O STF dá um pito no Executivo e no Legislativo para pôr fim ao desentendimento em torno do IOF. E a sociedade fica inerte, sabendo que no final a conta sobrará para ela
Nuno Vasconcellos
Na política como na vida, os
problemas com os quais nos deparamos hoje, na maioria das muitas vezes, são
consequências de equívocos cometidos do passado — e, quando nos damos conta
disso, é tarde demais para voltar atrás e corrigir o que foi feito. É isso que
explica, com certeza, a situação cada vez mais embaraçosa que o governo vem
enfrentando em seu relacionamento com o Congresso, e que foi ganhando
dramaticidade e tensão no rastro de uma sucessão de erros cometidos desde o dia
22 de maio — há mais de um mês, portanto.
Naquela data, um problema que
nem precisava ter existido — e só existiu por absoluta inépcia política por
parte do Ministério da Fazenda — entrou em cena, foi ganhando corpo, extrapolou
os limites do Poder Executivo, acirrou os ânimos do Legislativo e, na semana
passada, envolveu o Judiciário. E, naturalmente, deixou a sociedade inerte e
com a certeza de que, independentemente do desfecho definitivo da decisão, a
conta final será paga por ela.
Afinal, tem sido assim nos
últimos anos. O enredo é conhecido: o Executivo aumenta seus gastos além do
limite razoável. O Legislativo, além de nada fazer para impedir que isso
aconteça, faz tudo o que pode para aumentar sua parte no butim. E o Judiciário
assiste a tudo quieto sem tomar decisões que beneficiem o contribuinte. Até que
a situação se torna insustentável e todos se unem para buscar uma solução
emergencial para um problema que, como já foi dito, mas não custa repetir, não
precisava ter existido.
A essa altura, já está claro que o tema que será discutido aqui é a novela em torno do Imposto de Operações Financeiras (IOF) e a confusão que se armou que se armou em torno dele. De uma hora para outra, o imposto que era um mero coadjuvante no hospício tributário brasileiro acabou se transformando em protagonista da ópera bufa encenada em Brasília nas últimas semanas — e que deverá, por ordem judicial, ter seu desfecho nos próximos dias.
Para dar mais clareza ao que
está sendo dito aqui, é preciso voltar ao 22 de maio, quando tudo começou.
Naquele dia, o Ministério da Fazenda anunciou, sem qualquer aviso ou discussão
prévia com quem quer que seja, a decisão de recorrer ao IOF para resolver o
problema crônico de falta de dinheiro para bancar os sempre crescentes gastos
estatais.
Na opinião do ministro Fernando Haddad desde o primeiro momento, sem os recursos gerados pelo aumento da alíquota de imposto para o qual ninguém dava muita importância, seria impossível fechar o caixa e evitar o déficit público. Em outras palavras, e na visão de quem está de fora da máquina pública, sem aumentar as alíquotas do imposto seria impossível cobrir o rombo que a gastança desenfreada de dinheiro público vem provocando no caixa federal.
BARAFUNDA TRIBUTÁRIA
A reação negativa por parte do
Congresso foi imediata. Só que, ao invés de recuar na decisão e esquecer o IOF,
o governo resolveu medir forças e seguir em frente. Depois de algumas mudanças
cosméticas no texto, continuou insistindo em fazer do IOF a âncora do
equilíbrio fiscal precário que ele pretende alcançar para este ano e para 2026.
Qualquer economista iniciante sabe que esse imposto, por definição, não se
presta a esse tipo de papel.
Em razão de seu caráter
regulatório, o IOF foge ao princípio da anterioridade, previsto no artigo 150
da Constituição. Esse princípio obriga o governo a estabelecer a alíquota da
maioria dos tributos no ano anterior ao da cobrança. Isso não se aplica ao IOF.
A lei autoriza que o governo, dentro de limites pré-estabelecidos, baixe ou
suba as alíquotas do IOF por meio de portarias que entram em vigor no ato da
publicação, sem depender de autorização do Congresso ou de quem quer que seja.
