Temos de convir que a função
de criticar ou elogiar não é tarefa fácil, pois às vezes nos esbarramos em
nossos próprios conceitos contrários que podem não ser os conceitos verdadeiros,
no entanto, esses dois entendimentos podem estar presentes nas mesmas ações de
uma só pessoa.
Não podemos esquecer de que o
gosto de cada um é algo muito subjetivo e pessoal. Assim, o gosto que alguém
considera ruim e errado, para o outro é considerado bom e certo. Tudo depende
do ponto de vista de cada um e do mundo em que cada um vive. É por isso que se
diz que há gosto para todas as coisas, que há gosto para tudo e a cada um seu
gosto lhe parece o melhor e, em assim sendo, dentro dessa filosofia é que o
presente texto não faz crítica ou elogio ao gosto do personagem principal, vez
que contra o gosto não há argumento.
Há muito tempo atrás, mais de
perto no ano de 1985, conheci, quando do meu ingresso na Polícia Civil de
Sergipe, um cidadão que passarei a partir de então a chamá-lo com o nome
fictício de Matusalém, pois os seus familiares podem não gostar da história
apesar de ter sido a pura verdade do que realmente aconteceu. Matusalém era um
funcionário público exemplar, um excelente profissional, um dedicado e
exclusivo, jamais igualado agente auxiliar de necropsia que trabalhava no Instituto
Médico Legal de Aracaju. Trabalhava já então por sua livre e espontânea
vontade, vez que as duas possibilidades de aposentadoria haviam alcançado o seu
período laborativo, ou seja, tanto por tempo de serviço, quanto por idade, o
referido diferente e irreverente servidor podia ir embora descansar na sua
cadeira de balanço, contudo, não havia quem colocasse isso na cabeça dele,
passando então o mesmo a ser considerado um patrimônio da casa, um patrimônio
vivo e exemplar do IML do nosso Estado de Sergipe.
O IML não era somente o seu
trabalho, era a sua casa, seu lar, sua vida. Para Matusalém a sua simples e
difícil função era a melhor de todas as outras existentes. Cortar cadáveres,
procurar projéteis ou objetos em suas vísceras, mexer em corpos putrefatos,
buscar mortos mutilados em acidentes, ver sangue, sentir sangue, sentir o
cheiro forte do formol, do morto e da morte era para o bom velho Matusalém uma
satisfação incomum que ele realizava sem luvas, sem máscaras ou qualquer tipo
de proteção possível.
Praticamente Matusalém
trabalhava todos os dias em todos os plantões porque aceitava qualquer coisa em
troca, por vezes até algumas doses de cachaça, para cobrir o expediente dos
seus colegas.
Corria o boato que quase sempre
Matusalém fazia as suas refeições no seu próprio local de trabalho, mais de
perto, almoçava, lanchava ou jantava na mesma sala em que os mortos estavam
sendo submetidos aos exames cadavéricos e, até, colocava a água que bebia, suco
ou qualquer alimento para gelar nas geladeiras em que também se guardavam os
defuntos.
O meu primeiro local de
trabalho foi a extinta Delegacia Central de Aracaju que era localizada no
prédio vizinho ao IML, por isso a minha aproximação com os funcionários daquele
Instituto, mais de perto com o velho Matusalém a quem melhor me apeguei pela
sua simples filosofia de vida, apesar das nossas extremas diferenças.
Calouro na Polícia e metido a
ser o melhor de todos, não diferente dos jovens policiais que se acham
superiores aos antigos, aos mais experientes, então nas minhas horas vagas ou
de menor movimento na Delegacia, não só pela curiosidade, mas principalmente
para me acostumar com a situação fúnebre e horrorosa que tanto me causava
náuseas e que eu achava ser condizente com a minha carreira, então passei a
visitar a sala de necropsia do IML para assistir ao trabalho efetuado pelos
Médicos Legistas, na maioria das vezes com o auxilio de Matusalém que, para
dizer a verdade, era quem fazia todo o trabalho pesado de cortar, serrar, abrir,
retirar o cérebro ou as vísceras do examinado em busca das evidências da sua
morte.
