Sentada na
varanda da sua casa, numa cadeira de baloiço feita de palha, do século passado,
oriunda dos seus avós, deixava-se embalar sob o céu estrelado e não conseguia
impedir a lágrima que escorria dos seus olhos escuros e fundos. Pensava na sua
filha Joana…
Ano 2010
Uma menina de
olhos tristes olhava para o casal que acabava de entrar na “Casa Da Esperança”.
Carlos Filipe e Susana Isabel esperaram por este momento cinco anos. Carlos
tinha trinta e sete anos, tinha o cabelo bem cortado, penteado para trás,
deixando ver a sua grande testa – sinal de inteligência, brincava ele – com os
olhos castanhos e grandes, nariz arrebitado e barba sempre desfeita. Era
elegante, porte alto, com um metro e oitenta centímetros, sério e, quando a
conversa lhe interessava, ele observava. Às vezes, os seus filhos pensavam que
não estava atento mas não era verdade. Ele ouvia e ficava calado, porque
acreditava que Susana resolveria a situação. Era um excelente pai de família e
amigo. Era menos autoritário que a mulher. Cedia mais aos pedidos dos filhos
mas nunca a desautorizava.
Susana era de
estatura média, nem alta nem baixa, media um metro e sessenta e quatro
centímetros. Tinha os cabelos e os olhos pretos. Era bastante faladora e
sentia-se mãe de todos, desde amigos, filhos, marido e familiares. Na verdade a
família aceitava-a com esse feitio e era debaixo das suas “asas” que iam
consolar-se. Ouvia um lado e ouvia o outro, não tomava partido mas tentava
sempre o caminho da paz. O marido tinha o hábito de dizer:
– Susana, tu não
podes salvar o mundo!
– O mundo, não
posso! Mas posso ajudar as pessoas que me rodeiam a viverem melhor neste mundo,
não achas? – repetia Susana fazendo beicinho. Carlos sorria e nada mais falava.
Nunca convenceria a sua mulher a deixar de se preocupar. Ela era assim.
Provavelmente foi essa uma das características que lhe seduziu. Mas naquele
dia, Susana estava tão calada quanto Carlos.
O casal vinha
acompanhado pela assistente social Paula Coruja, que falava sem parar:
– E como devem
compreender isso não quer dizer nada de certo mas pode ser…
O casal não
tirava os olhos da menina de treze meses que se encontrava cada vez mais perto
deles.
– E vocês vão
conhecê-la… mas não a levarão logo para casa – continuou Paula a falar.
O Carlos não
prestava atenção mas Susana fazia um esforço.
Chegaram perto
da menina de olhos castanhos-escuros, cabelo comprido com caracóis. Ao seu lado
encontrava-se uma senhora baixinha dos seus sessenta anos, com um sorriso que
transmitia muito carinho. Os seus olhos, por detrás das lentes dos óculos,
tinham a esperança como mensagem.
– Bom dia. Sou a
Madre Superiora e diretora da “Casa Da Esperança”. O meu nome é Teresa e esta
menininha aqui é a Joana.
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– Mas, mãe, o
que eu vou dizer aos meus amigos?
– Filho, os teus
verdadeiros amigos vão entender, quanto aos outros, não precisas de contar.
Aliás, nós vamos optar pela adoção plena, isto é, a menina que tivermos terá o
nosso nome de família, será Ribeiro Garcia tal como tu e o mano.
Filipe tinha um
caráter mais calmo e aceitava tudo sem reclamar, para ele estava sempre tudo
bem. Com os seus oito anos demonstrava ter uma vontade de viver sempre em paz.
– Mãe, mas como
é que isso é? Vocês vão lá e trazem logo a menina? Eu não me importo nada –
disse Filipe
E a discussão
durou mais de uma hora. No fim do jantar, quando todos estavam reunidos,
tentaram chegar a uma conclusão. Susana sentia-se sozinha. Tão entusiasmada que
ela estava e … ninguém parecia partilhar com ela esse entusiasmo. Começou a
ficar triste e não sabia como solucionar essa indecisão que pairava na sua
família. Carlos, por fim, disse:
– Se realmente
queres vai em frente, trata das coisas.
Era sempre
assim. Que raiva sentia Susana de Carlos nessas alturas! Quando este não estava
muito interessado deixava que Susana fizesse tudo sozinha porque tinha a
esperança que desistisse depois. Mas Susana foi em frente e no dia 10 de
janeiro de 2005 telefonou para o Centro de adoções e, do outro lado, melhor
atenção e carinho não podia esperar.
