Jair Bolsonaro tem muita live, passeio de motocicleta etc. O STF tem o apoio cego de um Congresso morto de medo com o passivo penal de seus membros
J. R. Guzzo
Morreu, foi enterrado em cova
rasa e não será ressuscitado enquanto os ministros do Supremo Tribunal Federal
não deixarem, o assunto político mais sensacional deste ano — a adoção, nas
eleições de 2022, de modificações no sistema de votação, com o objetivo de
torná-lo mais seguro e verificável. É onde anda a política brasileira de hoje.
Quando uma questão dessas, que deveria ser absolutamente técnica, racional e
neutra, se transforma, a exemplo dos antigos títulos de filme, num violento
“duelo de paixões” entre as partes, fica-se com uma ideia sobre o baixo nível
da vida pública praticada neste país. Fazer o quê? É assim que funciona.
A única vantagem, para o
público pagante, é que a mídia finalmente vai parar de falar no assunto. Já
deu, realmente, o que tinha de dar — quem aguenta continuar ouvindo essa
conversa? Por mais extravagante que pareça a ideia, chegaram a inventar, numa
tentativa de manter as emoções em sua temperatura mais alta, que “os militares”
tentaram intimidar a Câmara dos Deputados e o resto da politicalha nacional com
um desfile de carros blindados no dia da votação do assunto. O desfile fez
parte de uma operação que ocorre há 33 anos numa região de Goiás próxima a
Brasília; já vinha rolando havia dias, mesmo porque é impossível montar um
negócio desses de hoje para amanhã. Mas e daí? Na guerra para manter o Brasil
em atmosfera de catástrofe iminente e inevitável está valendo de tudo. O
desfile virou ameaça à democracia no Brasil e no mundo.
Os blindados passaram por
Brasília, foram embora e não aconteceu coisa nenhuma, é claro. Que raio poderia
ter acontecido? Serviu, apenas, para encher página de jornal e permitir
exibição de valentia por parte de político que se enche de coragem quando
enfrenta general manso, mas que sai correndo apavorado assim que vê general
bravo. “Ninguém vai nos intimidar”, etc. etc. etc. Querem enganar a quem? Em
todo caso, é um fecho perfeitamente adequado para a coisa toda — farsa acaba em
farsa. A questão nunca foi séria. De um lado, não se comprovou fraude na
eleição de 2018 — o sistema foi, sim, invadido por um marginal (chamam de hacker),
mas até a Nasa, o Pentágono e a Santa Sé vivem sendo invadidos e não acontece
nada. De outro lado, não se demonstrou com um mínimo de lógica por que um
sistema físico não pode ser aperfeiçoado — e muito menos por que a mudança
proposta seria a destruição da democracia.
O que aconteceu, na verdade, não foi uma discussão honesta com o propósito de servir aos interesses do cidadão brasileiro. Houve, isso sim, mais um teste de força entre a Presidência da República e o STF — e o STF ganhou mais uma vez, pela boa e simples razão de que é mais forte que o presidente. Jair Bolsonaro tem muita live, passeio de motocicleta etc. O STF tem o apoio cego de um Congresso morto de medo com o passivo penal de seus membros, o poder da caneta que coloca suas ordens em vigor e o aplauso incontrolável da mídia e da elite — política, econômica, intelectual e de todos os outros tipos, num arco que vai do sistema OAB-CNBB-escritórios de advocacia para corruptos às empreiteiras de obras públicas que sobreviveram à Lava Jato. Os tanques de guerra do Exército, supostamente os tanques “de Bolsonaro”, passam por Brasília e vão embora. O ministro Luís Roberto Barroso fica, manda e todo mundo obedece — general, marechal, almirante de esquadra, senador, deputado, presidente da República, Deus e todo mundo. Isso é a vida como ela é. O resto é conversa fiada.
A Câmara, em seu conjunto,
rejeitou a proposta de mudanças no voto para 2022 e se ajoelhou diante do STF
em obediência ao instinto mais primitivo do político brasileiro — ficar do lado
que ganha. Os deputados já cheiraram há muito tempo que o Judiciário é mais
forte que o Executivo, que um manda e que o outro obedece. Sabe que ele
próprio, o Legislativo, fica de quatro diante do tribunal; num dos momentos
mais baixos da sua história, aceitou há pouco que o STF enfiasse na cadeia,
levado pela polícia, um deputado federal. Isso mesmo — um deputado federal no
exercício de mandato, que tem imunidade parlamentar por força da Constituição e
cujos atos só podem ser apreciados pela própria Câmara. Imunidade parlamentar?
Foro privilegiado? Qual? Por medo físico do Supremo, de quem dependem para
sobreviver às suas tempestades diante da lei criminal, nada disso vale. O que
vale é saber o que os ministros estão querendo e obedecer rapidinho.
