Alberto Gonçalves
Dantes um dos critérios do sucesso público
era a eficácia com que se escondia a cama. Hoje é muito útil trazê-la para a
rua e mudar os lençóis na cara dos transeuntes. A alteração é boa? Má? É o que
é
1. Pela primeira
vez, um político português “assumiu” a homossexualidade. Por azar, o político
em causa é uma obscuríssima secretária de Estado, que permaneceria na
obscuridade não fosse a entrevista encomendada ao “Diário de Notícias”. Na
prática, a “revelação” não escandalizou vivalma, já que, descontados
pervertidos terminais, os hábitos sexuais de anónimos deixaram de excitar as
massas. Curiosamente, excitam os maluquinhos das “causas”, que vêm nestas
trivialidades um ato de coragem sem precedentes.
Coragem? É um pouco excessivo.
Coragem seria “assumir” que se é uma coisa abominada pela maioria das pessoas
ou, sobretudo, pela maioria das pessoas que mandam aqui. Coragem seria, no
Portugal de 2017, defender – defender de facto e não em língua de pau – a
democracia, a liberdade, o Ocidente, os refrigerantes ou insignificâncias
similares. Coragem seria tomar uma posição que colocasse a senhora secretária
de Estado em risco de perder amigos, família, emprego ou pelo menos o sossego.
Assim, o que no máximo perderá é a possibilidade de assistir à Festa do
“Avante!”, nada permissível a esquisitices. No mínimo, ganhou a notoriedade de
que não dispunha e a admiração de pasmados.
Do que conheço, sou incapaz de
garantir que a senhora secretária de Estado tem coragem. Porém, a julgar pelo
currículo profissional e não pelas preferências lúbricas, sei o que a sra.
secretária de Estado não tem: vergonha. Muito mais revelador do que a
“revelação” é o preâmbulo à entrevista ao DN, onde se nota que passou pelo
centro de “estudos” do prof. Boaventura, pela Administração Interna do dr.
Costa, pela autarquia do dr. Costa, pelo grupo parlamentar do dr. Costa e,
enfim, pelo governo do dr. Costa. Se uma cidadã assume sem hesitação tamanha
série de monstruosidades, “assumir” a homossexualidade, inclinação que não lhe
trará sombra de problema, é canja.
O único ponto relevante na
entrevista – na qual, de resto, entrevistadora e entrevistada trocam clichés
com galhardia – é, como diriam os burgessos que discorrem nos programas de
“cultura”, o sintoma de que o paradigma se alterou. Dantes, um dos critérios do
sucesso público era a eficácia com que se escondia a cama. Hoje, é bastante
útil trazê-la para a rua e mudar os lençóis na cara dos transeuntes. A
alteração é boa? É má? É o que é: as regras de uma atividade desde sempre
subordinada à demagogia. A nova heroína dos direitos “gay”, que vive
assustadíssima com o sr. Trump e a extrema-direita, não gasta uma linha da entrevista
a falar do islão.
Tudo espremido, sobra um golpe
publicitário e, com jeito, uma ajudinha na espécie de carreira a que a senhora
secretária de Estado se dedica. Ela própria confessa, mesmo que com outros
propósitos: “Esta minha afirmação é completamente política”. Ninguém duvida.
2. Rita Ferro
Rodrigues, filha do estadista com o mesmo nome (menos o “Rita”), indignou-se
com uns livros de passatempos da Porto Editora. A senhora dona Rita, que deve
ter imenso tempo livre e não se indigna com as figuras do pai ou com o
tratamento que culturas exóticas dispensam à fêmea da espécie ou, sei lá, com
um país a arder por incúria criminosa. Por sorte, lá reservou um pedacinho da
agenda para achar indecente que os ditos livrinhos sejam orientados “para o
menino” e “para a menina”.
De facto, é grave. Quase tão
grave quanto, por exemplo, criar um site de opiniões e desabafos cometido
exclusivamente por mulheres, onde se publicam textos acriançados sobre assuntos
sérios e textos pedantes a propósito de patetices. Nas suas páginas virtuais, o
primarismo do pensamento e o péssimo domínio da língua debatem-se para apurar
quem leva a pior. Ambos saem vencedores por larga margem. O site “Maria Capaz”
parece imaginado por um pervertido elemento do “heteropatriarcado”, a fim de
tentar demonstrar que o cérebro feminino médio é vazio como os que se
apresentam ali. O curioso é que foi imaginado pela senhora dona Rita.
Entretanto, por contágio ou
coincidência, o processo infantil pelo qual alguns querem reduzir o mundo às
pastagens que lhes ocupam o crânio ganhou força. O zelo censório entrou em roda
livre, os inquisidores das “redes sociais” exigiram fogueiras, a Comissão para
a Cidadania e Igualdade de Género – coisa que rivaliza em utilidade com um
Trabant avariado – “recomendou” a censura dos livrinhos e a Porto Editora
obedeceu. No que toca ao fim da desigualdade de género, e enquanto não retiram
do mercado 99,7% da literatura universal, a actualização gradual do Index
Librorum Prohibitorum é um passo importante. Porém, insuficiente: se
queremos legar um mundo sem discriminação aos nossos filhos, ainda falta a
castração compulsiva destes. Mas já faltou muito mais.
3. “Não temos
medo”, gritaram milhares em Barcelona. O que significa isto? Que da próxima vez
que um psicopata tentar atropelá-los eles correrão ao encontro da carrinha? Que
não acham o terrorismo um perigo real? Que repetem o primeiro disparate que
ouvirem? Que são imprudentes? Que são valentes? Que são estúpidos? Nada disso:
apenas que são mentirosos. É claro que os catalães e os europeus têm medo,
muito medo, tanto medo que recusam chamar pelo nome a ameaça que paira sobre
eles – e que, com frequência, com crescente frequência, sobre eles literalmente
avança. No fundo, esperam que a negação lhes compre a sobrevivência. Como se
tem visto, é um bom plano.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador,
26-8-2017
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