sábado, 15 de abril de 2017

Além da cabotagem: a desnacionalização da aviação civil brasileira

Marcelo Duarte Lins


Fotos daqui

A abertura total do capital estrangeiro, que saiu de 20% para 100% nas empresas aéreas brasileiras, vai muito além da cabotagem pura.
É sempre bom lembrar que os EUA permitem 25%, e a União Europeia 49%, no máximo de capital estrangeiro nas suas empresas aéreas. Por que será?

São pouquíssimos os países no planeta que desnacionalizaram as suas empresas aéreas. Entre eles temos o Chile, Colômbia, Singapura e Austrália.

Nenhum deles tem dimensões territoriais e características socioeconômicas semelhantes às do Brasil.

Sem falar do problema de soberania nacional com as questões de nossas cidades isoladas, fronteiras, invasões de terra e narcotráfico.

O que o governo Temer fez foi entregar o quarto maior mercado doméstico de aviação do mundo de mão beijada. Em outras palavras, promoveu muito mais do que a nona Liberdade do Ar que trata do direito de cabotagem pura.

Neste sentido vale revisitar o artigo "Apagão aéreo e a entrega do estratégico setor aéreo ao domínio estrangeiro", que escrevi em 2006 juntamente com a jornalista Sônia D'Azevedo publicado em alguns meios de comunicação.

Passado mais de uma década, hoje eu só trocaria a sigla CPI pela expressão "Operação Lava Jato".

"Além da desorganização, em todos os níveis, o que assistimos hoje, na aviação civil brasileira, é o desrespeito, em grau máximo, aos cidadãos-contribuintes – que pagam caro pelos serviços que não recebem – e aos trabalhadores do nosso setor aéreo – cujos postos de trabalho têm sido paulatinamente ceifados ou aviltados, num processo de desmonte jamais visto anteriormente no país. Ironicamente, tal ocorre quando temos um governo dos Trabalhadores, cuja atenção deveria estar focada na geração de empregos formais, no bem-estar social dos cidadãos e no cumprimento dos Direitos Trabalhistas.

Do desaparecimento da Varig, empresa 100% nacional, geradora de milhares de empregos e fonte de captação de divisas no exterior, à bagunça em que se transformou o controle do tráfego aéreo brasileiro, todas as etapas desse processo de degradação nos levam a uma análise do que vem ocorrendo em todos os setores industriais, a partir dos anos 70/80, quando a “Nova Ordem Mundial” instituiu o neoliberalismo econômico como filosofia e a desregulamentação do mundo do Trabalho como ação estratégica.

Em sua essência, o neoliberalismo prega a “precarização” do universo do Trabalho. Nesta corrente de pensamento, trabalhadores são intitulados “colaboradores” ou “parceiros”; salário é chamado de “remuneração”; horas extras vão parar num “banco de horas”, sendo trocadas por brindes de final de ano; direitos e indenizações trabalhistas desaparecem por meio de contratos de “terceirização” ou, quando cobrados, esbarram em leis de última hora que não apontam quem os pagará. É o homem explorando o homem e agindo, deliberadamente, para extinguir os últimos vestígios de Humanidade e Justiça nos ambientes de produção laboral.

Desregulamentar os setores produtivos é o passo principal deste processo. Desregulamentação no final dos anos 70, os Estados Unidos iniciaram a desregulamentação de seu setor aéreo, estimulando o que chamavam de “política de céus abertos”. Permitiram, assim, a proliferação de companhias low cost (baixas tarifas), a contratação temporária da mão-de-obra de baixa qualificação, por salários vis, e instituíram a concorrência predatória numa indústria cujo objetivo prioritário deve ser a segurança dos usuários. Em menos de dez anos, surgiram e desapareceram dezenas de companhias. E, com elas, dezenas de milhares de empregos. Nada, porém, que intimidasse a “maior economia do planeta”, visto que a mão-de-obra, já em si não regulamentada, rapidamente era absorvida por outros setores.

O Brasil, “aberto” desde sempre às novidades globais, encantou-se com a política neoliberal e elegeu a navegação para experimentar o veneno. Ainda nos anos 80, enquanto ostentava o título de “8ª economia mundial”, nosso país entregava sua marinha mercante a preço vil, começando pelo desmonte deliberado do Lloyd Brasileiro. Empresa estatal centenária, da noite para o dia o Lloyd foi transmutado, por ordem de nossos governantes, num mamute a ser extinto a qualquer custo, para que empresas privadas obtivessem mais lucro. Engano. O fim do Lloyd significou, também, a abertura de nosso setor mercante às companhias de navegação estrangeiras, que já praticavam, há muito, a política de “bandeira de conveniência” – espécie de prima-irmã daquela imposta pelos norte-americanos à aviação comercial.

