. Chegámos por volta
das seis da tarde, já o sol ia baixo. Fomos recebidos e conduzidos à longa
camarata. Eram para cima de 150 camas, divididas por quatro filas. Fiquei com o
número 149, número que se manteve até 1973, data em que me vim embora, após
cinco anos de estadia em regime de pensão completa.
Portugal estava nessa altura
em plena guerra de África.
E eu lembro-me perfeitamente da primeira sova que levei. Foi no balneário do hóquei, dada por um preto da Guiné, chamado Rui. Era mau como as cobras, mas depois ficámos amigos, pois foi ele o nosso treinador de hóquei. No La Salle havia uma seita de pretos que mandava naquilo. Havia também uma seita de alentejanos e ribatejanos, marialvas da província, com muitos irmãos, que vestiam sempre as melhores samarras e tinham sempre os melhores botins. No Inverno andavam de safões de pele e isso então era “o máximo”, enchendo todos os outros de inveja. Pareciam uns “cowboys” em miniatura.
Nessa altura eu fazia parte da
equipa de hóquei do colégio e, quando jogávamos em casa, a numerosa claque, que
nos apoiava da bancada, cantava a plenos pulmões: “É nossa! É nossa! É nossa!”
(mais tarde vim a perceber que se referiam a Angola) e isso enchia-nos de
orgulho. Eu, por não ser puro-sangue, ficava sempre com uma pontinha de inveja.
Consolava-me o facto do meu bisavô materno ter sido um dos heróis da África portuguesa do século XIX, colega de armas de Mouzinho e Paiva Couceiro. De manhã, quando íamos para as aulas, tínhamos à nossa frente o famoso mapa de Minho a Timor. Isso também me causava um misto de orgulho e inveja. O Napoleão fizera gato-sapato da Áustria, esta não tinha colónias, confundia-se com a Austrália, falava a língua dos alemães, não tinha touros nem forcados, eram todos lourinhos e insípidos e sei lá mais o quê.
Consolava-me também o facto de
o treinador do Benfica na altura se chamar Otto Glória, apesar de a mim me
faltar a tal glória.
Em 1973 saí de Abrantes e fui
para o Colégio de S. Miguel, também interno, mas aí já com muitos vícios e
manhas na bagagem. Só lá durei o ano letivo de 73/74 e os ecos do 25 de abril
apanharam-me já com o pé no estribo para voltar para casa.
Lembro-me de ver pintada nos
muros da estrada nacional da Batalha a palavra LUAR. Não sabia bem o que era
aquilo, mas, no íntimo, pressentia que não era bom, tal como a foice e o
martelo que também nos inspiravam horror e desconfiança.
Mas o céu estava cada vez mais
cinzento para Portugal, com o Professor Marcello Caetano muito desconfortável
na cadeira do poder, desconforto esse que Salazar já dificilmente conseguira
disfarçar no ocaso do seu longo e difícil consulado.
Nesses primeiros meses pouco
se passou. Claro que a minha estada no Colégio de S. Miguel acabou com um
“convite” para sair, e o meu pai lá me trouxe de volta ao Monte Estoril.
Lisboa ainda era uma cidade
limpa. No entanto, aqui e ali, iam aparecendo os primeiros cartazes, mal
colados e à socapa. E um dos primeiros que apareceram dizia assim: “Angola,
Moçambique, Cabo Verde, Guiné, países crucificados…” exibindo ao centro um
enorme Cristo negro.
O meu pai, já com 74 anos e
com duas guerras mundiais no currículo e a sua querida Boémia amordaçada pelo
comunismo, imediatamente mandou imprimir cartazes com os seguintes dizeres:
“Polônia, Hungria, Checoslováquia, Roménia, países crucificados…”, que poucos
dias depois fomos colar para Lisboa, logo de madrugada, perante os olhares de
indiferença de alguns e desprezo de outros, todos apressadamente a caminho do
trabalho.
