terça-feira, 22 de julho de 2025

[Aparecido rasga o verbo] O sofrimento de um pobre banco de praça, o eterno ser inanimado

Aparecido Raimundo de Souza

FRUTUOSO PERERECO e Juvenal Carcomido se encontram na praça principal da cidade onde residem. Se cumprimentam, sentam no único banco existente e começam a conversar.
Frutuoso Perereco:
— Meu velho, você acredita que as minhas segundas-feiras têm gosto de papelão molhado?
Juvenal Carcomido:
— Acredito. As minhas não. Só quando o meu despertador decide dormir mais que eu.
Frutuoso Perereco:
— Hoje meu café discutiu comigo. O filho de uma rapariga disse que estava exausto de sempre ser o primeiro.

Juvenal Carcomido:
— O meu dejejum fugiu. Entrou num livro de receitas da minha esposa e não saiu mais, pelo menos até a hora em que resolvi botar os pés na rua. Acho que virou sobremesa.
Frutuoso Perereco:
— E o seu trabalho como anda?
Juvenal Carcomido:
— Uma porcaria. Se eu soubesse fazer outra coisa além de desapartar briga de urubus, caia fora.
Frutuoso Perereco:
— Já lhe passou pela cabeça enxugar gelo?

Juvenal Carcomido:
— Engraçadinho... apesar de não saber fazer outra coisa que desapartar briga de urubu, ontem preenchi uma planilha chamada "Planilha de Preenchimento da Planilha".
Frutuoso Perereco:
— Isso é arte contemporânea.
Juvenal Carcomido:
— Ou sobrevivência performática.
Frutuoso Perereco:
— Vamos mudar de assunto. Já pensou em trocar de banco?
Juvenal Carcomido:
— Melhor não. Se mudarmos de banco, mudamos de conversa.

Frutuoso Perereco:
— Talvez o banco novo fale francês. Mas alto lá. Se você olhar para os lados, verá que a praça só tem esse banco.
Juvenal Carcomido:
— Verdade. O mais sensato é continuarmos aqui. Voltando à nossa conversa, hoje senti que a manhã estava me observando...
Frutuoso Perereco:
— A minha não só me olhou, como tentou me convencer que terça-feira não existe. E eu quase acreditei. Faltou pouco...
Juvenal Carcomido:
— Ontem fui ao supermercado comprar um pacote de esquecimento. Só tinha latinha de memória afetiva em promoção.
Frutuoso Perereco:
— Também fui ao supermercado. Levei uma dessas latinhas. Meia hora depois, estava de volta para devolver. Muito pesado.

Juvenal Carcomido:
— Frutuoso, me responda sem pensar muito: já se sentiu como uma geladeira desligada num deserto?
Frutuoso Perereco:
— Sim. Principalmente quando recebo e-mails sobre reuniões que não aconteceram.
Juvenal Carcomido:
— O tempo me ligou hoje. Logo pela manhã. Disse que estava cansado de correr. E de ter você colado na aba dele.

Frutuoso Perereco:
— O tempo realmente me bloqueou. Disse que eu vivia de ressaca de amanhã.
Juvenal Carcomido:
— Vamos lançar um livro?
Frutuoso Perereco:
— Só se o prefácio for escrito por um poste.
Juvenal Carcomido:
— Hoje cedo mal havia colocado os pés fora da cama, pensei em adotar uma nuvem passageira.
Frutuoso Perereco:
— E por qual motivo uma nuvem?

Juvenal Carcomido:
— É que ela me pareceu solitária. E disse estar cansada do Hermes Aquino. Desde 1976 esse cantor vem divulgando ela pelo Brasil à fora e não ganha absolutamente nada.
Frutuoso Perereco:
— Tem que ver se ela aceita um contrato para trabalhar de chuva alternada. Se não tiver medo, aliás, o mais importante: averiguar minuciosamente se ela não tem receio dos trovões sentimentais.
Juvenal Carcomido:
— Mudando a prosa: Você acredita que a minha sombra pediu demissão ontem? Me disse na lata que não aguentava mais me seguir sem saber para onde eu ia.

Frutuoso Perereco:
— Acredito sim. A minha fez algo quase igual. Virou autônoma. Abriu uma empresa de abraços em silêncio.
Juvenal Carcomido:
— Tomara que essa nova empreitada dela dê certo. Hoje cedo, quando vinha para cá, topei na porta da farmácia do seu Bizantino com um calendário chorando. Pela história que me contou, acho que ele desconfia que ninguém mais acredita nos dias passados.
Frutuoso Perereco:
— A nossa geração está ficando pirada. Ontem quando fui na padaria o ventilador de teto piscou para mim. Pode ser impressão minha, flerte, ou no pior dos mundos, só cansaço. Afinal de contas, permanecer o dia todo girando sem parar num espaço enorme sem um minuto de descanso...