– Muito bom dia.
Posso ajudá-la?
– Bom dia.
Gostaria de adotar e queria saber o que preciso fazer.
– Tem que ter
mais de vinte e cinco anos e estar casado no mínimo há quatro anos.
– Tenho trinta,
o meu marido trinta e dois e estou casada há treze anos.
– Então diga a
sua morada e lhe enviaremos pelo correio um inquérito para ser respondido por
si e pelo seu marido. Mas gostaríamos de informar que esse é um passo muito
importante para si e para a sua família, mas ainda será mais importante para
uma criança. Tem que ter a certeza que quer dar esse passo…
– Claro que sim!
– respondeu Susana efusivamente, quase sem dar tempo para mais conversa do
outro lado do telefone.
Após algum
silêncio, ouve a resposta:
– Então até ao
fim da próxima semana receberá o inquérito. Depois de respondido, envie-nos.
– Obrigada.
– Obrigada, nós.
Depois de ter
desligado o telefone, Susana pensou bastante no que estava a fazer. Era um
sonho seu, mas seria justo “arrastar” para o seu sonho toda a sua família? O
que tinha dito Carlos? Que estava 60% entusiasmado? Como se pode estar só 60%
entusiasmado com uma filha? Não a consideraria ele como sua filha? E os avós?
Como vão reagir? Susana já imaginava a reação de António, pai de Carlos… E a
reação de Pepe, seu irmão? Tantas dúvidas… Nesse
momento só pensava em Maria, sua madrasta, que
a compreenderia muito bem porque amou Susana como sua filha. É possível amar
alguém tão intensamente sem existirem laços de sangue.
– Agora não
volto atrás! Seja o que Deus quiser! Enfrentarei o que tiver de enfrentar!
Passados uns
dias chegou o envelope com o respetivo inquérito, um para cada um. Eram oito
páginas de perguntas e mais perguntas. Dados pessoais e familiares e outras de
difícil resposta. Foi preenchido pelos dois, Carlos sempre com respostas curtas
e diretas enquanto Susana escrevia, escrevia e escrevia. Começava com nome,
data de nascimento, morada, habilitações literárias e filiação.
“No caso de
falecimento de algum dos pais, indique qual a causa e a data.”
– Fogo! Precisam
de saber tudo! – Carlos além de não gostar de escrever também não estava tão
entusiasmado como Susana e, por isso, refilava a cada pergunta.
– Até querem
saber se tenho irmão e sobrinhos! O que pensam eles? Que quem tiver terá mais
jeito para adotar? Não tem muita lógica. Não concordas, amor?
Carlos chamou
Susana de amor para tentar acalmar a sua agressividade, porque, no fundo, tinha
concordado com a ideia por amor a Susana e não era justo, agora, ser agressivo.
Mas o sonho parecia tão descabido e agora, com aquele inquérito na mão, tinha
que aceitar o facto de que as coisas estavam a caminhar para um propósito.
Aquele era o primeiro passo para aceitar toda aquela loucura de Susana.
– Sim, amor,
concordo contigo – respondeu Susana, também amorosamente porque já estava a
sentir que esse processo não estava a ser muito fácil para os dois.
– Já leste a pergunta seguinte? Eles querem
saber onde vivem os nossos pais, quer dizer que já querem saber onde vivem os
avós da criança?
– Bem, no teu
caso é fácil a resposta mas no meu é mais complicado. O meu pai está a viver no
Brasil com o meu irmãozinho. A minha mãe está a viver em França com minha
irmãzinha.
– Hehehe!
Irmãozinhos? Susana, és sempre igual. Eles já têm dezoito anos.
– Tens razão,
não precisas de gozar comigo. Sabes que para mim serão sempre os meus pequenos
irmãos.
– Sim, sim…
qualquer um deles é maior que tu – disse Carlos muito bem- disposto.
Susana riu-se e
respondeu:
– É… eu sou a
mais pequenina. Bem, vamos continuar a responder ao inquérito.
– Vamos. Com este
inquérito eles tentam fazer um perfil da vida passada da pessoa. Perguntam
sobre a infância, adolescência, escolas, quando começou a trabalhar, quando
começou a ser independente dos pais…
– Carlos, sabes
que a nossa infância e adolescência nos ensinam e ajudam a formar o nosso
caráter, por isso, acho que essas perguntas todas até têm razão de ser. Como
foi a tua infância?
