domingo, 6 de julho de 2025

A ciranda dos poderes

O STF dá um pito no Executivo e no Legislativo para pôr fim ao desentendimento em torno do IOF. E a sociedade fica inerte, sabendo que no final a conta sobrará para ela


Nuno Vasconcellos

Na política como na vida, os problemas com os quais nos deparamos hoje, na maioria das muitas vezes, são consequências de equívocos cometidos do passado — e, quando nos damos conta disso, é tarde demais para voltar atrás e corrigir o que foi feito. É isso que explica, com certeza, a situação cada vez mais embaraçosa que o governo vem enfrentando em seu relacionamento com o Congresso, e que foi ganhando dramaticidade e tensão no rastro de uma sucessão de erros cometidos desde o dia 22 de maio — há mais de um mês, portanto.

Naquela data, um problema que nem precisava ter existido — e só existiu por absoluta inépcia política por parte do Ministério da Fazenda — entrou em cena, foi ganhando corpo, extrapolou os limites do Poder Executivo, acirrou os ânimos do Legislativo e, na semana passada, envolveu o Judiciário. E, naturalmente, deixou a sociedade inerte e com a certeza de que, independentemente do desfecho definitivo da decisão, a conta final será paga por ela.

Afinal, tem sido assim nos últimos anos. O enredo é conhecido: o Executivo aumenta seus gastos além do limite razoável. O Legislativo, além de nada fazer para impedir que isso aconteça, faz tudo o que pode para aumentar sua parte no butim. E o Judiciário assiste a tudo quieto sem tomar decisões que beneficiem o contribuinte. Até que a situação se torna insustentável e todos se unem para buscar uma solução emergencial para um problema que, como já foi dito, mas não custa repetir, não precisava ter existido.

A essa altura, já está claro que o tema que será discutido aqui é a novela em torno do Imposto de Operações Financeiras (IOF) e a confusão que se armou que se armou em torno dele. De uma hora para outra, o imposto que era um mero coadjuvante no hospício tributário brasileiro acabou se transformando em protagonista da ópera bufa encenada em Brasília nas últimas semanas — e que deverá, por ordem judicial, ter seu desfecho nos próximos dias.

Para dar mais clareza ao que está sendo dito aqui, é preciso voltar ao 22 de maio, quando tudo começou. Naquele dia, o Ministério da Fazenda anunciou, sem qualquer aviso ou discussão prévia com quem quer que seja, a decisão de recorrer ao IOF para resolver o problema crônico de falta de dinheiro para bancar os sempre crescentes gastos estatais.

Na opinião do ministro Fernando Haddad desde o primeiro momento, sem os recursos gerados pelo aumento da alíquota de imposto para o qual ninguém dava muita importância, seria impossível fechar o caixa e evitar o déficit público. Em outras palavras, e na visão de quem está de fora da máquina pública, sem aumentar as alíquotas do imposto seria impossível cobrir o rombo que a gastança desenfreada de dinheiro público vem provocando no caixa federal.

BARAFUNDA TRIBUTÁRIA

A reação negativa por parte do Congresso foi imediata. Só que, ao invés de recuar na decisão e esquecer o IOF, o governo resolveu medir forças e seguir em frente. Depois de algumas mudanças cosméticas no texto, continuou insistindo em fazer do IOF a âncora do equilíbrio fiscal precário que ele pretende alcançar para este ano e para 2026. Qualquer economista iniciante sabe que esse imposto, por definição, não se presta a esse tipo de papel.

Em razão de seu caráter regulatório, o IOF foge ao princípio da anterioridade, previsto no artigo 150 da Constituição. Esse princípio obriga o governo a estabelecer a alíquota da maioria dos tributos no ano anterior ao da cobrança. Isso não se aplica ao IOF. A lei autoriza que o governo, dentro de limites pré-estabelecidos, baixe ou suba as alíquotas do IOF por meio de portarias que entram em vigor no ato da publicação, sem depender de autorização do Congresso ou de quem quer que seja.