Todos sabemos o que se passou
a seguir e cada um tem as suas histórias. Mas o orgulho que eu tinha por
Portugal, esse nunca esmoreceu. Nem com o descalabro do PREC, nem com a perda
dos territórios ultramarinos, nem com coisa nenhuma.
Eu era o Otto Luís Marie
Czernin, mas tinha uma pena imensa de não ser o Luís Azevedo. E assim, depois
de uma curta estadia na Áustria, de 1975 a 1982, lá voltei, deixando para trás
toda a minha família.
E o meu orgulho mantinha-se
intacto; tudo o que eu abominava na Áustria, a ordem, o perfeito funcionamento
de pessoas e instituições, o ambiente ordeiro e bem-organizado, a ausência de
beatas no chão, a ausência de discussões na rua, a ausência de grafitos nas
paredes, enfim, cá era tudo ao contrário.
Portugal tinha vida, com os
restaurantes baratos a abarrotar, as constantes confusões e mal-entendido, a
alegre e despreocupada desorganização, a fotogênica sujidade, o permanente
“laisser faire, laisser passer”, tudo isso embriagava a minha alma e alegrava o
meu espírito.
E assim, cantando e rindo,
Portugal lá entrou para a CEF, começando também a Europa a “entrar” em
Portugal, primeiro com uns aguaceiros de dinheiro, mais tarde com verdadeiras
chuvaradas.
Cavaco lá foi ganhando maiorias de mangas arregaçadas e nós deixamos de ser
Portugal para ser outra coisa qualquer, que eu ainda não percebi bem o que é.
Hoje agradeço o meu passaporte
austríaco e já não me importo de não ser o Luís Azevedo.
E começo a pensar no que seria
este país se ainda tivéssemos juntas de bois a puxar os barcos de pesca, se
ainda tivéssemos burros a carregar os tacos de golfe, se ainda tivéssemos
velhotes segurando raquetes de pingue-pongue a substituir os semáforos na linha
do 28, as longas e coloridas procissões das aldeias e sei lá mais o quê?
Pequenos pormenores que todos
juntos dão uma coisa chamada tradição, o fermento da alma de um povo.
Seríamos talvez uma Suíça
(porque até a Suíça tem tradições, basta lembrar que até há bem pouco havia um
cantão onde apenas votavam os homens), seríamos talvez essa Suíça ou Áustria,
com sol e praia, e todo o resto, as empresas, o PIB, o poder de compra, a
simplicidade, o Estado a funcionar, com políticos anônimos que raramente
aparecem nos jornais e tudo o mais. Mas não.
Ficamos reduzidos ao CR7, uma
pequenina bomba de oxigénio coletiva, e de cada vez que aparece mais uma, como
agora o Oliveira “das motas”, é rapidamente colocada no coração do povo e
tratada como mais um cromo para a coleção. São estes agora os nossos heróis?
A acrescentar àqueles a que se
refere um estudo encomendado pelo Centre for European Policy Studies (CEPS)
a pedido do Parlamento Europeu, que diz que entre vinte e cinco pessoas mais
beneficiadas pelos fundos comunitários entre 2014 e 2020, surgem sete
portugueses. Estes sete multiplicados por várias centenas de amigos e
conhecidos dá alguns milhares, os tais que diariamente vemos passar nas nossas
autoestradas, montados em carros de alta cilindrada. Isto, numa economia que
não chega a pesar um por cento da europeia, dá que pensar.
Estaremos reduzidos a um país
onde apenas os restaurantes funcionam, atafulhados com os plasmas da Sport TV e
com clientes de olhar apático agarrados aos telemóveis, martelando furiosamente
nas pobres sapateiras, como se não tivessem mais ninguém com quem falar?
Título e Texto: Otto Czernin, o Diabo, nº 2324, 16-7-2021
Digitação: JP, 27-7-2021
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