José Manuel Fernandes
Em 2015, na era do
"empobrecimento", o rendimento médio mensal das famílias subiu 79
euros. Uma surpresa tão grande como a economia crescer exatamente pelas razões
opostas às defendidas pelo Governo.
Neste tempo em que todos os
portugueses, e sobretudo todos os políticos, se tornaram especialistas em
economia, há um mistério de que ninguém falou. É o mistério dos 79 euros.
O número surgiu num relatório do INE divulgado a semana passada sobre os
resultados do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento dos portugueses mas
que não deu grandes títulos. Contudo estava lá, preto no branco: “O rendimento
médio mensal por agregado familiar aumentou 79 euros em 2015”.
Como? Em 2015, nesse tempo
negro de “empobrecimento deliberado dos portugueses”, o rendimento médio das
famílias aumentou 79 euros por mês? Antes da famosa “devolução de rendimento”?
Antes do “milagre” de que agora toda a gente fala, o do crescimento económico
do primeiro trimestre deste ano?
É verdade. Esse relatório do INE que tão despercebido passou diz-nos
mais coisas curiosas. No último ano desse “tempo das trevas”, o “rendimento
monetário disponível mediano por adulto para a população em risco de pobreza”
aumentou 7,6%, ou seja, o rendimento nesse tempo de “ódio aos pobres” aumentou
mais para os pobres do que para o conjunto da população (onde só aumentou
4,1%). E não só: foi entre os mais pobres dos pobres, os 10% com menos
rendimento da sociedade portuguesa que, proporcionalmente, o rendimento
aumentou mais. Como escreve o INE, “o crescimento dos rendimentos monetários
equivalentes entre 2014 e 2015 foi abrangente a todas as classes de rendimento,
mais expressiva para as pessoas com menores rendimentos (1º decil)”.
Esse relatório quase só fez títulos por causa do número de
portugueses em risco de pobreza ou exclusão social (2,6 milhões), mas a verdade
é que também aí as notícias eram de uma evolução positiva: os 25,1% registados
nesse ano face ao conjunto da população representam menos 1,5 pontos
percentuais do que no ano anterior.
Mas deixemos todos estes
números, para regressar aos nossos 79 euros. Não sabemos de onde eles vieram,
mas é possível que o crescimento registado no último ano do “empobrecimento”,
1,6%, tenha ajudado alguma coisa. Talvez mesmo um pouco mais do que os 1,4%
registados no primeiro ano do “enriquecimento”, ou seja, da era da geringonça.
Quanto ganharam os portugueses (e não só os funcionários públicos e uma pequena
minoria dos pensionistas) com a “devolução de rendimentos”? Só saberemos quando
sair um relatório idêntico a este daqui por um ano, e talvez nessa altura
fiquemos a saber mais sobre o mistério de como “empobrecendo” as famílias
ficam, afinal, com mais 79 euros disponíveis por mês. Mas algo sabemos já: os
4,1% de crescimento do rendimento disponível das famílias coincide com os 4,1%
de crescimento do PIB per capita em 2015.
Ora isto conduz-nos ao número
de que se tem falado mais nos últimos tempos: os 2,8% de crescimento homólogo
no primeiro trimestre de 2017. Até porque, ao contrário do que propôs Marcelo
Rebelo de Sousa, devemos procurar perceber que políticas públicas tiveram
mérito para estarmos agora a festejar aquele resultado. E também porque, não esqueçamos,
a lição que António Costa tirou do
crescimento do primeiro trimestre foi que “muita gente entendeu que era preciso
empobrecer para sermos competitivos”, elogiando depois a “prioridade que foi
dada à reposição de rendimentos” que “reforçou a coesão e a confiança, que são
indispensáveis ao crescimento”. O que não deixa de ser uma declaração curiosa
se recordarmos os nossos 79 euros a mais por mês em… 2015.
Se pensarmos que, mesmo sendo
mérito primeiro das empresas e dos portugueses, o sucesso económico não é
independente das políticas públicas, então há mais alguns dados nos relatórios
do INE que vale a pena considerar.
Primeiro, sobre o que nos
aconteceu em 2016, ano 1 da geringonça e em que o crescimento económico ficou
pelos 1,4%. Todos nos recordamos que o alfa e ómega das políticas públicas da
era Mário Centeno eram a “reposição de rendimentos” para “estimular o consumo
privado” e a “procura interna”. Isto por contraponto a um muito criticado
modelo de crescimento assente no crescimento das exportações, o tal que vinha
do “tempo do empobrecimento”.
E o que é que já nos disse o INE sobre o crescimento de 2016? Que houve
“ligeiro abrandamento do consumo privado” e uma “redução do investimento”, esta
última consequência direta do corte do investimento público para valores tão
baixos que nem nos confins do salazarismo se registavam. Escreve mesmo o INE,
vejam lá, que em 2016, o ano em que voltámos a enriquecer, “o investimento
diminuiu 0,9% em termos reais, após ter registado um aumento de 4,6% no ano
anterior”, o tal ano em que ainda vivíamos submetidos ao odioso neoliberalismo.