De setor altamente regulamentado, produtivo, gerador de empregos confiáveis e salários dignos, a navegação mercante brasileira tornou-se um arremedo de setor produtivo que, em vez de arrecadar, passou a provocar a evasão de divisas do país. Sem contar o prejuízo causado aos demais setores que gravitavam em sua esfera – infraestrutura dos portos, construção naval, maquinaria especializada, estiva, entre outros. Nos anos 90, a aviação.

Se algo devemos ao governo Collor de Mello, além da abertura de nossos portões à entrada das grifes de luxo, sem dúvida, o começo do desmonte da aviação civil brasileira é fator inquestionável. Sob a toada de que a (verdadeira) Varig, nossa companhia “de bandeira”, monopolizava o mercado, o governo Collor implantou a concorrência predatória no setor, permitindo que a Vasp voasse as mesmas rotas – e para os Estados Unidos!!! Ora, na aviação existe um protocolo internacional intitulado “acordo de reciprocidade”. Se uma companhia de determinado país voar para outro, este último tem o direito de manter o mesmo número de voos de volta, para o país do parceiro.  

Ao “liberar” também para a Vasp, o Brasil permitiu a vinda de gigantes norte-americanas da aviação. E iniciou, em “grande estilo”, nosso desmonte. Decerto, já naquela época, abalar a estrutura da Varig era uma clara intenção, embora qualquer motivo para tal extrapolasse os limites do bom-senso. Afinal, todos os países cônscios de sua responsabilidade social e da importância do setor aéreo para a soberania econômica mantêm uma única companhia “de bandeira” voando rotas internacionais. O setor aéreo era, de fato, o último ainda plenamente regulamentado neste país. E, ao longo dos anos 90, foi paulatinamente desarranjado.

Sob o governo FHC o neoliberalismo, então florescente, enfim frutificou. De Brasília, sucessivas canetadas desmontavam parâmetros, permitiam transgressões, cassavam fontes de arrecadação e meios indispensáveis à sobrevivência do setor – como a possibilidade de obter por preço mais em conta o combustível, o querosene utilizado pelos aviões (QAV-1), produto nobre e caro, porém subsidiado por dez entre dez governos preocupados em “pensar estrategicamente” o fortalecimento, e não o enfraquecimento, de suas economias nacionais.

A (verdadeira) Varig desapareceu no primeiro semestre de 2006, afundada em dívidas, asfixiada pela indiferença de nossos governantes para com uma verdade inquestionável: de que um país só vale, no mercado econômico mundial, aquilo que arrecada, em divisas e royalties.

Se os Estados Unidos, após a “invasão chinesa” e a débâcle do dólar frente ao euro, ainda são considerados uma economia forte, é porque detêm o maior número de patentes registradas no planeta. Com elas, arrecadam royalties. Com sua movimentação, divisas.

A nós, resta meditar sobre uma impressão antiga – mas recorrente e, portanto, atual -, firmada por Eduardo Galeano em suas “Veias abertas da América Latina”: nascemos para sermos colonizados e explorados. O fim da (verdadeira) Varig parecia sinalizar, para as concorrentes nacionais, o fim de um “monopólio” nos céus e a possibilidade de novos mercados, lucros maiores. Ilusão: não tinham nem estrutura, nem conhecimento, nem sabedoria para herdar (ou abocanhar?) os bens e produtos da “pioneira”.

Até o momento, só as concorrentes estrangeiras estão lucrando (e muito, de forma até exorbitante). Enquanto isso, o país perdeu milhares de postos de trabalho estáveis, salários dignos, impostos pagos e divisas certas. Em nome do quê? Satisfazendo aos interesses de quem? Façam suas apostas, senhores!! CPIs do Apagão Aéreo.

Eis que, logo após o “desaparecimento” da (verdadeira) Varig, um acidente aéreo em território nacional, envolvendo outra empresa brasileira, a Gol, “detona” uma crise sem precedentes no segmento do controle do tráfego aéreo nacional. Até que ponto, porém, a tragédia de setembro de 2006 não foi apenas um reflexo de todo o desmonte que já vinha ocorrendo em nosso setor aéreo?

