Rafael Nogueira
Estou cansado das pautas, das
crises cada vez mais graves, dos que não entendem, dos que fingem não entender.
E chega de opinar. Está perigoso demais. Vamos mudar de assunto. Quero buscar
um refúgio bem longe. E como não dá pra viajar, vou para os livros, vou me
enfiar noutro tempo.
Dia desses, fugi para o século
XIII. Fui atrás de Santo Tomás. Queria uma conversa melhor, sabe? Um pouco mais
de inteligência, um pouco mais de santidade, qualidades que, ao contrário do
que se pensa, costumam andar juntas.
Só que a fuga não funcionou.
Abri a Suma Teológica e lá estava ele, o Brasil. O da toga que governa e
legisla. O do partido sem plano nem povo. O dos coachs que falam em nome de
Deus rendendo culto ao dinheiro. O dos professores que citam Foucault e Bourdieu
entre uma pregação e outra sobre a revolução violenta. Deve ser defeito meu:
busco na filosofia consolação, e encontro analogia.
É que Tomás, embora não tenha
previsto os nossos pormenores tupiniquins, compreendeu como poucos as
estruturas da realidade.
Seu século, o XIII, foi tão
bagunçado quanto o nosso. A Idade Média nunca foi esse marasmo que se ensina em
colégio. Tinha de tudo. Ordens religiosas competindo com zelo que faria inveja
a marqueteiro. Pobres militantes querendo transformar voto de pobreza em
programa político. Gnósticos requentados. Juristas achando que Direito não tem
nada a ver com Deus nem com Justiça. Ideia que pegou. E, nos bastidores, o
secularismo já tomava fôlego.
Tomás não foi gravar vídeo sem
ter o que dizer. Estudou e escreveu, mais para ordenar do que para polemizar.
Ele foi direto ao ponto: ordo rationis ad bonum commune, ab eo qui curam communitatis habet, promulgata. Em bom português: lei é ordenação da razão, voltada ao bem comum, feita por quem cuida da comunidade, e promulgada de forma legítima.
Razão, bem comum, autoridade
legítima, publicidade: quatro pilares. Se falta um, qualquer um, o que sobra
não é lei. É arbítrio. Vontade bruta vestida de norma. E tanto faz de quem vem:
se não tem os quatro, tem golpe.
Tomás propõe quatro espécies
de lei: a eterna, que é a razão divina governando o universo; a natural, que é
a participação humana nessa razão; a humana, imperfeita e perfectível, que deve
aplicar a natural sem contrariá-la; e a divina, revelada, que conduz à
salvação. Cortar isso é serrar o galho em que se senta, e cair no colo de feras
famintas.
Relendo essas passagens
lembrei de Arlindo Veiga dos Santos. Negro, católico, talentoso. Escreveu um
livro chamado Filosofia Política de Santo Tomás de Aquino. Talvez porque
Arlindo não servia à intelligentsia, não pagava pedágio ideológico e não pedia
bênção aos comitês brancos do pensamento permitido, foi esquecido. Não serve
pra banca progressista. Serve à verdade, esse problemão.
Ele me ajudou a entender melhor um dos
pontos mais delicados de Tomás: o direito de resistência ao tirano.
Primeiro, deve-se corrigir a
ordem com os instrumentos da própria ordem. Depois, se necessário, mudar o
mínimo possível. E, mesmo quando a resistência se impõe, ela deve vir com
moderação, essa virtude que confundem com covardia, quando, na verdade, é um
dos nomes da prudência.
É por isso que, num país onde
a Constituição virou sugestão, o crime virou carreira, e a autoridade acredita
que Deus é sinônimo de “excelência”, vale a pena voltar a Tomás. Nem que seja
só pra lembrar que política sem transcendência é guerra civil adiada. Que lei
sem justiça é só outro nome pra força. E que nenhuma civilização sobrevive sem
acreditar que existe uma ordem maior do que os humores do dia. E que ela ainda
pode nos salvar.
Título e Texto: Rafael
Nogueira, O Dia, 23-7-2025
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