Na votação final, o “voto
impresso” teve até mais votos — 229 contra 218
O próprio caso do “voto
impresso” é um exemplo perfeito dessa subserviência que começa na presidência
do Senado e da Câmara, passa pelas mesas e acaba no fundão do plenário. A
Câmara havia aprovado, em ato legislativo impecável, uma lei estabelecendo a
adoção de mudanças que permitiriam a impressão de comprovantes de votação — que
não seriam levados para casa com o eleitor, mas ficariam em cada urna, à espera
de verificação posterior pelos partidos. O STF anulou a lei, pura e
simplesmente. Segundo os ministros, ela seria “inconstitucional”, por dar
chances de romper o sigilo do voto — um disparate que jamais conseguiram
explicar até hoje de maneira minimamente compreensível. Se a Câmara pode ter
uma decisão como essa jogada no lixo, qual a razão para alguém achar que a
separação de Poderes está valendo no Brasil? Os deputados baixaram a cabeça,
disseram “sim, senhor” e ficou por isso mesmo. Alguns parlamentares, tempos
atrás, resolveram reabrir o assunto. Não era um grupo pequeno: na votação
final, o “voto impresso” teve até mais votos — 229 contra 218. Mas não era
grande o suficiente — ficou abaixo dos 308 necessários para a aprovação do
projeto. O caso, de qualquer forma, já estava resolvido. O STF, logo no começo
da discussão, entrou em transe: nenhuma mudança seria permitida, informou o
ministro Barroso. Ele chegou a ir à Câmara, pessoalmente, para convencer os
deputados a rejeitar a proposta de mudanças. Convenceu.
Fica aberta, no atestado de
óbito, uma questão até agora sem resposta: por que um problema essencialmente
político como esse foi tratado como um teste de força entre Bolsonaro e
Barroso, com xingamento de mãe e tudo o mais a que se tem direito? Na véspera
da votação, Bolsonaro disse que, “sem negociação”, a proposta de modificações
não iria passar. Por que, nesse caso, ele só foi lembrar de negociar quando
Inês já estava morta? Por que, se estava mesmo disposto a ganhar a parada e
acha que negociação é essencial, não começou a negociar em janeiro de 2019,
logo que tomou posse? Não fica claro, do mesmo jeito, por que o presidente
esperou tanto tempo para falar de fraude na apuração de 2018. Se está convicto
de que roubaram voto, por que só veio tocar no assunto já na reta final?
A discussão enfim acabou, mas
o saldo que fica disso tudo é um belo desastre. Com a não solução a que se
chegou, fica criada, e não se sabe se irá embora mais tarde, a suspeita de que
as eleições presidenciais de 2022 não serão limpas. Não adianta ficar falando
que isso “é golpe”. Fama de eleição roubada é coisa difícil de ir embora com
manchete no horário nobre e manifesto de artista. O fato é que continua sem
resposta a pergunta-chave nessa coisa toda: por que não seria possível
aperfeiçoar um sistema eletrônico de votação? O ministro Barroso insiste, e não
muda nada em nenhum milímetro, que o TSE montou um aparato invulnerável e
perfeito para as eleições brasileiras; não pode ser quebrado por ninguém e não
há nenhum recurso na ciência digital capaz de tornar melhor um sistema
eleitoral que só é adotado no Brasil, no Butão e em Bangladesh. Os bancos,
sites de vendas on-line e cartões de crédito aperfeiçoam todos os dias seus
sistemas de segurança; gastam bilhões nessa tarefa. Por que o STE é melhor que
eles? É uma estupidez.
O STF se apresenta como
vítima e se coloca, ao mesmo tempo, nos papéis de acusador e de juiz
Sobra para o governo, agora, o
dever — que até o momento parece não ter sido examinado por ninguém — de fazer
tudo o que a tecnologia permite para cobrir o máximo de vulnerabilidades do
atual sistema. Agora não é mais discurso; é puro trabalho, silencioso e longe
do picadeiro de circo armado em volta do assunto, coisa que exige cabeça e não
dá cartaz para ninguém. O roteiro mostrando onde pode haver problemas existe. O
que se pode fazer a respeito é colocar todo o potencial de conhecimento digital
à disposição do governo, a começar pelo arsenal de recursos tecnológicos das
Forças Armadas, no acompanhamento de cada passo do processo eleitoral de 2022 —
há mais de um ano para fazer isso, até o início da apuração. É um trabalho a
ser feito em conjunto com os partidos — e quem mais estiver habilitado a
auditar o sistema. Ou será feito ou não. Depende do governo.
É possível, também, que resulte alguma coisa de esforços que os políticos pretendem fazer para mudar alguma coisinha aqui e ali — nada que deixe nervosos os ministros e que carregue junto as odiosas palavras “voto” e “impresso”, mas que dê uma satisfação qualquer aos 229 deputados que votaram a favor das mudanças. É o que temos, além do descrédito quanto à honestidade dos resultados da eleição e do duelo pessoal cada vez mais perigoso entre o presidente Bolsonaro, de um lado, e o STF, do outro — no qual o STF se apresenta como vítima e se coloca, ao mesmo tempo, no papel de juiz. Abre os inquéritos e processos, aguarda uma denúncia do procurador-geral da República e, no fim, dá a sentença. É difícil uma coisa dessas acabar bem — a menos que se torne melhor, e não pior a cada dia que passa.
Infográfico revisado pelos
especialistas em tecnologia da informação Amílcar Brunazo e Carlos Rocha |
Infográfico: Luiz Iria, Naomi Akimoto Iria e Cristyan Costa
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