Já as exportações cresceram 4,4% em 2016, mesmo assim menos do que tinham
crescido em 2015, com excepção de uma área, pois verificou-se “uma aceleração
na componente de turismo”.
Depois, o que é que já sabemos
sobre o que se está a passar em 2017, ou seja, o que é que o INE já nos disse sobre como se alcançaram os 2,8% de
crescimento por comparação com o primeiro trimestre de 2016? No essencial que
“esta aceleração resultou do maior contributo da procura externa líquida”, o
mesmo é dizer que foram de novo as exportações que sustentaram o crescimento.
Mais: por comparação com o trimestre anterior até houve uma desaceleração do
consumo privado.
O que esta breve revisita ao
que já sabemos sobre o crescimento permite perceber que este está a acontecer
precisamente ao contrário do que era proposto pelo PS (e por Mário Centeno em
particular) e pela restante geringonça. Quer isto dizer que o “milagre”
aconteceu não por obra do Governo, mas apesar do Governo? Sim, no que respeita
à retórica. Não, no que concerne a um elemento fundamental da sua prática: a
manutenção de uma austeridade sob novas roupagens, uma austeridade que permitiu
a diminuição do défice público para os 2,0%, um número que muito irritou Mariana
Mortágua, que considerou essa descida “radical” e “contraproducente”.
É por haver esta divergência
tão radical entre o discurso político (e também mediático) e o que realmente
está a acontecer que é interessante recordar o paradoxo do povo que empobrece
mesmo quando o rendimento mensal das famílias cresce os tais 79 euros. É também
por haver esta diferença tão grande entre o que se prega e o que acontece que
não podemos ignorar duas coisas: primeiro, que a criação de riqueza na economia
é antes do mais fruto das escolhas dos cidadãos e das empresas, sobretudo
quando estes teimam em contrariar o que os políticos pregam; segundo, que o
principal mérito das políticas públicas nunca será o de dizer o que os agentes
económicos devem fazer, mas o de lhes dar condições para o fazerem e, ao mesmo
tempo, proporcionarem os incentivos certos e não atrapalharem.
Na verdade, o que o
crescimento dos últimos trimestres nos mostra é que houve mesmo uma enorme
reforma estrutural da economia portuguesa durante os anos da troika – e essa
reforma foi aquela que permitiu que as exportações passassem de 29% do PIB em
2010 para mais de 40% do PIB em 2015. Houve muitos fatores que contribuíram
para que isso acontecesse, mas nenhum terá sido mais forte do que a
necessidade: as empresas portuguesas, confrontadas com a crise,
reinventaram-se.
Num texto recente, João Pires da Cruz é bastante gráfico a ilustrar essa profunda mudança: no
princípio deste século cada trabalhador “vendia” 7 mil euros ao estrangeiro; em
2016 “vendeu” 17 mil euros. É um salto impressionante. E é um salto que, nos
últimos anos, tem contado com a ajuda preciosa da venda de serviços, em
particular de serviços turísticos.
Neste milagroso primeiro
trimestre o turismo cresceu 6,7% em número de hóspedes, 5,6% em dormidas e
13,5% em receitas, isto quando as dormidas de cidadãos nacionais estão a cair
2%, o que significa que nem aqui é o “estímulo ao consumo interno que está a funcionar”.
Mais: a tímida recuperação da indústria da construção, que cresceu no trimestre
passado depois de 13 anos a cair, não resulta de investimento público, que
continua a não se materializar, mas sobretudo de obras induzidas pelo turismo,
nomeadamente as inúmeras obras de reconstrução de imóveis que têm vindo a
transformar o centro das nossas principais cidades, antes um terreno de ruínas.
Não é necessário falsificar os
números para falsear a percepção da realidade. Basta falar muito de uns, como
os 2,8% do crescimento, e omitir outros, como os nossos misteriosos 79 euros,
para que se confunda toda a chamada “narrativa”. E o perigo é que foi com
“narrativas” falseadas que não há muitos anos se dizia que tudo corria bem
quando tudo já estava a correr mal.
Por enquanto, na sua imensa
sabedoria, o povo ainda não começou a ir em conversas, pois ainda não se pôs de
novo a consumir de forma desregrada. Mas cuidado, que depois tantos sinais
errados, de tanto estímulo ao facilitismo (caso da recente tolerância de ponto)
e de reais reversões de políticas estruturantes (como no arrendamento urbano),
podemos embriagar-nos de novo. Já esteve mais longe esse dia.
Título e Texto: José Manuel Fernandes, Observador,
22-5-2017
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