A razão para essa condição é simples de se entender. Enquanto o IRPF. IRPJ, IPI, ICMS e as outras siglas que compõem a barafunda tributária brasileira se referem a impostos destinados a encher as burras do Tesouro Nacional, o IOF é, a princípio, uma ferramenta utilizada para corrigir distorções momentâneas, capazes de oferecer riscos sistêmicos à economia.

Ele pode ser aumentado, por exemplo, para encarecer o custo do crédito em caso de um aumento exagerado de demanda ou, na direção oposta, ser reduzido para estimular o mercado em caso de desaquecimento. O problema está justamente aí. Como as alíquotas do IOF podem subir ou descer ao sabor das circunstâncias do mercado, o governo não deve (ou, pelo menos, não deveria) contar com os recursos arrecadados por meio desse tributo para bancar suas despesas correntes.

Sabendo de tudo isso, a dúvida que fica é a seguinte: por que o governo recorreu ao Congresso para compartilhar com a decisão de aumentar a alíquota do imposto quando poderia ter tomado sozinho essa decisão? A resposta é simples: o governo sabe que seu apetite fiscal já ultrapassou todos os limites razoáveis. Sabia que essa decisão poderia empurrar ainda mais para baixo a popularidade declinante do presidente Lula. A ideia, portanto, foi encontrar alguém para dividir a culpa com ele.

Com a intenção de não aumentar a fama de gastador e taxador que pesa sobre ele — mas sem, em qualquer momento, manifestar a intenção de deixar de gastar ou de taxar — o governo escolheu um caminho que o colocou diante de problemas muito maiores do que teria caso tivesse recuado no primeiro momento. E mais: em nenhum momento, desde que a confusão começou, a Fazenda abriu mão do tom ameaçador com que se referia ao risco de ficar sem esse dinheiro.

Ignorando o aumento de preços em cadeia que o aumento do IOF provocará em toda a economia, o governo, por meio de seus porta-vozes e de seus companheiros bem colocados na imprensa, passou a vender a ideia de que esse imposto é pago apenas pelos mais ricos, ou melhor, pelos super-ricos. O aumento das alíquotas do tributo, segundo a versão oficial, livraria “os mais pobres”, que ganham até R$ 5000 por mês, do Imposto de Renda. E, para completar a pantomima, surgiu a lorota de que o pretendido aumento do IOF se destina a promover a “Justiça Tributária” — quando está evidente que a única intenção é aumentar a arrecadação para continuar sustentando sua máquina onerosa, pesadona e ineficiente com vistas às eleições do ano que vem.

VIVA SÃO JOÃO!

O Congresso, para não deixar de dar sua contribuição para acirrar o clima de balbúrdia que tem tomado conta da política brasileira, decidiu fazer a sua parte. E, numa dobradinha bem ensaiada como um passo de minueto entre o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos/RN), e o do Senado, Davi Alcolumbre (União/PA), resolveu contra-atacar e mostrar que o Legislativo também é capaz de tomar medidas capazes de deixar o Executivo em dificuldade.

No dia 23 de junho, um mês depois do início da confusão, a Câmara dos Deputados pôs em votação e aprovou um Decreto Legislativo que revogava todas as medidas tomadas pelo governo a respeito do IOF. O resultado não deixou dúvida em relação à fragilidade do governo nessa matéria e à erosão preocupante de sua base de sustentação no Congresso. Foram 383 votos pela aprovação do Decreto Legislativo (e, portanto, contrários aos interesses do governo) e apenas 98 pela rejeição.

Detalhe: foi uma sessão híbrida, na qual muitos deputados deram seus votos sem precisar estar presentes no plenário da Câmara, em Brasília. Afinal, na noite seguinte à data da votação, 24 de junho, aconteceriam os festejos de São João e, como se sabe, esse é um momento sagrado na região Nordeste. Entre comparecer a uma sessão presencial em Brasília ou dançar forró, curtir a fogueira e tomar licor de jenipapo junto a suas bases nos estados nordestinos, pode ter certeza de que os nobres parlamentares não pensariam duas vezes antes de fazer sua escolha. Mesmo não estando em recesso e com a data da festa caindo em plena quinta-feira, dia de trabalho para qualquer trabalhador brasileiro, eles ficariam com a festa!

