Aqueles hipócritas fantasiados de senadores estavam escarnecendo da população ao usar a covid como palco para as conversas fiadas
Guilherme Fiuza
Num futuro não muito remoto, os checadores, os senhores da verdade e os corregedores da história vão ter um trabalhão para retocar, esconder, enfim, sumir com os registros dessa CPI da Covid. Especialmente os do dia 10 de agosto de 2021.
Nada muito dramático, porque
para essa gente vigilante fazer a realidade caber nas suas cartilhas é
brincadeira de criança. Mas nesse capítulo os checadores do futuro precisarão
atuar com uma força-tarefa especial, ou talvez uma junta médica especializada
em transplante de versões.
Como você sabe — e está na
cara de todo mundo hoje, mas é como se não estivesse —, o arraial de Renan
Calheiros foi transformado em central da ética e da vida. Contando ninguém
acredita. É melhor nem contar. Essa transformação de fazer alquimista morrer de
inveja foi operada pelo consórcio da imprensa transformista — aquela que trocou
a notícia pela propaganda.
E no dia 10 de agosto esse
heroico pacto de farsantes mandou às favas os escrúpulos de consciência (se
lembra disso?) e protagonizou o show hediondo que o bisturi dos checadores do
futuro haverá de corrigir, pelo bem da memória da picaretagem.
Nesse fatídico dia — como se não bastassem todos os outros —, a CPI de Calheiros e Aziz teve um rompante de sinceridade. Rasgou a fantasia e assumiu que ninguém ali está nem aí para esse papo de pandemia. A CPI da Covid esqueceu a covid e passou a discutir um desfile militar. Foi de arrepiar.
Humilhando a população que
sofre com a crise de saúde, os senadores do telecurso de empatia subiram nos
seus caixotes caríssimos pagos pelo povo e passaram a fazer comícios sobre
militarismo, golpismo, fascismo e hipnotismo de trouxas. Saíram todos do
armário ao mesmo tempo — num movimento decidido de libertação da sua maquiagem
salvacionista. Dane-se esse teatro covidal, vamos assumir que montamos esse
palanque para atolar o país na crise — seria a manchete correta, se ainda
existisse imprensa.
Os adversários dos donos da
CPI simplesmente entraram na conversa bizarra deles
Mas quem dera o problema fosse
só a conversão do jornalismo à montagem de historietas espertas. Ou fosse só a
existência de políticos nefastos que colecionam problemas com a polícia e ficam
esperando a chance de ser inocentados pela imprensa marrom. O problema é muito
maior. Envolve inclusive os que detestam a CPI — e parecem adorar detestá-la.
Na própria CPI, os que tentam
se opor ao picadeiro de Calheiros, Aziz & cia parecem ter achado
normalíssima a transformação daquele fórum de investigação sobre a pandemia em
fórum de debate sobre parada militar. A única manifestação possível numa
situação dessas seria o repúdio terminativo àquele contrabando temático que
afrontava a memória de todas as vítimas da covid no país. Mas os adversários
dos donos da CPI simplesmente entraram na conversa bizarra deles — para falar
também de tanques, soldados, fardas e golpes imaginários. No sentido contrário,
claro. Mas dá no mesmo.
E o tema se espalhou pelas
redes sociais, pelas conversas pessoais, enfim, pela opinião pública sem o
único crivo que poderia dominar a falsa polêmica: aqueles hipócritas
fantasiados de senadores estavam escarnecendo da população imersa na tragédia
sanitária ao usar a covid como palco para as conversas fiadas que mantêm suas
existências parasitárias. Nem politicagem isso é mais.
Salvo engano, o Brasil está se
acostumando com o cinismo.
Título e Texto: Guilherme
Fiuza, revista Oeste, nº 73, 13-8-2021
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