Aparecido Raimundo de Souza
1
Sábado passado fiz um
programa de índio. Fui a um velório acompanhar um amigo. Um amigo vivo, quero
deixar claro. O de cujus era outro,
um tal de Michel Jackson Temer. Parece que esse verme foi ladrão, ou
presidente. Ou os dois, não lembro bem. Não gosto de velórios nem de coisas
ligadas a cemitérios. Principalmente de
políticos. O que tinha de autoridades, repórteres, cheiradores de cus e
lambe-lambe colhões. Sem mencionar a imprensa. Parecia um bando de baratas
tontas. Ao todo, acho que pelas minhas contas, passava de duas mil pessoas.
Pois bem, voltando à encenação lúgubre e consternada, o cheiro das flores,
entre outras coisas horríveis, me faz espirrar. O clima tenso me deixa
constrangido. Depois, ver toda aquela gente chorando em cima, ao lado, em
volta, de frente ao morto – realmente é algo maçante e deprimente, mais até que
o fato de estar literalmente estendido no esquife.
2
Acho que no dia que
tiver que morrer, partir daqui para algum lugar que desconheço, pretendo se
Deus quiser, estar bem longe dela. Léguas, se me for possível. Tenho absoluta
certeza de que detestarei me ver estirado, duro, estático, feito um defunto de
segunda, principalmente depois que a gente sai da mesa do legista,
completamente oco por dentro, o corpo inerte, o sorriso apagado, tudo murcho,
sem cor, sem vida, enfim, e pior, sem poder escolher as roupas, a gravatinha, o
par de sapatos e o mais importante, o caixão.
3
Geralmente os que
ficam nos destinam uma dessas urnas de madeiras baratas, vagabundas. Ao menor
solavanco cai tudo, despenca como se fosse farinha de rosca. Vou odiar, também,
estar ao lado de uma porção de coroas. Sem falar nas velas acesas, naqueles
castiçais estranhos do tempo do ronca. Vou ficar furioso se pegar alguém
falando de mim pelos cantos, ou cochichando como se eu não ouvisse tudo o que
conversam.
4
Igualmente ficarei
incomodado com gente entrando, gente saindo, gente curiosa, bisbilhotando, só
por curiosidade. É praxe. Tem certo tipo de criaturas que frequentam essas
reuniões fúnebres só para conferirem se o sujeito está mesmo morto ou só
deitado, fazendo hora, fingindo para escapar dos cobradores a quem deixou um
monte de contas sem pagar.
5
Geralmente, nos
velórios, os familiares mais chegados aparecem somente para bater cartão. Faz
parte do protocolo. Sem falar naqueles parentes distantes (que gostavam de ver
o morto, quando vivo, de longe), com suas caras de babacas, dando os pêsames
com aquela indiferença dos hipócritas – fingindo enxugar algumas lágrimas
inexistentes em rostos mascarados pelas mentiras. Bando de filhos da puta.
6
Não, decididamente, no
dia em que a morte bater à minha porta, chegar à minha beira, juro que
escapulo. Salto de banda. Chuto o pau da barraca. Pulo como um gato assustado,
antes que o além me pegue de jeito, desprevenido, de calças curtas. Chato ser
pego de calças curtas, principalmente na minha idade. Uma merda!
7
Mas meu amigo insistiu
tanto, tanto insistiu que me esqueci de todos esses incômodos que me afetam e
lá fui eu, segurar vela, em nome da velha amizade, enquanto ele rendia as
últimas homenagens ao defunto. Um padre com cara de Mané rezou missa de corpo
presente, enquanto crianças corriam e gritavam, lá fora, atrapalhando as suas
falas com uma algazarra descomedida. Brabo, o coroinha, ao lado dele, olhava
feio e muito puto da vida para o pátio que ficava em frente à capela.
8
Uma senhora, toda de
preto, véu de seda encobrindo o rosto, naquele circo todo que fora armado, era
a única pessoa, que realmente sentia, com profunda emoção, aquela perda.
Deduzi, pela tristeza aberta em seus olhos verdes claros, que deveria ser a
mais nova viúva do pedaço. Acertei em cheio, na mosca. Era a viúva mais nova do
pedaço. E que viúva... fiquei sabendo, depois, que o nome dela era Marcela.
9
O resto, em volta - (a
não ser ela, a doce e esfuziante Marcela), enquanto o pároco discorria
acaloradamente sobre os mistérios existentes entre a vida e a morte –, não
estava nem aí para as suas ponderações do santo homem. Todos, indistintamente,
queriam ver o desfecho daquilo, clamavam, interiormente, para que a criatura
encomendasse logo a alma do cidadão e partisse para os finalmente, ou seja,
para ato final tão eloquentemente esperado: o féretro baixando à sepultura.
10
Os que marcavam
presença queriam estar, de igual forma, bem longe, absortos nos caminhos que
levavam de regresso às suas vidinhas diárias, atreladas a um cotidiano sem
esperanças e completamente vazio de amanhã. Comigo também vai ser exatamente
assim, ou melhor, será: quando o esquife tiver baixado ao pó, quando eu não
mais puder voltar a minha vidinha diária, ao meu dia a dia sem esperanças, vou
me levantar da cova, abrir o esquife e gritar para os vizinhos próximos que meu
lugar não é ali. Gritarei alto, para que todos me escutem: e sairei andando, a
passos largos, em direção à minha vida que ficou lá fora. Além das portas do
campo santo. No meu jazigo, já deixei dito a meus filhos (com extensão a quem
eles indicarem para lavarem minha bunda na derradeira hora), quero essa
inscrição gravada em letras garrafais: “Galera, estou viajando. Não sei quando
volto ou se volto”.
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