O recurso tecnológico da votação à distância, nesse caso, permitiu o voto à distância e deu margem a um quórum para lá de expressivo. Para se ter uma ideia de como os 383 votos a 98 representam um placar elástico, basta lembrar que a sessão da Câmara que autorizou a abertura do processo de impeachment contra Dilma Rousseff em 2016 — no ápice da impopularidade da ex-presidente — teve menos votos a favor (foram 367 pelo impeachment) e mais votos contrários (137). Assim que o resultado foi proclamado, Motta encaminhou o Decreto Legislativo para seu amigo Alcolumbre e o Senado, em votação simbólica, que dispensou a contagem dos votos individuais, também aprovou o Decreto Legislativo que pôs fim à cobrança do IOF.

Quem acompanha mais ou menos de perto o dia a dia do Congresso e consegue avaliar o humor dos parlamentares pelos votos que dão nas sessões mais importantes é capaz de afirmar que a rejeição dos deputados e dos senadores à ideia de aumentar as alíquotas do IOF nada tem a ver, necessariamente, com a preocupação de Suas Excelências com o bolso do contribuinte. Pode até ser que, antes de dar seu voto, um ou outro até tenha pensado no impacto de mais essa mordida tributária no bolso do cidadão. Mas a explicação mais provável para um resultado tão elástico passa longe de qualquer motivação nobre como essa.

Os parlamentares, por sinal, não se cansam de dar exemplos de que, diante das pautas que os beneficiam, não estão nem aí para o que a sociedade pensa ou deixa de pensar sobre as decisões que tomam. Quer um exemplo? Vamos lá: na mesma sessão que decidiu pela aprovação do Decreto Legislativo que tornava sem efeito o aumento do IOF, o Senado sacramentou a decisão, aprovada anteriormente pela Câmara, de aumentar de 513 para 531 o número de deputados federais no Congresso... Quem aprova uma medida como essa não teria, a princípio, pudor nenhum em aprovar uma matéria que tira um pouco mais de dinheiro de uma sociedade já sobrecarregada por uma carga tributária alta demais para a qualidade dos serviços públicos que recebe, não é mesmo?

A impressão que ficou, no final das contas, foi a de que, para os parlamentares, tanto faz se as alíquotas do IOF fiquem 0,5% mais altas ou 0,5% mais baixas do que estavam no início dessa história. O que parece importar para eles — ou pelo menos para aqueles parlamentares que se orientam pelos mesmos valores de Motta e Alcolumbre — é, em primeiríssimo lugar, garantir que a parte que lhes cabe no orçamento federal esteja garantida. Ou seja, que não falte dinheiro para a execução das tais emendas parlamentares que, de algum tempo para cá, parece ter se tornado a única preocupação dos políticos das duas casas.

Afinal, como diz o ditado “se a farinha é pouca, meu pirão, primeiro!” E como, em períodos de gastança como o que estamos vivendo, o dinheiro do Tesouro costuma acabar antes de dar conta de tudo que precisa ser pago, eles fazem questão de garantir logo a parte que lhes cabe, antes que o caixa fique zerado e não sobre verba para asfaltar estradas em suas propriedades rurais ou para recapear as ruas dos condomínios de luxo onde moram — como costuma acontecer com os recursos das emendas. Por menos nobre que possa parecer, muita gente anda dizendo por aí que a verdadeira razão para a derrota fragorosa do governo foram os atrasos recorrentes na liberação do dinheiro para a execução das emendas. A língua do povo é terrível em momentos como esses, não é mesmo?

