Maria João Marques
Macron mostrou que o anti-establishment não
tem de estar sequestrado por extremismos nem por subprodutos corrosivos como
Corbyn, Farage, Trump, Le Pen, o rabo de cavalo do Podemos ou Catarina Martins.
Jane Austen bem diz, pela voz
de Lizzy Bennett, algures no Orgulho e Preconceito, que ‘uma boa
memória é imperdoável’. De facto: a natureza humana é tão propensa ao disparate
que qualquer relação só sobrevive se lhe for aplicada uma boa dose de
esquecimento seletivo sobre as aleivosias alheias e próprias.
Como sempre, a boa literatura
capta e descreve os fenómenos humanos antes de a ciência os dissecar. Para
garantir que não existia memória da feroz aversão por Mr. Darcy, mais tarde
substituída por paixão, Lizzy assegura que ‘this is the last time that i shall
ever remember it myself’. Boa estratégia, que a ciência veio aplaudir: apesar
da psicologia e da neurobiologia da memória estarem longe de conhecer tudo da
formação e armazenamento das memórias, sabe-se que quanto menos as memórias
forem acedidas, mais facilmente são esquecidas.
É estratégia também usada pela
esquerda nacional: fingir que nunca colocou Chávez e Hollande (no meio de
outros fogos-fátuos ainda mais ridículos, como Yannis Varoufakis) no altar das
grandes esperanças e estandartes do socialismo mundial. Não se fala, ninguém se
lembra, deixa de existir.
Mas recordemos. Hollande
venceu em 2012. Logo socialistas nacionais se deixarem conquistar e
entregaram-se a loas próprias de adolescentes apaixonados. Lembro-me de ter
lido como finalmente Portugal (sim, Portugal) teria alguém que defendesse os
seus interesses junto da União Europeia. Por oposição, claro, aos diabólicos
PSD e CDS, que se dedicavam em todas as horas de expediente a implorar aos
senhores de Bruxelas que impusessem impostos ainda mais draconianos e sugassem
de todas as formas possíveis o sangue e a linfa dos portugueses.
O líder do PS de então,
António José Seguro, embevecido descreveu-o: ‘uma lufada de ar fresco e um novo ciclo de
esperança para a Europa’. Mário Soares mostrou enlevo mais intenso. Asseverava que
(preparem-se para tanto esplendor) ‘François Hollande sonha com um outro New
Deal, à semelhança de Franklin Roosevelt, e no encontro que teve com Barack
Obama tornaram-se mais do que aliados, amigos.’ Hollande era uma personalidade
tão potente que, vejam bem, foi capaz de amolecer um bocadinho o coração negro
e demoníaco de Passos Coelho, tudo num breve encontro em Chicago. Defendeu-o dos ataques da malvada direita, que queria
enlamear tão glorioso presidente fazendo uso da sua vida privada, algo que
gente de bem não faz, avisou. (Diz o mesmo Soares dos inícios da democracia que
atacou politicamente Sá Carneiro pela sua relação com Snu Abecassis.) E pelo PS
foi tudo assim.
Ora Hollande viveu para deixar
o PS com um resultado de 6% nas eleições presidenciais. É certo que Macron era
o candidato preferido de Hollande. E que os socialistas franceses escolheram o
esquerdista chalado Benoit Hamon para a candidatura presidencial. Em todo o
caso, é impossível não nos regalarmos com a argúcia dos socialistas nacionais
na hora de escolherem as suas mascotes e porta-esperança do socialismo.
Recordemos ainda o affair venezuelano.
Neste caso, em boa verdade, a tentativa de assobiar para o lado vem só de PS e
BE. O PCP, mais genuíno, continua a defender o regime chavista da Venezuela.
Mesmo depois das manifestações massivas, das mortes dos manifestantes, das
cargas policiais sobre quem protesta, dos inúmeros atropelos à liberdade e à
democracia, da supressão de opositores, da fome e da pobreza a alastrar apesar
das reservas petrolíferas, das filas para os supermercados onde escasseiam os
bens básicos, da nacionalização das padarias. João Ferreira – o candidato à
Câmara de Lisboa pelo PCP – fez a 6 de abril uma intervenção no Parlamento
Europeu defendendo os ‘factos reais’ da maravilhosa situação na Venezuela. Que,
de resto, só vive sobressaltos graças à ‘ingerência’ dos vilões imperialistas.
(E verbalizam tudo isto sem a ajuda de estupefacientes.)
Mas se PS e BE fingem que
nunca se cruzaram com o regime chavista, avive-se a memória. O reincidente
Soares, criticando Maduro, elogiou Chávez. Depois, note-se, de Chávez abrir caminho
para o estrondoso Maduro, que Soares criticava, e patrocinar referendos
manhosos para manutenção do crescente poder presidencial, ou encerrar compulsivamente, em várias levas, rádios e
televisões privadas pouco obedientes. Bom, calar órgãos de comunicação social
hostis é o sonho de qualquer socialista português. Talvez também por isto
Sócrates decretou Chávez um ‘amigo de Portugal’. Em 2016 – repito, em 2016, quando o
regime chavista já tinha descambado na catástrofe ditatorial e produtora de
miséria – a câmara socialista da Amadora teve a falta de vergonha de inaugurar
uma Praça Hugo Chávez. Diz-me quem celebras, dir-te-ei quem és.
E o Bloco? É amigo de coração do regime chavista desde
sempre. Lembro-me de ver Louçã (aqui em mais um elogio) na televisão declarando que a
vitória de Chávez, em referendo, significava a vitória do socialismo e da população
mais pobre. A queda dos preços do petróleo é que minou o sucesso venezuelano –
há sempre uma desculpa, não é? Também defendem, quase sem tirar nem pôr, as
políticas económicas que cozinharam a calamidade venezuelana.
Espero que tenham apreciado esta
viagem pela memória das miseráveis amizades chavistas dos partidos da
geringonça. Como se vê, PCP, PS e BE estão sempre certos a avaliar líderes e
ideologias dos regimes. É o mesmo acerto e discernimento que devemos esperar
noutras bandas da sua atuação.
Mas não queria finalizar com
escárnio. Permitam-me terminar com uma nota otimista sobre a eleição de Macron.
Como já referi, a linha socialista chalada de Hamon – a mesma de Costa, Pedro
Nuno Santos, Galamba, Porfírio Silva e três quartos do atual PS – estampou-se
gloriosamente. E, com ela, a narrativa de que o eleitorado só castiga por estes
dias o socialismo moderado. Mais importante: Macron mostrou que o
anti-establishment (grande vencedor da noite) não tem de estar sequestrado por
extremismos nem por subprodutos corrosivos como Corbyn, Farage, Trump, Le Pen,
o rabo de cavalo do senhor do Podemos, Catarina Martins. É uma boa lição.
Título e Texto: Maria João Marques, Observador,
26-4-2017
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