A investigação deve ser profunda, sob pena de jogarmos para baixo do tapete do esquecimento as falcatruas e “vistas grossas” levadas a termo nos últimos anos – o câncer, enfim, que vem corroendo as entranhas da nossa aviação civil. Que a CPI do Apagão não se apequene, não se transforme apenas numa Comissão de Investigação de Acidentes Aéreos. Que se investigue com profundidade o “fatiamento” e venda da (verdadeira) Varig, num leilão envolto em tanta suspeição que motivou investigação parlamentar na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro!!!

Que a CPI do Apagão discuta e reveja o conceito de “empresa nacional” e o aumento de capital estrangeiro que vem sendo proposto, no Senado, para as empresas de aviação.

O setor aéreo é vital para a integração e o desenvolvimento de um país, principalmente quando possui a dimensão territorial de um Brasil. Por definição, o transporte aéreo regular é um serviço de concessão pública. Portanto, o Estado brasileiro tem o dever de proteger a aviação comercial contra a concorrência ruinosa e impatriótica, promovendo seu indispensável e imediato reordenamento, além de anular as vendas ilegais da Varig, da VarigLog e da VEM a grupos estrangeiros, assumindo os serviços concedidos (CF, art 21- XII, “c”).

Para realizar um trabalho efetivo, condizente com seu dever de zelar pelo bem-estar e segurança do povo e respeitar os direitos do cidadão-contribuinte, o Congresso Nacional precisa, apenas, ter em mente que a corrente neoliberal, por meio do capital estrangeiro, há muito prega a desregulamentação dos setores produtivos das economias emergentes. Infelizmente, o Brasil vem fazendo este jogo.

O que assistimos, hoje, é um processo que traz somente prejuízos ao país e ao povo brasileiro. Se o Congresso Nacional – única instituição investida do poder suficiente – não estancar agora esse curso, só restará às futuras gerações de brasileiros uma colocação precária, de meio expediente, em redes de fast food ou drugstores, cujas marcas são fortes patentes que geram bilhões de dólares em royalties... mas não para nós.


Política que o Brasil precisa implementar no Setor Aéreo:

- Conservar o mercado brasileiro de aviação;
- Revitalizar a Indústria Nacional;
- Manter e criar empregos - Desonerar o Setor Aéreo;
- Estimular uma indústria sadia e um Transporte Aéreo Seguro;
- Céus brasileiros para Trabalhadores brasileiros.
Título e Texto: Marcelo Duarte Lins, 14-4-2017

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17 comentários:

  1. Realmente não sei mais se devemos ter algo fingindo que é "nacional', já que a Azul está no nome de um cara que só tem de brasileiro a dupla nacionalidade....

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  2. A única Nacional realmente é a GOL, mas baseando se nos últimos eventos, inclusive o "empréstimos" de jatinhos particulares em nome da empresa para políticos brasileiros..........

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  3. Nenhuma empresa que voa aqui é brasileira. A TAM fez uma engenharia financeira complicadíssima para deixar o controle todo nas mãos dos chilenos, a Delta é a dona de fato da Gol, a Azul é de um grupo de investidores multinacionais (o Neeleman tem menos de 8% do capital, ele é só a cara do negócio, tem até a Etihad entre os acionistas - via fundos de investimentos).

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  4. O universo tem somente dualidades.
    No Brasil a dualidade tem um peso e duas medidas.
    Fernando Collor ao acabar com a reciprocidade, abrindo os céus brasileiros para as grandes empresas, acabou com as empresas aéreas brasileiras.
    Hoje todas dependem dos pools aéreos.
    Vejam que a defasagem tarifária foi paga para a Vasp e Transbrasil, e elas logo após receberem fecharam.
    A Varig espera por mais de 24 anos.
    Voltando a dualidade será muito melhor as empresas nas mãos dos estrangeiros.
    Com nossas leis trabalhistas e sem subsídios as empresas aéreas nacionais é impossível.
    As companhias aéreas brasileiras não possuem terminais só para elas, se sujeitam ao tal de Infraero.
    Não concordo com céus brasileiros somente para brasileiros. assim fosse em outros países nosso pilotos e comissários estariam desempregados.
    Não podemos acabar com o mérito para depois exigir-se cotas.
    Transporte aéreo seguro, difícil, a fiscalização é inócua, e quando controladores de voo erram, varrem para debaixo do tapete.
    Com a nossa política temerária duvido muito que alguma grande empresa venha a comprar alguma nacional.
    Seria mais fácil abrir uma no Brasil com sede em Bumpa-puta.
    fui...


