terça-feira, 24 de agosto de 2021

[Aparecido rasga o verbo] Efeito colateral

Aparecido Raimundo de Souza 

ADAMASCOU SE FIZERA conhecido no meio da galera como “comilão inveterado”. Um limpa trilho dos diabos. Bastava usar saia, o cara saia cantando. Se a incauta desse “mole” e, sempre dava, acabava na horizontal do seu apartamento num condomínio luxuoso da Barra da Tijuca. Nessa brincadeira comeu tanta gente que perdeu a conta. Da sua lista, só ficaram de fora a mãe e as duas irmãs. 

Nem as primas escaparam. A mais nova, a Doroteia, de quatorze anos, filha da tia Eulália, acabou grávida. Deu um bafafá que parou na Vara da Infância e da Juventude. Por sorte, um tio advogado recém chegado dos Estados Unidos, resolveu o impasse e evitou um processo judicial que faria muita água rolar embaixo da ponte.  

Adamascou, entretanto, não tomou jeito nem juízo. Continuou “papando” as mais belas gatinhas que encontrava pela frente — ou que, por força da sorte —, cruzavam a sua estrada. Até o dia em que conheceu a esfuziante e majestosa Pérola Moraes. Amor à primeira vista. Arrebatador, tipo Tarcísio Meira e Glória Menezes, Roberto Carlos e Maria Rita. Por ela mudou as maneiras de agir. Parou de frequentar as boates e os inferninhos onde costumava ser freguês assíduo.  

Geralmente ia a essas espeluncas com a intenção de arranjar carne nova para passar algumas horas. Deixou de lado os amigos dos finais de semana, as vagabundas da Cinelândia e as mocreias da Galeria Alaska em Copacabana, no Posto Seis, que figuravam no topo da sua lista de meninas de programa com dia e hora marcadas para orgias que varavam até quase o nascer do sol. Pérola Moraes – moça de família tradicional, ostentava em seu currículo — ser filha única de um certo figurão da Rede Globo.  

A mãe também não ficava por baixo e exercia um cargo importantíssimo no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Contudo, não por essa razão que o Adamascou se amarrou na sedutora burguesa de olhos aliciantes. Realmente, algo sério mexeu com seu coração. Pérola Moraes, além de muito bonita, possuía um corpo escultural.  

Sua angelicalidade chegava a ser tanta e tamanha, que choviam convites e propostas para desfilar para grifes badaladas e pousar nua em pelo, em praias paradisíacas, para revistas masculinas às mais famosas. Iniciou, pois, um namoro sério. Com aliança de compromisso e muita badalação. Festa para quase mil convidados e até orquestra. 

Um ano após terem se conhecido, Adamascou e Pérola Moraes se casaram em meio a um reboliço que movimentou toda a sociedade carioca na famosa Igreja da Candelária, na Presidente Vargas. Cerimônia pomposa, deu o que falar. Saiu reportagens com fotografias dos nubentes para tudo quanto é lado estampadas em todas as publicações de circulação nacional. 

Tais reportagens, inundaram as bancas de jornais não só da cidade do Rio de Janeiro, como, igualmente, em São Paulo e outras capitais. Disseram os fofoqueiros televisivos, que veio até jornalistas de fora do Brasil para a cobertura da esperada solenidade. Com esta guinada de trezentos e sessenta grau, Adamascou, de playboy e comedor inveterado de um condomínio luxuoso da Barra da Tijuca, passou à lua de mel na Grécia.   

De volta para casa, ainda se deu ao luxo de ficar uma semana descansando, de papo para o ar, na Ilha de Caras, em Angra dos Reis, e quando saíram de lá, foram direto para as novas acomodações de uma mansão na Mesa do Imperador, uma construção de quatorze cômodos, que mais parecia um sonho saído das mil e uma noites. Nove meses depois, nasceu Karen, uma bonequinha tão linda e cheia de vivacidade quanto a mãe. 

O amor de Pérola Moraes por Adamascou, parecia eterno, inquebrantável, incessante, excessivo e puro, até certo ponto, insubstituível. Às portas do inesperado, entretanto, se abriram. Surgiu, em cena, o Marcelo, um moçoilo (desses do tipo manatas, oportunistas) recém contratado pelo pai de Pérola, que veio substituir o velho Tobias, até então motorista particular da família. Com a chegada dele, pintou, de contrapeso, o aguilhão da desgraça. 

De repente sombras efêmeras surgiram no céu azul do firmamento e, como espectros truanescos saídos sabe Deus de que buraco —, começam a se apagar os raios do foco divino e, no lugar deles, criaram formas dantescas, ou seja, uma série infindável de reveses e dissabores que passaram a abalar, de forma irrefreável, os alicerces da vida à dois de Pérola Moraes e Adamascou e, agora, também da pequena e doce Karen.  

Pérola Moraes, ao vê-lo todo santo dia e, a rodar com ele, pelas artérias da cidade maravilhosa, sentiu que começava a tremer na base. A princípio, trocavam olhares discretos, sorrisos furtivos, piscadelas infantis, via retrovisores dos carros do pai, postos à sua disposição. Embora amasse Adamascou, o destino havia escrito uma página negra para o futuro de ambos.  