A razão para essa condição é
simples de se entender. Enquanto o IRPF. IRPJ, IPI, ICMS e as outras siglas que
compõem a barafunda tributária brasileira se referem a impostos destinados a
encher as burras do Tesouro Nacional, o IOF é, a princípio, uma ferramenta
utilizada para corrigir distorções momentâneas, capazes de oferecer riscos
sistêmicos à economia.
Ele pode ser aumentado, por
exemplo, para encarecer o custo do crédito em caso de um aumento exagerado de
demanda ou, na direção oposta, ser reduzido para estimular o mercado em caso de
desaquecimento. O problema está justamente aí. Como as alíquotas do IOF podem
subir ou descer ao sabor das circunstâncias do mercado, o governo não deve (ou,
pelo menos, não deveria) contar com os recursos arrecadados por meio desse
tributo para bancar suas despesas correntes.
Sabendo de tudo isso, a dúvida
que fica é a seguinte: por que o governo recorreu ao Congresso para
compartilhar com a decisão de aumentar a alíquota do imposto quando poderia ter
tomado sozinho essa decisão? A resposta é simples: o governo sabe que seu apetite
fiscal já ultrapassou todos os limites razoáveis. Sabia que essa decisão
poderia empurrar ainda mais para baixo a popularidade declinante do presidente
Lula. A ideia, portanto, foi encontrar alguém para dividir a culpa com ele.
Com a intenção de não aumentar
a fama de gastador e taxador que pesa sobre ele — mas sem, em qualquer momento,
manifestar a intenção de deixar de gastar ou de taxar — o governo escolheu um
caminho que o colocou diante de problemas muito maiores do que teria caso
tivesse recuado no primeiro momento. E mais: em nenhum momento, desde que a
confusão começou, a Fazenda abriu mão do tom ameaçador com que se referia ao
risco de ficar sem esse dinheiro.
Ignorando o aumento de preços em cadeia que o aumento do IOF provocará em toda a economia, o governo, por meio de seus porta-vozes e de seus companheiros bem colocados na imprensa, passou a vender a ideia de que esse imposto é pago apenas pelos mais ricos, ou melhor, pelos super-ricos. O aumento das alíquotas do tributo, segundo a versão oficial, livraria “os mais pobres”, que ganham até R$ 5000 por mês, do Imposto de Renda. E, para completar a pantomima, surgiu a lorota de que o pretendido aumento do IOF se destina a promover a “Justiça Tributária” — quando está evidente que a única intenção é aumentar a arrecadação para continuar sustentando sua máquina onerosa, pesadona e ineficiente com vistas às eleições do ano que vem.
VIVA SÃO JOÃO!
O Congresso, para não deixar
de dar sua contribuição para acirrar o clima de balbúrdia que tem tomado conta
da política brasileira, decidiu fazer a sua parte. E, numa dobradinha bem
ensaiada como um passo de minueto entre o presidente da Câmara, Hugo Motta
(Republicanos/RN), e o do Senado, Davi Alcolumbre (União/PA), resolveu
contra-atacar e mostrar que o Legislativo também é capaz de tomar medidas
capazes de deixar o Executivo em dificuldade.
No dia 23 de junho, um mês
depois do início da confusão, a Câmara dos Deputados pôs em votação e aprovou
um Decreto Legislativo que revogava todas as medidas tomadas pelo governo a
respeito do IOF. O resultado não deixou dúvida em relação à fragilidade do
governo nessa matéria e à erosão preocupante de sua base de sustentação no
Congresso. Foram 383 votos pela aprovação do Decreto Legislativo (e, portanto,
contrários aos interesses do governo) e apenas 98 pela rejeição.
Detalhe: foi uma sessão
híbrida, na qual muitos deputados deram seus votos sem precisar estar presentes
no plenário da Câmara, em Brasília. Afinal, na noite seguinte à data da
votação, 24 de junho, aconteceriam os festejos de São João e, como se sabe, esse
é um momento sagrado na região Nordeste. Entre comparecer a uma sessão
presencial em Brasília ou dançar forró, curtir a fogueira e tomar licor de
jenipapo junto a suas bases nos estados nordestinos, pode ter certeza de que os
nobres parlamentares não pensariam duas vezes antes de fazer sua escolha. Mesmo
não estando em recesso e com a data da festa caindo em plena quinta-feira, dia
de trabalho para qualquer trabalhador brasileiro, eles ficariam com a festa!