Certo dia caí na besteira de
entrar na sala quando da chegada de um defunto afogado que fora achado na praia
de Atalaia em avançado estado de decomposição, já bastante mutilado e até largando
pedaços. Era o meu desafio maior, meu teste de fogo, para me acostumar de vez
com a situação devido às tantas outras diferentes anteriormente a que me
submeti voluntariamente assistindo a exames de todos os tipos de mortes possíveis.
Ali mesmo constatei em meio a
uma fedentina insuportável, a pele podre das pernas do defunto ficar grudada
nas mãos nuas de Matusalém, contudo, tal fato era só o começo do esdrúxulo,
pois o pior estava por vir: não demorou muito e caiu no chão da sala um grande
siri, um siri que a gente aqui em Sergipe chama de siri patola.
O siri que veio dentro da
barriga do inchado e deteriorado cadáver afogado, agora estava ali no chão sujo
da sala, em líquido gosmento róseo-avermelhado, desorientado e armado com as
suas duas puãs tais quais tesouras apontadas para o alto no sentido de se
defender de um possível ataque e, para minha surpresa, escuto Matusalém dizer:
![]() |
Ilustração retirada do site "Curiosidade animal" |
- Chegou o meu tira-gosto!...
Saí rápido da sala para
vomitar lá fora e voltar para a Delegacia acreditando ser brincadeira aquela
frase do meu amigo Matusalém.
Momento depois me chega o
velho Matusalém já com o siri cozinhado, todo vermelhão e, cantando vantagem:
- E aí, doutor, vai
encarar?...
- Você está ficando doido,
Matusalém... Jogue essa porcaria fora!... Onde já se viu querer comer um siri
que estava dentro da barriga de um defunto e ainda mais podre e nojento?...
- E qual é a diferença de se
comer ele ou de comer qualquer outro siri?... Será que o outro que o senhor
pesca ou compra na feira também não comeu defunto?...
- Vamos ponderar um pouco
Matusalém... Isso que você quer fazer, além de absurdo, anti-higiênico e
nojento é deprimente, eu pago outro tira-gosto qualquer para você, mas jogue
esse siri no lixo.
- Anti-higiênico não é, porque
quando se cozinha, mata-se todos os micróbios. Nojento é aquilo que o senhor
come sem saber de onde veio. Deprimente é o senhor comer algo pensando que é
bom, quando na verdade está sendo enganado, está comendo algo ruim, que não
vale nada, que pode lhe fazer mal... por exemplo: o senhor compra no mercado a
carne mais cara que existe, o filé, entretanto esse filé pode vir de uma vaca
que morreu de uma doença braba ou de uma picada de cobra... E aí?... Eu não
quero que o senhor me pague nenhum tira-gosto não, doutor, por mim já tenho o
meu... Só quero que me pague duas doses de cachaça que é pra eu comer o meu
siri...
- Se é isso mesmo que você
quer Matusalém, então seja feita a sua vontade... Pode ir andando pra birosca
que eu chego já pra pagar a sua cachaça...
E ainda meio incrédulo, cerca
de vinte minutos depois fui até o barzinho da esquina e lá chegando constatei
os cascos e restos do siri dentro de um prato em cima da mesa, e Matusalém
sentado ao lado se gabando:
- Só estava esperando o senhor
para me pagar também a saideira, doutor... O siri estava gordo que estava uma
beleza!...
Daquele dia em diante não mais
comi um siri sequer e toda vez que eu vejo um, me lembro do meu amigo Matusalém,
uma pessoa simples, leal, verdadeira e trabalhadora que viveu um mundo estranho
dentro desse estranho mundo com o entendimento e gosto peculiar que era só seu.
O velho Matusalém morreu
alguns anos depois dentro do seu próprio local de trabalho. Dormiu e não mais
acordou... Morreu no seu paraíso, na morte que pediu a Deus... Morreu tão pobre
quanto nasceu, mas me deixou uma lição: Vivemos em um mundo em que cada um vive
o seu mundo, apenas nos adequamos às regras e ao mundo dos outros.
Título e Texto: Archimedes Marques, Delegado de Polícia no Estado de Sergipe,
Pós-Graduado em Gestão Estratégica em Segurança Pública pela UFS.
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