Se faltava alguma peça nessa história, agora não falta mais. O Supremo Tribunal Federal (STF) entrou na raia provocado inicialmente pelo PSOL — partido da extrema esquerda que atua como uma espécie de puxadinho do PT. De alguns tempos para cá, a legenda tem procurado compensar sua inexpressividade nas urnas e no plenário contestando a aprovação de toda e qualquer medida que contrarie os interesses do governo no qual atua como figurante. Desta vez, porém, o governo não deixou que o partido ficasse sozinho — e a própria Advocacia Geral da União (AGU) entrou em cena pedindo que o STF interviesse na decisão do Congresso e deixasse o governo agir por sua conta e risco.

Na sexta-feira, o ministro Alexandre de Moraes decidiu tornar sem efeito todas as decisões tomadas pelo Executivo e pelo Legislativo em relação ao IOF. À primeira vista, o que o ministro fez foi mais ou menos o mesmo que um bedel das escolas rigorosas de antigamente fazia com os alunos que se desentendiam durante o recreio. Deu um puxão de orelha em cada um dos brigões, ralhou com eles e disse que os dois estavam errados. Depois, mandou que um se sentasse diante do outro e só se levantasse depois que encontrassem a solução para um problema que, na melhor das hipóteses, não precisava ter existido. Ou que, na pior delas, não precisava ter chegado ao impasse que chegou.

CONTINUIDADE DEMOCRÁTICA

O mais preocupante nessa história é que nada indica que essa espécie de acareação entre as duas partes evolua para uma paz duradoura entre o Executivo e o Legislativo. Nem que o hábito recorrente do Judiciário de sempre chamar para si assuntos que são de competência dos outros poderes passe a ser considerada uma atitude normal. Nem que, daqui por diante, os poderes voltem a cumprir o seu papel naquele clima de harmonia que chegou a existir no início do atual mandato do presidente Lula.

Isso mesmo. Para quem não se recorda, o atual governo começou seu mandato vivendo uma espécie de lua de mel com o Congresso. Antes mesmo da posse, Lula recebeu dos parlamentares eleitos na legislatura anterior um presente e tanto — a chamada PEC da Transição. A mudança na lei permitiu que ele elevasse os gastos públicos, sem qualquer previsão orçamentária, até o limite de R$ 145 bilhões. Depois disso, a vida seguiu sem maiores surpresas. Houve vitórias e derrotas pontuais, mas, de um modo geral, o vento parecia soprar a favor de um governo que, bem ou mal, vinha apresentando resultados favoráveis na economia.

Quem olha para as condições macroeconômicas não entende por que o clima anda tão pesado. O PIB tem crescido. O desemprego caiu. A inflação, se não baixou ao ponto de tranquilizar a sociedade, também não saiu do controle ao ponto de gerar desabastecimento e deixar vazias as gôndolas dos supermercados. As reservas cambiais continuam parrudas, na casa dos US$ 340 bilhões. A impressão que se tinha meses atrás era a de que os problemas que geravam a queda de popularidade de Lula se resumiam à inabilidade extrema do governo em se comunicar com a sociedade — e o próprio Planalto endossou esse ponto de vista ao substituir, no dia 14 de janeiro deste ano, o deputado Paulo Pimenta pelo publicitário Sidônio Palmeira no comando da Secretaria de Comunicação.

O problema se revelou muito maior do que esse. A questão, pelo que tudo indica, é cada vez mais de operação política.

A despeito de toda habilidade demonstrada nas passagens anteriores pela presidência da República, Lula talvez não tenha considerado que, numa equipe heterogênea como o que ele formou para se garantir no poder, os conflitos muitas vezes surgem dentro e não fora do governo. Ou, mais grave do que isso, no esgotamento do modelo criado pela Constituição de 1988 que, mais cedo ou mais tarde, terá que ser revista, com uma definição mais precisa do papel que cabe a cada poder no Estado brasileiro. Pelo bem da própria continuidade democrática.

Título e Texto: Nuno Vasconcellos, O Dia, 6-7-2025; Arte: Kiko 

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