quinta-feira, 24 de agosto de 2017

Sobre a liberdade de ser menina (ou menino)

Helena Garrido

O problema não está na ditadura do politicamente correto. Está na incapacidade de ter políticas que promovam a igualdade. Falar, criticar, perseguir ou censurar é fácil, mas apenas agrava os problemas

“Porque pensa que devemos contratar uma mulher?” “Desculpe, mas não lhe podemos alugar nenhum quarto [a si com essa cor, ficava subentendido] ”. Isto acontecia (acontece?) quando a democracia portuguesa tinha poucos anos de vida. Ninguém deseja viver num país assim. Mas também ninguém consegue viver em liberdade quando temos de ter um cuidado constante com as ideias e as palavras, com medo de sermos acusados de sexistas ou racistas.

A crise financeira desembocou numa crise económica de onde nasceu a crise social que desestabilizou politicamente os países e parece estar a virar-nos do avesso, numa intolerância mortal para a liberdade, a criatividade e a ciência. É a na igualdade de oportunidades e é na liberdade de escolha que está uma sociedade desenvolvida e rica pela sua diversidade.

Vem tudo isto a propósito dos episódios que têm marcado este Verão demasiado quente. O último foi a “recomendação” do Governo para que fossem retirados do mercadolivros pré-escolares para meninos e para meninas. A editora aceitou a “recomendação” do Governo e retirou os livros. Independentemente da opinião que tenhamos, sobre a iniciativa da editora, a questão que se coloca é: porque é que um Governo se mete num assunto destes? Os livros, que se saiba, não são (ou eram?) manuais escolares indicados pelo Estado.

Aquela pergunta suscita uma outra: até onde vai a liberdade de cada um, incluindo das crianças? A igualdade de género tem por objetivo impedir que se obrigue “as meninas a brincarem com bonecas e os meninos a brincarem com carrinhos”. A igualdade de género não é nem pode ser obrigar as meninas a brincarem com carrinhos e os meninos com bonecas. Têm é de ser livres para brincarem com o que muito bem lhes apetecer. Têm é de crescer num ambiente que lhes permita serem aquilo que mais querem ser, sejam donas ou donos de casa, sejam cientistas. O que parece estarmos a fazer é a substituir uma discriminação por outra discriminação – a menina tinha de ajudar a mãe e agora está proibida de o fazer ou o menino gosta é de brincar com carrinhos mas tem de brincar também com bonecas.

O que é preocupante na iniciativa da Porto Editora é perceber que ainda existe mercado para livros só para meninas e só para meninos. Essa é a pergunta que temos de fazer: porque é que ainda é rentável? Porque é que as meninas (ou só as meninas) ainda querem resolver um labirinto que tem como objetivo chegar a uma coroa de princesa? Porque é que há pais e educadores que ainda consideram livros assim úteis e educativos?

A desigualdade de género – como as outras – é infelizmente uma realidade e parte da educação que se tem em casa. Para corrigir isso pouco ou nada se fez. Muito menos se resolve censurando livros. A iniciativa do Governo apenas impede que se conheça a realidade. E sem conhecer a sociedade nada se corrige.

A desigualdade de género é de uma cristalina clareza no mundo do trabalho, há anos. Uma realidade que a crise económica agravou. Quando a crise aperta são as mulheres que perdem primeiro o emprego. Um problema que não vai ser resolvido com as quotas. Há muitas mulheres que não querem ter lugares de chefia porque não conseguem conciliar todos os objetivos que têm para a sua vida. E o Estado em nada as ajudou a conciliar esses objetivos, nem através da educação nem por via de uma sociedade mais organizada e amiga da vida familiar.

Não é o politicamente correto que incomoda, até porque temos todas as razões para acreditar que os portugueses são hoje menos racistas, menos machistas e mais abertos às escolhas sexuais de cada um, do que eram no passado – independentemente de se poder considerar que a secretária de Estado da Modernização Administrativa Graça Fonseca conseguiu notoriedade por ter revelado ser homossexual, seria impensável que o fizesse em finais do século XX. E é de elogiar a sua coragem e, especialmente, o contributo que deu para o exercício da liberdade de escolha de muitas outras mulheres e homens.

O que incomoda é ficarmo-nos pelo politicamente correto associado à perseguição de quem pensa de forma diferente. Temos de fazer, e não ser apenas politicamente corretos perseguindo ou censurando quem é diferente de nós, fazendo aos outros o que os outros nos faziam. E fazer é conseguir que não exista mercado para livros dedicados só a meninas ou só a meninos. Nunca censurar. A censura mascarada de “recomendação” é a arma dos fracos e incapazes de construírem políticas que mudam a sociedade.
Título e Texto: Helena Garrido, Observador, 24-8-2017

2 comentários:

  1. Nos meus idos, nós não tínhamos carrinhos para brincar.
    Tínhamos bolinhas de gude, piões, pipas, chimpas, bolas, petecas, bilboquês, fazíamos armas de madeira, carrinhos de rolimã, tínhamos patentes, tomávamos banho de bacia, limpávamos a bunda com jornais e NÃO TINHA ESSA MERDA DE TEORIA DE GÊNEROS.
    Jogávamos futebol com meninas completando a equipe.
    Havia aulas de canto, solfejo e até de trico e crochê.
    Não havia maconheiros e a teoria do bulling.
    Os meninos preferem livros de aventura e ação, as meninas romances.
    Então há sim livros para meninas e meninos, embora possam ler o que quiserem.

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    1. Pois, mas está muito difícil! O cerco é sufocante. Valha-me a idade que me permite cagar e andar para relativistas e politicamente corretos, eufemismos para marxistas-leninistas, declarados ou no armário. Sim, a idade, que me proporciona a liberdade! Quer dizer, enquanto PSol, Bloco de Esquerda, Podemos... não tomarem o poder de ‘direito’ e condicionarem o recebimento do benefício mensal de aposentadoria às declarações dos beneficiários, consideradas por essa gente, como racistas, nazistas, islamofóbicas e etc...!

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