O mesmo cupido que unira os corações dos apaixonados, parecia, agora, disposto a mudar os rumos daquela historia bonita que mais tarde culminaria em separação. De fato, não demorou muito e o chifrudo do Adamascou flagrou a sua querida e inoxidável Pérola Moraes transando com Marcelo na casa de campo em Pedra de Guaratiba.  

Pegou assim, quase sem querer. Os dois despudorados, jaziam, pelados, na cama redonda, onde ela se entregara para ele, pela primeira vez. A sem vergonha voava numa batalha enlouquecida pelo desejo inapelável e veemente da posse. A tresloucada se debatia, molhada de suor, enquanto Marcelo, aos gritos de palavras ininteligíveis, escorria tesão pelos poros dos membros colados num só amplexo. 

As bocas se mordiam, unidas e dilatadas, aguerridas a uma paixão proibida e avassaladora, envolvendo os amantes entre os lençóis macios de quarto penumbrado à meia luz. Adamascou pirou. Endoidou. Não a ponto de perder a cabeça e despachar a esposa ou o amásio para os quintos. Simplesmente se conteve ao ato de voltar para onde moravam, pegar algumas roupas, botar numa pequena mala, virar as costas e ir embora. 

Voltou a ocupar seu antigo apartamento no condomínio luxuoso da Barra da Tijuca. O amor por Pérola Moraes o deixou fora do chão e, claro, da realidade. Passou, em contínuo, a se drogar, e a beber desenfreadamente, bem ainda a frequentar inferninhos e prostíbulos viciados de sexo fácil. Retornou às garotas de programa antigas da Barata Ribeiro número duzentos, e a promover, com elas, orgias, como nos velhos tempos de solteiro.  

Todavia, nada disso parecia satisfazer o vazio grandioso do seu coração em frangalhos, ou abrandar o desgosto profundo que inundava a sua alma estraçalhada. Desiludido, vencido e humilhado, deixou de lado o belo sexo. Com as mundanas que saia para programas, chegou a triste conclusão de que elas se vendiam para quem desse mais.

Com isso, Adamascou passou a nutrir um ódio imenso e mortal por todas as amorais. Sua ira subiu à cabeça, se elevou a graus tão altos, que a última ninfeta que dormiu com ele, parou, as quatro da madrugada, numa delegacia de proteção à mulher, na Ilha do Governador, com fortes hematomas por todo o corpo. A desgraça, pois, do rapaz, caminhou mais longe. Ele decididamente tomou nojo, passou a sentir asco e repugnância pelo belo oposto.

Decadente, tanto na vida cotidiana, quanto alquebrado na moral, virou o disco. Descobriu, nesse interregno, que saindo com rapazes, as dores e as mágoas que nutria por Pérola de Moraes se desvaneciam. E descobriu mais: os meninos e os garotos das suas novas relações deitavam com ele e lhe propiciavam um prazer diferenciado. Na verdade, uma alacridade até então nunca sentido. 

Nessa brincadeira, parou de comer dos manjares dos deuses. Optou literalmente ser almoçado e jantado por pratos de cardápios nunca experimentados. Não deu outra. Contraiu AIDS. Nessa aventura sem pé nem cabeça, contaminou uma leva de gente, ao tempo em que emagreceu à olhos vistos. De certa feita, ao se olhar no espelho de seu banheiro, nem a silhueta de si próprio conseguiu divisar. 

Perdeu uma grana violenta com tratamentos caros, dentro e fora do país. O pouco que havia economizado, à vida toda, virou um buraco imensurável. Por derradeiro, se viu obrigado a vender o apartamento confortável no condomínio luxuoso da Barra da Tijuca. Morreu sozinho, pobre, infeliz, bêbado, jogado como um cachorro sem dono, na sarjeta, em frente a portaria do Edifício A Noite, na Praça Mauá, depois de ter participado de um bacanal com quatro sujeitos recém chegados do Afeganistão, num navio de carga que aportara no cais do Rio de Janeiro. 

Semanas à frente, um telefonema estranho estrondou no celular de Pérola Moraes. Isso a levou, passo seguinte, para reconhecer os restos mortais de um indivíduo no Instituto Médico Legal. Com ela, à tira colo, Marcelo, o amante inseparável. A pessoa que ligara, dizia ser o falecido, um tal Adamascou. Em seus documentos pessoais, constava o telefone da ex dele. 

De fato, na geladeira, o dito, em carne e osso, mais osso que carne, se transformara num presunto mal e porcamente afrescalhado. Segundo boletim do legista que procedeu a necrópsia, além da doença em grau adiantadíssimo, o desolado cu da criatura, ou mais precisamente o fiofó do desafortunado e desditoso belisário, estava como se costuma dizer, por ai, à boca miúda, na mais completa e desolada petição de miséria. 

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha no Espírito Santo. 24-8-2021

Colunas anteriores: 
O terceiro testículo 
Quem sai aos seus não degenera
A Rosa
Punctum saliens
Como feto sem cérebro

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