Maria João Marques
A ordem para censurar os livros infantis
veio do ministro Eduardo Cabrita, alguém que, além de censor, é um machista que
não sabe debater política envolvendo uma mulher sem ir buscar ataques sexuais
Sabem quem deu indicação à
Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG) que ‘recomendou’ (pois)
retirada dos cadernos da Porto Editora? O ministro da tutela, Eduardo Cabrita.
O deputado socialista que em 2013, para fins políticos, chamou ‘frígida’ a
Maria Luís Albuquerque. Cabrita é, além de malcriado e censor, um protozoário
machista que não sabe debater política envolvendo uma mulher sem ir buscar
ataques sexuais. Donde, para António Costa e PS, é o ministro ideal para
tutelar a promoção da igualdade de género.
Mas cheguemos ao caso em
concreto. Simples: as editoras publicam os livros que entendem, respaldadas no
conhecimento de mercado, e os consumidores compram ou não. Umas publicam livros
para meninas e/ou para meninos, outras para ambos, ilustrações ao gosto do freguês.
Quem incentiva as filhas a gostar de princesas e os filhos de piratas,
compra(va) os da Porto Editora. Quem apreciava mais outras temáticas, ou é um indefectível
dos produtos unissexo, compra para outros lados.
E o estado não tem que vigiar
o bem-estar das criancinhas? Tem, claro. Tem que assegurar que os pais
alimentam devidamente a criançada, cumprem a escolaridade obrigatória, dão
cuidados médicos, não os espancam nem os torturam psicologicamente, não os
violam nem deixam violar por outros. E cuidados semelhantes. O estado também
deve certificar manuais escolares que promovam a igualdade de direitos e
oportunidades entre os sexos. Fora desta esfera, e nos livros não obrigatórios,
é desandar.
Mas desmascarada a mentira ‘os
exercícios são mais fáceis para as meninas’, há razões incontornáveis para o
marialva Cabrita e a CIG banirem dois livros? Há, porque para a CIG tudo o que tenha vagamente a ver com o
universo feminino merece esgares de desprezo e é para proibir. De resto,
qualquer pessoa com neurónios mirrados percebe que a forma das famílias
estupidificarem as filhas é comprar-lhes cadernos para estimularem as
capacidades cognitivas.
No parecer técnico da CIG podemos ver que Teresa Fragoso
embirra com as cores. Ora eu uso e abuso das cores. Considero tal extravagância
uma forma de expressar individualidade. E quem pretende determinar as cores que
outras pessoas usam, ou dão a usar à filharada, devia voltar à sua máquina do
tempo e regressar à União Soviética de 1952.
Em minha casa – confesso
penitente – há uma férrea segregação de cores. Para mim os objetos cor de rosa
ou roxos, para a criança mais velha os azuis e a mais nova fica com os verdes.
As razões são prosaicas e reacionárias: sabemos de quem são as lapiseiras e
etc.; e são as cores que preferimos. Claro, eu, se fosse boa mãe, faria guerra
lá em casa obrigando as crianças a usarem coisas rosadas, para não crescerem e
se tornarem num Eduardo Cabrita. Mas, estragada que estou pelos muitos vestidos
de princesa que desenhei na infância, vivo convencida que o meu exemplo (de
que, de resto, ambos se orgulham) será o fator decisivo na forma como olham
para a capacidade das mulheres.
Ao minuto cinco nesta entrevista da SIC dá mais
argumentos arrasadores: ‘Aqui estão as meninas a fazerem ballet, aqui estão os
meninos a fazerem futebol’, só, como verdade auto evidente. Por momentos pensei
que se lamentava, do tratamento dado aos rapazes, que o futebol é às vezes um
meio de estupidificação do sexo masculino (não, não defendo proibições). Nada
disso: era crítica ao ballet.
Ora o ballet é uma atividade
física exigente, implica empenho e superação, é visualmente bonito, existe no
meio de outras artes como a música. Até se pode considerar feminista – os
papeis das mulheres nos bailados clássicos são igualitários em termos de
protagonismo ou poderio técnico. Mas a senhora pouco esclarecida da CIG
desconsidera o ballet por ser uma atividade maioritariamente feminina e, tal
como nas cores, nada que é maioritariamente feminino pode ser permitido.
O universo masculino, em
simétrico, é glorificado acriticamente pela senhora. Princesas: terrível,
porque leva a mulheres que não querem tomar conta de si próprias. (Dou um
exemplo familiar. A minha sobrinha foi educada com Barbies abundantes, com
intenção, só pode, de a impedir de terminar o secundário; sabe-se lá como a
endiabrada rapariga transviou-se e deu em ótima aluna do Técnico.) Piratas –
que, se tomados com igual literalidade, são incentivo a uma vida de pilhagem e
assassínio – são simplesmente divertidos e ativos.
Já agora: reparem no verniz
cheio de brilhantes coloridos que Fragoso usa na SIC. É que no parecer da CIG,
amofina-se por as autoras dos cadernos colocarem as meninas a pintar as unhas.
Sim: são mulheres que negam às meninas brincarem com as atividades que elas, em
adultas, praticam.
Teresa Fragoso diz mais.
Justifica a ação persecutória de 2017 com imensas realidades que ocorreram
antes de eu nascer. Nem alcança a ironia de usar o Estado Novo para banir
livros em 2017.
E termina em grande. Afinal a
‘recomendação’ à PE existiu para ‘apaziguar’ as redes sociais. Ah, então está
bem. É que as várias fações em contenda se preparavam para pegar em armas e pôr
o país em variações da Guerra das Rosas. O banho de sangue que Teresa Fragoso
evitou.
De facto houve algum clamor
nas redes sociais para a retirada dos cadernos, mormente de Rita Ferro
Rodrigues (vai agora dedicar-se aos restantes livros sexistas; seguir-se-ão talvez os livros dos colégios internos de
Enyd Blyton, culpados pela diferença salarial e pelo tornado no Texas), de
Fernanda Câncio (não tem filhos nem estudos em psicologia infantil ou
pedagogia, mas sabe bem como educar os filhos dos outros; porém, louve-se o
sacrifício, quiçá de princípios, que terá feito para trabalhar na revista
feminina Elle, já que torce o nariz à SIC Mulher) e Inês Pedrosa (pretende até proibir os supermercados de arrumarem a mercadoria consoante
acham mais prático para o cliente; quererá estender a proibição à lojas de
roupa por sexos? Aos cabeleireiros e barbeiros?).
Lamenta-se sentenciar, no
entanto, que este clamor não desculpa o governo por amordaçar editoras. Em
1983, o jornal de esquerda Libération pediu ao Ministério dos
Direitos das Mulheres que proibisse, por ‘ódio sexista’, Kafka, Baudelaire,
Madame Bovary e o subversivo Pantagruel. Mas o governo francês não
acatava ordens dos tontos das redes sociais da época.
Título e Texto: Maria João Marques, Observador,
30-8-2017
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