O recurso tecnológico da
votação à distância, nesse caso, permitiu o voto à distância e deu margem a um
quórum para lá de expressivo. Para se ter uma ideia de como os 383 votos a 98
representam um placar elástico, basta lembrar que a sessão da Câmara que
autorizou a abertura do processo de impeachment contra Dilma Rousseff em 2016 —
no ápice da impopularidade da ex-presidente — teve menos votos a favor (foram
367 pelo impeachment) e mais votos contrários (137). Assim que o resultado foi
proclamado, Motta encaminhou o Decreto Legislativo para seu amigo Alcolumbre e
o Senado, em votação simbólica, que dispensou a contagem dos votos individuais,
também aprovou o Decreto Legislativo que pôs fim à cobrança do IOF.
Quem acompanha mais ou menos
de perto o dia a dia do Congresso e consegue avaliar o humor dos parlamentares
pelos votos que dão nas sessões mais importantes é capaz de afirmar que a
rejeição dos deputados e dos senadores à ideia de aumentar as alíquotas do IOF
nada tem a ver, necessariamente, com a preocupação de Suas Excelências com o
bolso do contribuinte. Pode até ser que, antes de dar seu voto, um ou outro até
tenha pensado no impacto de mais essa mordida tributária no bolso do cidadão.
Mas a explicação mais provável para um resultado tão elástico passa longe de
qualquer motivação nobre como essa.
Os parlamentares, por sinal,
não se cansam de dar exemplos de que, diante das pautas que os beneficiam, não
estão nem aí para o que a sociedade pensa ou deixa de pensar sobre as decisões
que tomam. Quer um exemplo? Vamos lá: na mesma sessão que decidiu pela
aprovação do Decreto Legislativo que tornava sem efeito o aumento do IOF, o
Senado sacramentou a decisão, aprovada anteriormente pela Câmara, de aumentar
de 513 para 531 o número de deputados federais no Congresso... Quem aprova uma
medida como essa não teria, a princípio, pudor nenhum em aprovar uma matéria
que tira um pouco mais de dinheiro de uma sociedade já sobrecarregada por uma
carga tributária alta demais para a qualidade dos serviços públicos que recebe,
não é mesmo?
A impressão que ficou, no
final das contas, foi a de que, para os parlamentares, tanto faz se as
alíquotas do IOF fiquem 0,5% mais altas ou 0,5% mais baixas do que estavam no
início dessa história. O que parece importar para eles — ou pelo menos para aqueles
parlamentares que se orientam pelos mesmos valores de Motta e Alcolumbre — é,
em primeiríssimo lugar, garantir que a parte que lhes cabe no orçamento federal
esteja garantida. Ou seja, que não falte dinheiro para a execução das tais
emendas parlamentares que, de algum tempo para cá, parece ter se tornado a
única preocupação dos políticos das duas casas.
Afinal, como diz o ditado “se
a farinha é pouca, meu pirão, primeiro!” E como, em períodos de gastança como o
que estamos vivendo, o dinheiro do Tesouro costuma acabar antes de dar conta de
tudo que precisa ser pago, eles fazem questão de garantir logo a parte que lhes
cabe, antes que o caixa fique zerado e não sobre verba para asfaltar estradas
em suas propriedades rurais ou para recapear as ruas dos condomínios de luxo
onde moram — como costuma acontecer com os recursos das emendas. Por menos
nobre que possa parecer, muita gente anda dizendo por aí que a verdadeira razão
para a derrota fragorosa do governo foram os atrasos recorrentes na liberação
do dinheiro para a execução das emendas. A língua do povo é terrível em
momentos como esses, não é mesmo?
