
As nossas elites preferem
disfarçar, fazer de conta, não destoar. Contemporizar. Queixar-se. Nunca ir
contra a corrente nem comprometer-se. Nem Portugal nem os portugueses lhes
devem nada.
Cruzámo-nos no Saldanha, já
não nos víamos há muito, partimos logo para dois dedos de conversa.
Em má hora, pensei eu passados
dez minutos, mas depois lembrei-me que com as elites portuguesas não há boas
horas. São normalmente todas más (as exceções são tão poucas que não vale a
pena a menção politicamente correta de o recordar).
Há 400 anos, aí por mil
seiscentos e tal, o meu interlocutor ter-me-ia muito provavelmente saudado num
efusivo castelhano, com a invejável segurança de estar a fazer bem. E, nos idos
das invasões francesas, talvez me tivesse convidado para cear na sua bela casa,
frente ao rio, na companhia de alguma alta patente militar gaulesa sentada à
sua mesa, enquanto o povo dava e levava pancada. Se inventei estes dois
exemplos foi porque expressam bem um desconforto que é antigo: as nossas elites
preferem disfarçar, fazer de conta, não destoar. Contemporizar. Queixar-se.
Nunca ir contra a corrente e raramente comprometer-se. Nem Portugal nem os
portugueses lhes devem nada, numa palavra. Um mistério.
Eu sei que ando
particularmente belicosa mas não é fácil digerir que a elite do país
simplesmente não está disponível para o servir. Um abaixo-assinado quando
muito, e mesmo assim de “largo espetro”. Um discreto assentimento, um
discretíssimo comprometimento. Nestes últimos três anos, talvez nem isso. Sim,
pagaram a crise do seu bolso, mas onde se esperaria brio houve apenas
ressentimento e nenhum empenho. Dá que pensar.
Naquele dia no Saldanha,
tropecei de novo no mistério: a propósito da partida da troika agendada para
dias depois daquele meu casual encontro e a propósito de um almoço que o meu
competente e qualificado interlocutor teria momentos depois com uma gente
ligada ao empresariado católico, ocorreu-me uma pequena revisão da matéria. E
perguntei-lhe de chofre: “E vocês que fizeram nestes anos difíceis? Não se
chegaram à frente no vosso apoio público às medidas governamentais difíceis
para o país, pois não?”.
A resposta chegou a ser
rudimentar: “Não, de facto não”. E, após uma pausa, logo aterrou aquela
reticência tão minha conhecida: “Sabe… não era fácil, teria até sido difícil
esse apoio”. E foi tudo. Porquê? Ignoro: o meu companheiro da praça do Saldanha
não se aventurou em argumentos e julgamentos. Era “difícil”. Calculo.
A verdade é que desde 2011 me
entretenho a olhar para a elite e para aquele quadrado de vida em que ela se
move. E a maioria move-se bem ou muito bem, uma coisa não tem a ver com a
outra, é de comprometimento que falo. Do comprometimento que não houve. Em vez
dele, queixume e negrume. Sem sombra de remorso face a um país em guerra e à
consequente mudança radical das circunstâncias. Quanto mais benesses tinham e
mais altas pensões auferiam, mais queixas com os cortes sofridos. Quanto mais o
tom geral dos média era de escárnio e mal dizer, menos se deu pelas elites.
Quanto mais o ar do tempo era de contestação, mais se ouvia o seu silêncio. Tão
audível quanto notório era o recuo do cenário de guerra.
Sim, não se duvida – eu não
duvido – que se esfalfaram por produzir, vender, empregar, exportar. Tudo isso.
Mas o resto… caramba. Neste deserto, ocorre-me a voz solitária de Fernando
Ulrich – dizendo verdades logo depois enviesadamente extrapoladas –, alguns
artigos de Vítor Bento, algumas tomadas de posição de Ferraz da Costa. Um ou outro
– raro – empresário, um ou outro grande reformado dedicado a revigorar a polis,
em assembleias municipais ou em assembleias partidárias.
Contam-se pelos dedos. Haverá
outros, como é óbvio, e em diversos setores – não quero ser injusta –, mas não
chegou, nem contou, nem marcou. E também haverá aqueles que se ficaram pelo
satisfeito telefonema privado ao primeiro-ministro com sugestões e
recomendações, coisa esta também muito portuguesa: a discrição de um sussurrado
telefonema a permitir a ilusão de um apoio logo camuflado no dia seguinte, numa
qualquer televisão ou microfone de rádio.
É a vida – como diria o agora
menos desaparecido engenheiro –, mas é feia. Como esses patéticos – se me derem
melhor adjectivo, eu troco – Silvas Penedas deste mundo, e não haverá mais
verosímil símbolo da demissão de que falo: sempre com prontas mas nunca
concretizadas “alternativas” às medidas que a nossa miserável realidade
impunha, sempre em bicos de pés no coro vigente para não desafinar da música
dos dias. Em resumo: sempre do contra porque sempre a favor de paralisantes
interesses instalados, interesses (supostamente) poderosos porque justamente o
país é fraco de boa gente no seu topo.
Decisores, pensionistas de luxo, reformados ilustres, protagonistas mediáticos à espera de melhores dias, foi um ver se te avias no desfiar das contas do nosso rosário. Não tercendo armas por nada e confundindo quase tudo, confundindo a pátria e a conquista da sua credibilidade com caprichos privados do Governo.
Exagero? Não, de todo. E se é
óbvio que Ulrich ou Bento ou Ferraz da Costa não estiveram totalmente sozinhos
nem foram os únicos, o que parece é que mês após mês, ano após ano, Portugal
não interpelou por ai além estes senhores de que vos falo. Que se retém de
vigoroso? De que intervenção ou gesto se recordam hoje?
Pelo contrário: o país reparou
que o balbuciante caminho andado não foi andado com o seu exemplo. Temo aliás
que também venha a reparar nos próximos episódios quando, por exemplo, essas
mesmas elites nos vierem dizer que “sempre estiveram com os sacrifícios pedidos
ao povo português”; quando as virmos rejubilar com eventuais bons resultados
das políticas que incessantemente condenaram; quando as virmos aplaudir uma
qualquer aliança entre o PS e o sempre velozmente disponível CDS. Os exemplos
do costume.
Restam os portugueses. (Os
outros). Também como de costume.
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