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    1. Excelente texto, mais ainda, a linha de raciocínio patriótico faz pensar aonde vamos parar, ou melhor, já chegamos lá no fim do Brasil.

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  5. O tópico sobre a reviravolta na aviação comercial brasileira teve início no começo dos anos noventa, durante o curto período do governo Collor; entre 1990 e 1992 muita coisa aconteceu e tudo isso serviu para começar o desmantelamento gradativo da maior empresa aérea nacional, marco referencial no transporte aéreo da américa do sul.
    Tudo, ou quase, foi escrito na crônica do articulista. Foi durante a era Collor que a desregulamentação da aviação comercial começou a produzir nefastas consequências. O governo americano viu-se no direito de pleitear a reciprocidade. Só que o mercado deles representava uns 5 por cento da malha aérea, enquanto que para nós, brasileiros, era uma grande fatia representativa, da ordem de 30 % ou mais no país deles
    No entender de Collor a partir de então, qualquer um poderia “montar” uma empresa aérea no país e iniciar as operações. Carros produzidos no Brasil foram chamados de “carroças”.
    Muito antes de a ANAC ser criada, um livro estava ainda nos manuscritos preliminares para ser editado. O título seria “A desregulamentação na aviação brasileira”. A empresa aérea protagonista receberia um nome fictício; pessoas, diretores e membros do governo, idem; mas nós sabíamos tratar-se da Pioneira. Fatos marcantes estavam bem delineados, e envolvia políticos da época e pessoas ligadas à Empresa Aérea.
    O escritor, ex-colega, veio a falecer; com ele todo o trabalho se esvaiu, perdido em algum lugar no passado. Durante quase 90 anos o Brasil teve uma representatividade no exterior muito grande, através da “mega-embaixada” aérea nos portos pela VARIG servidos. Houve negociações entre diretores e governantes, trapalhadas e muitas ações mal sucedidas, irregularidades e descaminhos internos – assim eram os grandes rumores que corriam pelos quatro cantos e corredores, sendo que nada ficou efetivamente provado, tampouco não se tem conhecimento de alguma ação pública por parte de algum cidadão, responsabilizando quem quer que fosse por toda essa série de acontecimentos. Os tempos foram mudando, a globalização tomou forma e rumos em todo o planeta, e fomos nos habituando aos poucos a estarmos inseridos nesse cotidiano, digamos, turbulento e às “avessas” ...
    Hoje temos empresas aéreas razoáveis, que nem genuinamente brasileiras são. Perdemos o
    Ponto de referência nos ares; o transporte aéreo “low cost” é uma busca incessante no meio empresarial do ramo junto aos governos. Nos tempos de crise, glamour, catering sofisticado, conforto a bordo e etc., ficou em segundo plano. O negócio é baratear o processo para que o mais humilde indivíduo tenha o direito de viajar de avião...
    Mas, e a segurança, quantos se preocupam primordialmente e enfatizam esse quesito em primeiro lugar?
    Grande abraço a todos.

    Sidnei Oliveira

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  6. Esta postagem já é a décima mais acessada.
    Até o momento, 7 789 visualizações.

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  7. Faltam 703 acessos para subir para a NONA posição!

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    Parabéns!

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  10. Em sétimo lugar das 10 mais lidas! Com 9 294 visualizações.
    Parabéns!

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  11. Proteger o privado com recursos do povo que não tinha dinheiro para voar é uma overdose de estupidez. As companhias quebraram porque o governo é pesado demais para carregar e com o fim do regime militar a fonte de subsídios foi secando. INCOMPETÊNCIA!

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  12. IMBECIL, IDIOTA PELEGO SINDICALISTA ANÔNIMO.
    PROTEGER O PÚBLICO CHEIO DE CABIDES DE EMPREGOS PODE?
    SUBSÍDIOS PARA COMPANHIAS AÉREAS NUNCA HOUVE.
    INCOMPETÊNCIAS GERAIS E IRRESTRITAS DE TODOS.
    A ÚNICA PARTE DESTE COMENTÁRIO DESPREZÍVEL QUE É UM AXIOMA É :
    O GOVERNO É PESADO DEMAIS PARA PODER-SE CARREGAR.
    VENHA AO DEBATE COMO GENTE NÃO COMO INSETO.
    FUI...

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    Parabéns, Marcelo.

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