Péricles Capanema
Cansaço ameaçador.
Provocada pelo cansaço, a
retirada vergonhosa dos Estados Unidos do Afeganistão significou a derrota do
forte sonhador pelo fraco fanatizado. Um calafrio de insegurança percorreu de
alto a baixo a coluna vertebral de todos os aliados dos Estados Unidos na
região. A opinião pública dos Estados Unidos, no geral, cansou-se da guerra do
Afeganistão. Bateu o desalento. Não aceita mais sacrifícios. Em especial, os
contribuintes, que lá enterraram cerca de dois trilhões de dólares.
Tudo isso estrila nos ouvidos
da classe política. Lamento supor, desejaria que acontecesse o contrário, mas
os norte-americanos não fugirão da dor. Não vai demorar, despencarão
multiplicados os sacrifícios sobre o povo dos Estados Unidos em decorrência da
presente atitude do governo de Washington.
De passagem, o maior e mais
importante campo de batalha de momento e nos meses futuros não estará no
Afeganistão, mas no interior da opinião pública norte-americana. Ali se estará
decidindo em larga medida o futuro próximo do povo afegão. E até dos aliados
dos Estados Unidos, se não da própria nação do norte.
Celebrações
reveladoras.
Estamos assistindo a uma das
maiores derrotas dos Estados Unidos em sua história. E é o primeiro grande
fracasso de política exterior do governo Biden. Mais: o fracasso não é apenas
dos Estados Unidos, é também do Ocidente. Estão sendo evacuados os cidadãos dos
Estados Unidos, França, Inglaterra, Alemanha. Nenhum chinês, nenhum russo.
A China saudou simpática o novo regime talibã — na língua pashtun, talibã significa estudante; serão os estudantes e praticantes da lei de Maomé. A Rússia já declarou que vai manter a embaixada em Cabul trabalhando normalmente.
No Brasil, o Partido da Causa
Operária, marxista-leninista, celebrou a vitória talibã por representar derrota
acachapante do “imperialismo norte-americano”.
Em Cabul comboios de talibãs
gritam “Death to America” — morte aos Estados Unidos. Daqui a pouco, temor
generalizado, com vivas de correntes que se proclamam progressistas, o
Afeganistão retrocederá por tempo indeterminado para o horror obscurantista.
Continua letalmente ativo o
perigo principal.
A guerra do Afeganistão tem vinte
anos, começou em 7 de outubro de 2001 com a Operação Liberdade Duradoura
desencadeada pelo presidente George W. Bush; ele queria impedir que o país
asiático servisse de santuário para agrupações terroristas, na ocasião em
especial a Al-Qaeda — hoje são várias de letalidade parecida com aquela — que
havia perpetrado em 11 de setembro o atentado contra as Torres Gêmeas,
pertencentes ao complexo comercial do World Trade Center. Outras nações
participaram do referido esforço militar, como a França, Alemanha e Reino
Unido.
O grupo islâmico terrorista
foi rapidamente apeado do poder, mas infelizmente continuou subjugando e
aterrorizando extensas áreas. Com a retirada das tropas norte-americanas, a
intimidação moral prevaleceu de novo, e os talibãs dominaram rapidamente o país
inteiro. E o que agora provavelmente acontecerá? O Afeganistão será de novo
santuário de organizações terroristas que ali se prepararão para atacar países
do Ocidente, em especial Estados Unidos, Alemanha, França, Inglaterra. É
questão de ano, ano e pouco. Contudo, nenhum atentado ali será planejado contra
instalações da Rússia ou da China. O motivo determinante da invasão da 2001
continua inteiro.
Passivo pesado.
A guerra custou quase dois
trilhões de dólares. Os Estados Unidos gastaram oitenta e dois bilhões de
dólares na modernização das forças de segurança do Afeganistão treinamentos e
equipamentos. Todo esse arsenal moderno caiu nas mãos do Talibã que agora tem
presença militar forte na região.
Morreram nos vinte anos de
presença norte-americana no Afeganistão mais de dois mil soldados dos Estados
Unidos (fora feridos, adoecidos e amputados da guerra), quase oitenta mil
militares e membros das forças policiais, por volta de oitenta mil civis, em
torno de noventa mil afegãos de grupos contrários aos Estados Unidos. Erros de
avaliação dos setores dirigentes norte-americanos, dos seus serviços de
informação, além de concepções ingênuas e otimistas, ameaçam tornar inútil todo
esse sacrifício.
Perspectivas.
O Talibã, segundo cálculos de
organizações norte-americanas, tem negócios oriundos do tráfico de drogas
(ópio, em especial), extorsão de proprietários nas regiões subjugadas, cobrança
de “pedágio” de fazendeiros plantadores de papoula, de donos de minas. E ainda
recebem doações provenientes dos países do Golfo, ricos em petróleo, em geral
com base em motivos religiosos. O maior produtor de ópio no mundo é o
Afeganistão, e aqui está a grande fonte de renda dos talibãs. À maneira dos
narcoterroristas colombianos, temos dirigentes talibãs metidos no tráfico de
drogas, useiros com os métodos das máfias, gestores de fundos provenientes do
Golfo Pérsico. De outra forma, constituiu-se em Cabul um governo composto de
grupos celerados, sem escrúpulos, com histórico macabro; já tiranizou o país
vinte anos atrás.
Desengajamento
indisfarçado.
Na segunda-feira, 16 de
agosto, o presidente Joe Biden fez discurso circunstanciado à nação americana
no qual foi tragicamente claro:
“Nossa missão nunca foi
construir uma nação. Vamos focar nas ameaças de 2021, o terror deitou metástases
além do Afeganistão. Conduzimos ações antiterroristas em muitos países onde não
temos presença militar permanente. Se necessário, faremos o mesmo no
Afeganistão. Mantenho minha decisão [de abandonar o Afeganistão]. O que
aconteceu no Afeganistão é que a liderança política se entregou e fugiu. As
forças norte-americanas não podem e não devem lutar em uma guerra na qual as
forças afegãs não querem lutar. Gastamos mais de um trilhão de dólares.
Treinamos e equipamos uma força militar de 300 mil homens. Incrivelmente bem
treinada, maior que a força militar de muitos de nossos aliados na NATO, demos
a ela todos os equipamentos pelos quais precisariam pagar. Salários da força
aérea, equipamentos que o talibã não tem, o talibã não tem força aérea. Demos a
eles todas as condições para determinar seu próprio futuro. O que não lhes
podíamos dar era a vontade de lutar pelo seu futuro. Embora haja soldados
valentes nas armas afegãs, aquele é incapaz de fazer frente real aos talibãs. É
errado ordenar que tropas americanas façam um serviço que as próprias forças
afegãs não querem fazer”.
“Manifest destiny”.
Correntes da opinião pública
dos Estados Unidos reconhecem que seu país tem vocação universal, nascida dos
fatos, na preservação das liberdades no mundo. Tal destino manifesto
naturalmente traz engajamento, reclama o fim da funesta e dissolvente saturação,
que intoxica parte enorme do público. Outras correntes vão por rumo oposto, são
isolacionistas, recusam tal dever, colocam de forma inadequada os Estados
Unidos em primeiro lugar, esquecendo-se pelo menos na prática os deveres do
destino comum partilhado com as demais nações. Tal vocação de proteção natural
não deve ser renegada. A lógica o exige, os maiores interesses humanos o
exigem. Trata-se agora de estimulá-la. Substituir o cansaço, postura
derrotista, por ânimo e determinação, posição que leva à vitória.
Título, Imagem e Texto: Péricles
Capanema, ABIM,
22-8-2021
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