Juvenal Carcomido, mudando de assunto:
— Você já conversou com uma cadeira?
Frutuoso Perereco:
— Claro. Elas são ótimas falantes. Só não gostam de gente indecisa, tipo esses banquinhos de restaurantes onde os frequentadores sentam e levantam como se tivessem um par de marimbondos colados no cu da bunda.
Juvenal Carcomido:
— Estava pensando em escrever um tratado sobre o não-dito.
Frutuoso Perereco:
— Boa ideia, Juvenal. Aliás, excelente ideia. Mas pense num detalhe: se você for publicar aqui no jornal local, fale com o Marcos Pena de Galinha Caipira para que ele traga a matéria à público em código Morse...

Juvenal Carcomido e Frutuoso Perereco se levantaram do banco ao mesmo tempo. O assento de pedra range silenciosamente e parece se aliviar do peso que suportava.
Juvenal Carcomido faz um convite:
— Escuta aqui, meu amigo Frutuoso. Eu vou dar uma passadinha no dentista. Quer me acompanhar?
Frutuoso Perereco:
— O que você vai fazer lá?

Juvenal Carcomido:
— Dar uma cantada de leve na Suzana Bico de Papagaio, a secretária boazuda do doutor Percival, e ao mesmo tempo verificar se a sala de espera da criatura sofreu alguma modificação. Desde que fui lá, pela última vez, saí com a ideia de que a recepção remonta um espaço de tempo esquisito. Sempre cheia de almas penadas e os pacientes, como um todo, não atinando exatamente com o que estão esperando.
Frutuoso Perereco:
— Você falou em tempo e eu me lembrei que ele, o tempo é só uma fila mal organizada. Isso vale para todas as filas onde esperamos para sermos atendidos. Na padaria, por exemplo, a gente por um espaço enorme “ficamos” em standbyt. Pela espera cansativa e enfadonha, perdemos a paciência, o bom senso, e por fim, não sabemos se continuamos na agonia estafante para comprar o pão e o leite, ou se saímos correndo se descabelando igual essas moscas varejeiras que pousam em nossos rostos como se fizessem um voo de reconhecimento para verificarem se de alguma forma nos reconhecem, ainda que por ouvir dizer.

O banco onde ambos os amigos estavam a conversar, (embora com eles ainda parados em pé, meio que indecisos), respira aliviado. Frutuoso Perereco sofria da síndrome do intestino irritado, ou irritável e, por conta, tinha a péssima mania de soltar uns puns longos de gases fedidos. A pobre base com a saída dele, se alivia do cheiro desses traques inoportunos e realmente começa a se sentir mais livre, leve e solto. Sorri faceiro, dá graças aos céus, quando os dois rapazes, finalmente se afastam e seguem em direção ao prédio onde funciona a clínica odontológica —, local de trabalho da inoxidável e linda Suzana Bico de Papagaio.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de São Paulo, Capital, 22-7-2025

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Um comentário:

  1. Um texto inteligentemente esquisofrênico, com boas pitadass de loucuras desenfreadas de um Aparecido Raimundo de Souza completamente alheio ao mundo em que vive. É isso, a meu ver, que faz dele um cara legal, um menino maluquinho com carinha de homem maduro e a alma sempre aberta às peripécias de uma engenhosidade capaz de deixar qualquer ser humano com a alma em frangalhos e como diria a Carina "pandarecadamente " (de pandarecos), zonzo e abirutado, onde a loucura e a esquisofrenia se encontram e se abraçam num amplexo que nos leva a viajar por estradas de sendas incertas e sem privilégios de volta ao estado normal. Temos também um banco de praça, filho único, de nariz espirituoso, personagem inanimado de cimento que sente cheiros de um bumbum sem freios, desidratado, capaz de catingar os narizes mais estranhos e esquisitos, sem falar, mas já o fazendo, sem trazer à baila a nuvem passageira, o trabalho de enxugar gelo e outras birutices sensacionais do homem Aparecido, do Raimundo cronista, e do de Souza imaginoso, versátil, lindo, e ao mesmo tempo sátiro e engraçado. Não sei se me fiz entender, não se esqueçam sou roceira, só conheço o cabo da enchada, só sei colher café e cuidar de galinhas e porcos... mas no geral, me deparei com um texto pra lá de elegante, escrito com a magia imaginosa (sabe lá o que é isso?) de um senhor de setenta e um anos que não envelhececeu... apenas virou uma criança grande que sabe enfeitar com a dose certa o nosso cotidiano tão insano e ao mesmo tempo brutal. E eu sou feliz por tê-lo como meu mentor intelectual. Que Deus lhe proteja e guarde.

    Tatiana Gomes Neves, (Tati) do Sitio Shangri-lá, ou como todos o chamam por aqui, "Um pedacinho de paraíso, melhor escrito, "um lugar perdido no meio do nada."
    Obrigada, Carina, por corrigir as minhas loucuras.

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