Lendo esta
pergunta Susana perdeu-se nas suas recordações. Foi parar ao ano de 1981,
quando viajou para o Brasil. Um ano muito importante porque a sua vida
alterou-se totalmente.
Ano 1981
Em 21 de março,
Susana, de sete anos, desembarca no Brasil de mãos dadas com o seu irmão Pedro,
mais velho quatro anos. Tudo era novidade: o avião, o país e até o
desconhecimento do motivo da viagem. O pai havia telefonado há sete dias para a
casa dos avós paternos que viviam em Vila Nova de Gaia, Portugal, e dito
apenas:
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Imagem retirada daqui |
– As passagens
já seguiram pelo correio, assim que as tiverem embarquem logo para o Brasil. Cá
estarei à espera.
– Mas pai, e a
mãe? – disse Susana na inocência dos seus sete anos. Mas este já havia
desligado.
Susana era uma
linda menina, morena com cabelos compridos que ondulavam naturalmente. Tinha
olhos pretos e profundos que só a mãe sabia interpretar; ora tristes, ora
felizes.
– Quando te
zangas, pareces mesmo o teu pai – não se cansava de repetir Daniela, sua
mãe.
Mas não era só
nos olhos que tinha parecenças com o pai. Tinha um feitio difícil de lidar.
Ninguém conseguia saber o que sentia, escondia os seus sentimentos e
irritava-se consigo mesma quando isso acontecia. Só mesmo a mãe para
interpretar corretamente todo o conjunto de emoções que transpiram numa criança
como Susana. Uma criança com muita vontade de crescer depressa.
Na véspera da
viagem, Susana sonhou com a mãe. Já não a via há três meses. Viviam em Lisboa
quando a mãe lhes disse que eles iam passar um tempinho na casa dos avós,
porque precisava resolver umas coisas. Que coisas seriam essas? Só depois de
alguns meses, é que Susana e Pedro souberam o que estava a acontecer com os
pais. Em janeiro, foi para a casa dos avós juntamente com o irmão.
– Filhos, vocês
vão alguns meses para a casa dos avós e depois irei buscar- vos. Prometeu
Daniela… e não cumpriu.
Susana e Pedro
conversavam muito entre si. Apesar da diferença de idade e de sexo, eles eram
muito próximos um do outro. Os anos seguintes ainda os uniram mais.
No sonho,
Susana, corria para os braços da mãe, mas não conseguia alcançá-la. Por mais
que corresse, a mãe parecia sempre longe. Susana gritava e chorava mas nada
fazia com que a mãe fosse ter com ela. Desesperada, Susana acordou. O irmão
despertara com a inquietação de Susana.
– O que foi,
Susana?
– Nada, nada…
apenas um sonho. Sonhei com a mãe.
– Mas estás tão
assustada…
Silêncio. Pedro
abraçou a irmã e voltou a falar:
– Não te
preocupes, estarei sempre ao teu lado. De que tens medo?
– A mãe? Onde está? Por que ninguém nos
responde? Irrita-me pensarem que somos crianças e que não temos direito de
saber o que se passa. Tens ideia do que aconteceu? – já gritava Susana.
– Xiu! Vais
acordar os avós.
Pedro vivia a
sua vidinha numa calma e descontração que, por vezes, irritava Susana.
Pedro era muito
bonito. “ Vai ser um galã quando crescer!”, Pensava muitas vezes Susana. Era
loiro, olhos castanhos-claros e com um olhar sempre meigo. Não desconfiava nem
acreditava no mal do mundo. Muitos podiam até pensar que ele era ingénuo, mas
para Susana era um menino que sabia viver sempre feliz com a vida que tinha.
– Susana, a mãe
vai telefonar. Não te preocupes.
– És sempre o
mesmo! Não te preocupes, não te preocupes… só sabes dizer isso? Ai, como me
irrita quando não queres olhar à tua volta e ver que alguma coisa não está bem.
Os nossos pais não estão bem. E nós? O que estamos a fazer com os nossos avós
quando temos os nossos pais? E a escola? Não me venhas dizer que achas normal
que o nosso pai, tão exigente nos estudos, nos faça interromper, sem mais nem
menos, o ano escolar para irmos para outro país?
