Eis a verdade: uma elite 'progressista' tem tentado impor o uso desses termos sem sentido por questões ideológicas e para sinalizar falsa virtude
Rodrigo Constantino
“O convite para reinauguração do Museu da Língua Portuguesa abre com ‘todes’, termo usado por idiotas e que não existe na língua portuguesa. A maior parte do povo das ciências humanas e letras prova que a estupidez pode ter doutorado. Essa é a estupidez de cátedra.” Esse foi o desabafo do filósofo Luiz Felipe Pondé nas redes sociais contra o uso da tal “linguagem neutra” pelo governo de São Paulo.
Já o secretário de Cultura do governo Doria, Sérgio Sá Leitão, politizou o assunto e aproveitou para atacar os adversários: “A abertura do novo Museu da Língua Portuguesa fez aflorar novamente (e de modo intenso) o autoritarismo, a intolerância e o ódio à cultura que Bolsonaro e seus acólitos cultivam com orgulho. Não aceitam que em São Paulo o governo estadual preze a arte, a ciência e a democracia”. Fica a dúvida: o que “todes” tem a ver com arte, ciência ou democracia?
Eis a verdade: uma elite “progressista” tem tentado impor o uso desses termos sem sentido por questões ideológicas e para sinalizar falsa virtude. O sujeito fala “todes” e já se sente descolado, moderno, inclusivo e tolerante, olhando com desprezo para os “preconceituosos” que insistem no uso correto da língua. Fosse apenas um modismo qualquer, não mereceria maior atenção. O problema é que palavras importam. No começo era o Verbo!
Confúcio teria feito um alerta importante: “Quando as palavras perdem seu significado, as pessoas perdem sua liberdade”. O uso adequado das palavras é essencial para a compreensão da realidade, para nosso próprio raciocínio. Sem isso, entramos em um pântano perigoso. Se o que é dito não tem sentido claro, então o cinismo acaba corroendo tudo.
A linguagem “serve para que os homens se entendam e se aproximem”, escreveu o prêmio Nobel de Literatura peruano, Mario Vargas Llosa. Por isso mesmo, aqueles que desejam inviabilizar o pensamento límpido costumam escolher como principal alvo os conceitos das palavras, ou destruir as próprias palavras. Os manipuladores deturpam a linguagem para lançar uma nuvem de poeira no raciocínio de suas vítimas.
Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força. Tudo é todes, daria para acrescentar hoje
Em sua clássica distopia 1984, George Orwell chamou de duplipensar “a capacidade de guardar simultaneamente na cabeça duas crenças contraditórias e aceitá-las ambas”. O objetivo das autoridades seria a destruição do pensamento independente: “O poder está em se despedaçar os cérebros humanos e tornar a juntá-los da forma que se entender”. Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força. Tudo é todes, daria para acrescentar hoje.
Para Orwell, uma linguagem com regras aceitas e mutuamente compreendidas era condição indispensável a uma democracia aberta. Karl Popper era outro que defendia como um dever de todo intelectual “o cultivo de uma linguagem simples e despretensiosa”. E foi além: “Quem não pode falar de modo simples e claro deve calar-se e continuar trabalhando até que possa fazê-lo”. Se todos entendem o que se quer dizer com “todos”, por que raios deveríamos adotar o “todes”, que não quer dizer nada?
Para Isaiah Berlin, a meta da filosofia é sempre “ajudar os homens na compreensão de si mesmos e assim operar na claridade, e não loucamente, no escuro”. Em seu livro A Força das Ideias, Berlin resume: “Uma retórica pretensiosa, uma obscuridade ou imprecisão deliberada ou compulsiva, uma arenga metafísica recheada de alusões irrelevantes ou desorientadoras a teorias científicas ou filosóficas (na melhor das hipóteses) mal compreendidas ou a nomes famosos, é um expediente antigo, mas no presente particularmente predominante, para ocultar a pobreza de pensamento ou a confusão, e às vezes perigosamente próximo da vigarice”.
Seja na escolha deliberada pela prosa confusa, seja no uso de palavras sem sentido nítido, mas com cores ideológicas, esse tipo de ataque à linguagem acaba prejudicando a população e ameaçando a própria liberdade. Não é paranoia. Não foram poucos os que encontraram elo entre uma língua clara, rica e objetiva e o progresso dos povos. Sir Winston Churchill mesmo, o maior estadista do século 20, tem um livro chamado Uma História dos Povos de Língua Inglesa, e foi com suas palavras em seus discursos que ele conseguiu mobilizar os britânicos para a defesa da civilização ocidental. O político britânico Daniel Hannan, nascido no Peru, em seu livro Inventing Freedom, sustenta a tese de que não é coincidência a liberdade individual ter prosperado nos territórios dominados pelo inglês.
“A língua inglesa tem sido tanto um veículo como um garantidor da liberdade ao longo dos séculos”, afirma o autor. A solidez e o pragmatismo do inglês têm bastante ligação com a forma como ele evoluiu. Para Hannan, os que falavam inglês sempre encararam sua língua da mesma forma como enxergam suas instituições políticas e legais, como uma propriedade do povo e não do Estado. Assim como o “common law”, que evoluiu de baixo para cima caso a caso, sem supervisão central, assim aconteceu com a língua inglesa. Está mais para uma formação rochosa do que para um constructo deliberado e imposto por uma elite intelectual.
A língua é viva, mas prática, adapta-se, mas de forma orgânica, natural. Com isso, o inglês sempre atendeu aos objetivos dos povos, facilitando negócios, enriquecendo o debate com uma quantidade incrível de palavras e permitindo a expressão dos pensamentos da maneira mais clara possível. Enquanto a França tinha a Academia Francesa controlando os aspectos linguísticos desde sua fundação pelo cardeal Richelieu, em 1635, e a Espanha fazendo o mesmo com a Real Academia Espanhola criada por Filipe V em 1714, não se encontra uma mesma entidade no mundo anglo-saxão. O mais perto que se chega disso é o dicionário Merriam-Webster nos Estados Unidos, criado em 1828 por Noah Webster, e o Oxford English Dictionary, publicado em 1928, ambos iniciativas privadas.
O inglês, assim, é livre, voraz, voluntário. Possui duas vezes mais palavras que o francês e três vezes mais que o espanhol. O inglês moderno emergiu de uma sociedade misturada com várias línguas, com fortes pitadas do velho inglês, da elite francesa, do latim escrito. Mas o principal fator de seu relativo sucesso é a ausência de regulação, podendo assimilar o que considera útil, pela ótica dos próprios usuários da língua. Portanto, um típico conservador norte-americano não será contra mudanças na língua; ele será contra mudanças impostas por elites políticas e burocratas por razões ideológicas, o que é bem diferente.
E é exatamente isso que a
patota da ideologia de gênero vem tentando fazer, com apoio de Hollywood, boa
parte da imprensa e da academia. Não é algo em que o povo tenha qualquer
interesse. É por isso que soa tão artificial. A elite “progressista” brasileira
adora copiar só aquilo que não presta dos Estados Unidos. É assim que um
jornalista ou estudante universitário diz “todes” sentindo-se a alma mais bondosa
do planeta, enquanto não passa de um instrumento nesse esforço deliberado de
destruir a linguagem para escravizar mentes. Todos com sensatez percebem isso.
“Todes” os outros não.
Título e Texto: Rodrigo
Constantino, revista Oeste, nº 71, 30-7-2021
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