terça-feira, 15 de julho de 2025

[Aparecido rasga o verbo] O sofazinho azul

Aparecido Raimundo de Souza

“Se você chorar um dia ao lembrar de mim, não esqueça que eu estarei em algum lugar para, com as mãos em prece, afastar todas as tristezas do seu rostinho que aprendi a amar”.
Concessa Leal, do seu livro “Canção da despedida” Revista Continente Editora” 1964.

VEZ EM QUANDO, algumas lembranças (como um domo oriundo do meu passado não muito distante), renascem na interface entre o medo e a solidão que me atormentam. São recordações do meu tempo de Marlucia e a nossa primeira filha, a Amanda. Sapeca, essa mocinha chegada aos dois de novembro de mil novecentos e noventa e seis, veio a ser a minha primeira benção de Deus, depois que me separei da Carla e da nossa filha Narjara.

Amanda tinha a beleza ambivalente de uma dessas bonequinhas deslumbrante tipo a Barbie, só que mais bonita. Magrinha, inquieta, extremamente sapeca e lindamente risonha. Possuía um sorriso contagiante e bucólico, uma radiosidade de princesa saída dos contos de fadas, apesar de ter nascido com os lábios leporinos. Por conta desse pequeno probleminha, quando se fazia em festa — meu Deus —, quando ela se abria em maviosidades, eu perdia literalmente o chão.

Mais que isso. Viajava em sonhos dourados. Como se tivesse asas, voava para além da casinha humilde onde morávamos no bairro da Cascata. A construção rústica sediada nesse bairro bucólico, não ia além de uma moradia meia água simplória sem o luxo de um palacete. Nessa edificação, composta apenas de um quarto mais ou menos grande, uma sala, cozinha, banheiro e uma varandinha, eu me sentia um rei.

Não um desse velhos balofos que usam coroa, e sentam em um trono cheio de ouro e tem a sua disposição uma pá de serviçais para servir a tempo e a hora. Havia também um quintal grandioso, onde poderia, num futuro próximo, construir uma casa maior, e junto com a minha nova família, desfrutar de bons ventos, de dias benfazejos, já que o céu me dera, de bandeja uma nova chance de ser completamente feliz.

Lembro que ao completar quatro aninhos, comprei para Amanda, um sofazinho. Um “sentador de couro azul.” Mal e porcamente ela conseguia se acomodar direito. Quando fazia uma arte qualquer, eu fingia ralhar com ela, e, em seguida, falava:
— Senta no sofazinho...
Depressa, ela se albergava e ficava, por quase quinze ou vinte minutos, os olhinhos perdidos num ponto distante, chupando o dedindo polegar esquerdo.


Quando ela chupava o dedinho, eu sabia que por algum motivo desconhecido, estava tristinha. Para tentar devolver o meu gesto de simpatia, me aproximava dela, passava as mãos em seus cabelos ralinhos, ao tempo em que regredia ao “meu ontem”, lembrando a mim mesmo quando transitava no distante do albor da idade dela. Era como se a minha Amanda sempre tivesse existido dentro de mim e somente nesses momentos de emoção à flor da pele eu a descobrisse mergulhada num abismo imensurável. Então, embora sabendo a resposta, perguntava:
— Conta para o papai: você está tristinha?

Amanda nada respondia. Parecia estar localizando em meu olhar um pedacinho do seu território emocional num também distanciado extremo, até porque não imaginava o que seria ser alegre ou triste. Para ela, o que importava se fazia enredado na vida plena, notadamente nas peraltices, nas correrias perigosas pelo quintal, sem contar o querer andar pelos lugares mais perigosos e impossíveis, recantos que poderiam lhe produzir um machucado, ou, de repente, cair e abrir um novo rasgo na boquinha ou no rostinho, ou até se contundir ainda mais severamente.

Quando fomos para Bauru, com a Amanda em busca do “Centrinho”, (o famoso HRAC da Universidade de São Paulo) eu e Marlucia, brigamos. Vivíamos às turras. Falávamos aos resmungos. Viajamos horas de ônibus de Vitória até São Paulo e de São Paulo ao destino do famoso hospital. Depois de hospedados em uma casa que pessoas alugavam, fizemos as pazes. Éramos refugiados sem causas. Dois bobalhões interessados em abrigar culpas esfarrapadas do que em dar vida a laços inquebrantáveis. Apesar disso tudo, nove meses depois veio ao mundo a minha segunda filha: Luana Cristina, nascida aos oito de maio de 1998.

Hoje, quase às portas de completar vinte e nove anos, a minha Amanda (os lábios perfeitos), coroada aos dois de novembro de 1996, cresceu, casou descasou, me deu um neto maravilhoso (João Eduardo), mas também abriu uma mágoa grandiosa que acredito nunca cicatrizará em meu peito. Por conta, debruçado na minha saudade, invento um sorriso sem graça quando penso nela, e a vejo em minha tristeza enfadonha, tipo uma espécie de mágoa intransigente atrelada, ainda, no corpo daquela criança, tênue flor se abrindo em botão no jardim da minha infelicidade.

O dedinho esquerdo na boca, o seu silêncio sentado junto com ela no sofazinho azul e o coraçãozinho, agora adulto, de moça feita, percebo com meus devaneios, que a inocência daquela “pirralhinha encantada” se foi, bem ainda, o amor que sentia por mim se esvaiu, findou, feneceu. Nossos caminhos, num dado momento se apartaram no recôndito das estrelas mais distantes. Por conta, eu me perdi de mim e me vejo na pele de um pai abandonado.

Bem sei, uma muralha enorme não me deixa ouvir a sua voz. Nada tenho para me agarrar de unhas e dentes, como de igual modo nada me sobrou disponível dentro de toda essa tecnologia que me cerca. Talvez, por isso, coisa alguma me permita trazer de volta o amor grandioso que alimento na alma em frangalhos, tampouco uma brecha mínima que surgisse, me dá a chance de um reencontro. Em caminho paralelo, uma dor diluvial e possante insiste em me matar aos poucos numa agonia ininterrupta e brutal.

Por assim, diante de uma ausência que se fez fugidia como o vento intenso que me consome aos goles poucos, sei que os anos à frente, enclausurado em um tempo que não sei a duração, dia após dia me traz a certeza de que me restam tantos amanhãs e noites, na mais completa solidão. E eu, como pai, só queria que esse suplício desconfortante me puxasse mais para o fundo da tristeza que eu sei que ela sente, mas que por ser durona, finge não perceber.

E se em algum momento o faz, ainda que por evidências ocasionais, não demonstra. Por meu turno, procuro, debalde, levar meus medos e angústias para a minha própria impotência. Pudesse, pararia o tempo perdido, e sonharia com a possibilidade de ele reter os passos apressados das horas, e para completar meu sonho utópico, fugiria, fugiria correndo do meu ontem. Escafederia da agonia insana que me mata aos poucos e consome a minha vida como uma doença maligna e incurável.

Faz tempo que Amanda se distanciou. Mais que isso. Me bloqueou as ligações. Todos os dias insistentemente como uma criança que acabou de ganhar o brinquedo de seus sonhos, mando mensagens, notificações que nunca trazem as alegrias de um retorno. Nessa altura do campeonato, um simples “oi” me faria transbordar de emoções como uma sala terrivelmente escura que acabasse de se encher de uma luz envolvente e magnamente radiosa. No contrafluxo do meu desespero, sigo vegetando em pequenas gotas, como se carecesse de um remédio para manter meu coração batendo... esperançoso que ela, a minha “Barriguinha”, um dia RETORNE.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de São Paulo, Capital, 15-7-2025

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