Pedro
mantinha-se calado.
– Pedro! Vamos
para o Brasil! Lá é tudo tão diferente daqui! Aqui o ano escolar já vai a meio
enquanto lá começou em fevereiro. Achas normal? Responde! Não fiques calado!
Pedro hesitou um
pouco e respondeu:
– Acho.
– Que raiva! És
terrível! Insensível! – Susana virou-se para o lado e tentou dormir, não chegou
a ver uma lágrima que corria dos olhos de Pedro.
Na verdade,
Pedro não achava nada normal, mas Susana era sua irmãzinha e precisava
protegê-la de todo mal que pudesse vir. Pedro adorava a mãe e também não
imaginava a sua vida longe dela. Apesar dos seus onze anos ainda sofria um
profundo complexo de Édipo, que o fez apaixonar-se pela mãe aos quatro anos e
durou anos e anos. A mãe era a sua deusa. Não havia para ele mulher mais
perfeita que sua mãe. Admirava-a muito. E tinha muitas saudades! Voltou a
adormecer e também ele sonhou com a mãe; a mãe cantando-lhe uma canção, a mãe
esperando-o no portão da escola, a mãe ajudando-o nos excessivos trabalhos de
casa que o pai mandava, a mãe sempre ali, ao seu lado, a sorrir e a falar
carinhosamente com ele. Não imaginava a sua vida sem a presença da mãe! A vida
pregou -lhe uma partida…
As saudades da
mãe eram tão grandes que naquele dia Pepe tinha escrito um poema, na aula de
Português, e mesmo sem admitir que era um poema biográfico, a professora sabia.
“ Tesouro da
minha infância
Quando eu era
pequenino,
Acabado de
nascer,
Os meus pais
adoravam-me,
Agradeço-lhes
com carinho
Todo o seu apoio
Enroladinho em
cobertores.
Eu parecia um
tesouro.
Cresci com todo
o Amor,
Que a minha
família me deu,
Mas o menino
pequenino,
Aos poucos
desapareceu.
Fui crescendo
Grande ele
ficou,
Mas não foi por
isso,
Que a família
não me adorou.
Grande eu
fiquei,
E a minha
infância recordei,
Mas nunca
esquecerei,
O que passei.
Agora já grande
Vejo o álbum
Que mostra
O que eu fui,
Mas eu
continuei,
E sou agora,
O “grandinho” da
mamãe.”
Pepe queria ter
acabado o poema com a frase: Preciso de ti, mamãe!
O pai
esperava-os no salão do desembarque. Sentia-se triste e suava imenso. Os seus
olhos escuros estavam inchados de tristeza, as pálpebras fechavam
constantemente, sinais evidentes de muitas noites mal dormidas, sempre a
chorar. Mas não queria que os seus filhos o vissem assim. Foi à casa de banho
molhar os olhos e tentar controlar o nervoso miudinho que se espalhava no corpo
todo. Quando saiu da casa de banho o aviso do Boeing 747, de Lisboa, já piscava
no ecrã do Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro.
– Os meus filhos estão a chegar. Eles são a minha vida! – pensava Bernardo. O voo tinha sido feito com muita expectativa. As duas crianças nunca tinham viajado de avião e por algumas horas esqueceram-se das preocupações e tristezas. Para eles essa viagem era uma grande aventura. Tudo à volta deles parecia fantástico. As refeições, o filme, o viajarem só os dois, dez horas de viagem… Pedro foi à janela mas estava constantemente a cutucar Susana.
– Olha, olha que
lindo! Passados uns minutos:
– Olha, Susana,
estamos a atravessar as nuvens!
Os dois estavam
muito excitados com a viagem mas como era um voo noturno, depois do jantar, o
sono abateu-se sobre eles e dormiram cinco horas. Pedro foi o primeiro a
acordar. A cabeça de Susana estava sobre o seu ombro e ele acariciou os seus
cabelos. A irmã só despertou depois de vinte minutos. Quando acordaram sentiram
pena por não terem conseguido ficar acordados a noite toda. Afinal era uma ocasião
única, não havia ninguém para mandá-los para a cama. Tomaram o pequeno-almoço e
sentiram-se como “gente grande”.
– Atenção,
tripulação de cabine, preparar para o pouso – falou a voz do altifalante.
Texto: Hilda Bernadette
Edição: JP
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