Se faltava alguma peça nessa
história, agora não falta mais. O Supremo Tribunal Federal (STF) entrou na raia
provocado inicialmente pelo PSOL — partido da extrema esquerda que atua como
uma espécie de puxadinho do PT. De alguns tempos para cá, a legenda tem
procurado compensar sua inexpressividade nas urnas e no plenário contestando a
aprovação de toda e qualquer medida que contrarie os interesses do governo no
qual atua como figurante. Desta vez, porém, o governo não deixou que o partido
ficasse sozinho — e a própria Advocacia Geral da União (AGU) entrou em cena
pedindo que o STF interviesse na decisão do Congresso e deixasse o governo agir
por sua conta e risco.
Na sexta-feira, o ministro Alexandre de Moraes decidiu tornar sem efeito todas as decisões tomadas pelo Executivo e pelo Legislativo em relação ao IOF. À primeira vista, o que o ministro fez foi mais ou menos o mesmo que um bedel das escolas rigorosas de antigamente fazia com os alunos que se desentendiam durante o recreio. Deu um puxão de orelha em cada um dos brigões, ralhou com eles e disse que os dois estavam errados. Depois, mandou que um se sentasse diante do outro e só se levantasse depois que encontrassem a solução para um problema que, na melhor das hipóteses, não precisava ter existido. Ou que, na pior delas, não precisava ter chegado ao impasse que chegou.
CONTINUIDADE DEMOCRÁTICA
O mais preocupante nessa
história é que nada indica que essa espécie de acareação entre as duas partes
evolua para uma paz duradoura entre o Executivo e o Legislativo. Nem que o
hábito recorrente do Judiciário de sempre chamar para si assuntos que são de
competência dos outros poderes passe a ser considerada uma atitude normal. Nem
que, daqui por diante, os poderes voltem a cumprir o seu papel naquele clima de
harmonia que chegou a existir no início do atual mandato do presidente Lula.
Isso mesmo. Para quem não se
recorda, o atual governo começou seu mandato vivendo uma espécie de lua de mel
com o Congresso. Antes mesmo da posse, Lula recebeu dos parlamentares eleitos
na legislatura anterior um presente e tanto — a chamada PEC da Transição. A
mudança na lei permitiu que ele elevasse os gastos públicos, sem qualquer
previsão orçamentária, até o limite de R$ 145 bilhões. Depois disso, a vida
seguiu sem maiores surpresas. Houve vitórias e derrotas pontuais, mas, de um
modo geral, o vento parecia soprar a favor de um governo que, bem ou mal, vinha
apresentando resultados favoráveis na economia.
Quem olha para as condições
macroeconômicas não entende por que o clima anda tão pesado. O PIB tem
crescido. O desemprego caiu. A inflação, se não baixou ao ponto de tranquilizar
a sociedade, também não saiu do controle ao ponto de gerar desabastecimento e
deixar vazias as gôndolas dos supermercados. As reservas cambiais continuam
parrudas, na casa dos US$ 340 bilhões. A impressão que se tinha meses atrás era
a de que os problemas que geravam a queda de popularidade de Lula se resumiam à
inabilidade extrema do governo em se comunicar com a sociedade — e o próprio
Planalto endossou esse ponto de vista ao substituir, no dia 14 de janeiro deste
ano, o deputado Paulo Pimenta pelo publicitário Sidônio Palmeira no comando da
Secretaria de Comunicação.
O problema se revelou muito
maior do que esse. A questão, pelo que tudo indica, é cada vez mais de operação
política.
A despeito de toda habilidade
demonstrada nas passagens anteriores pela presidência da República, Lula talvez
não tenha considerado que, numa equipe heterogênea como o que ele formou para
se garantir no poder, os conflitos muitas vezes surgem dentro e não fora do
governo. Ou, mais grave do que isso, no esgotamento do modelo criado pela
Constituição de 1988 que, mais cedo ou mais tarde, terá que ser revista, com
uma definição mais precisa do papel que cabe a cada poder no Estado brasileiro.
Pelo bem da própria continuidade democrática.
Título e Texto: Nuno Vasconcellos, O Dia, 6-7-2025; Arte: Kiko
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