Maria João Avillez
Do outro lado da guerra cultural não há voz
nem vontade. O comprometimento deixou de ter significado e perdeu poder de
convocatória? Não sei, mas a fratura é grande.
1. Vigiam-nos. Estão
atentos. Estão de serviço. Mobilizados pelo pensamento único, uma nova forma de
vida. Nunca se cansam. São ferozes na vigilância, implacáveis na perseguição,
sonoros na censura. A nova cartilha e os seus mandamentos não incluem desvios.
A nobre arte de debater, a esgrima dos argumentos, a relevância da dúvida, o
valor da discordância, estão proibidos pela própria natureza da subversão
civilizacional em curso.
Os novos proprietários
querem-nos fora de pé, ao largo de nos próprios, cortados pela raiz do que
somos e representamos. Querem que nos transfiguremos noutros, atraiçoando o
nosso “nós” individual e anestesiando o “nós” coletivo.
Querem-no com ferocidade, não
usando de contemplação: o castigo terá apenas o limite da sua própria
obscenidade: a intimidação, a denúncia, a manipulação, a mentira, o escárnio
público, abater-se-ão sobre os prevaricadores, qual raio ou trovão. A
extrema-esquerda, radical de seu nome próprio, é aliás exímia na aplicação
destes instrumentos que manuseia com a habilidade ácida do ódio. Temo-lo visto.
É preciso licença prévia para pensar e depois dizer alto o que se pensou.
Qualquer “forma mentis” que
não encaixe no novo código de conduta está automaticamente banida do seu
direito de cidade, privada do oxigénio da liberdade e da vitamínica
possibilidade da interrogação e debate. Há uma guerra cultural em curso.
2. Os novos proprietários
das mentes&costumes não valem grande coisa eleitoralmente, nunca governarão
sozinhos, o seu número no país é inversamente proporcional ao eco mediático que
os propaga mas para quem não estiver distraído nada disso tem, porém, grande
importância. Não tem, porque não é disso que se trata. É mais substancial, mais
fundo, mais grave. Por isso, eles valem pelo que os deixamos conseguir valer.
Valem pelo aparente êxito com
que corroem os alicerces que sustentam o berço civilizacional de onde somos,
valem pelo modo como vão calcinando o que conhecemos como nosso mundo. Valem
porque exibem o fôlego e a mestria dessa demencial empreitada que é o
determinarem-nos: formatando-nos as mentes, anestesiando–nos as reações,
domesticando-nos o instinto, incutindo-nos o receio de destoar. De ser expulso
do coro onde impuseram uma nota só.
E valem, claro, pela
desenvolta segurança de quem se implantou – cá dentro e lá fora — com
estratégia e método. Ocupando lugares chaves tão relevantes como a Academia e a
Media, convocando a Ciência para o festim, não descurando parte dos sistemas
partidários, não esquecendo as representações parlamentares, cuidando da
propaganda e do espetáculo. Oficializando enfim um novo mapa cultural e um guia
moral (?) desconexos, híbridos, convulsivos, sem raiz. Saídos do nada. Em nome
de uma abstrata “culpa ocidental” abatem-se valores, padrões, referências,
história, memória (mas saberão eles que não há organização social capaz de
vencer sem valores e sem passado?). Abatem-se como árvores, em nome do repúdio
pela herança civilizacional recebida. Os novos proprietários exigem-nos numa
palavra, que mudemos de pele cultural.
A isto se chama uma guerra.
3. Lá fora tudo
“isto” está em estado de mais adiantada convulsão, mas é fraco consolo: algo nos
separa – para pior — do resto da Europa democrática e dos Estados de Direito a
que gostamos de dizer que pertencemos. Separa-nos uma fratura que agrava a
vulnerabilidade da nossa condição face à dimensão da catástrofe: o caminho está
livre (ou parece livre) para ela, não há entrave, nem resposta aos novos
proprietários. Refiro-me obviamente a esse imenso espaço (metade do país?) do
PS para a direita. Pouco o representa, poucos dele cuidam a não ser partidos
exaustos e envelhecidos e meia dúzia de respeitáveis (e resistentes) políticos
ou intelectuais. Não há instituições que se reclamem desse espaço, há pouco
vigor, são escassas as iniciativas doutrinadoras ou políticas por ele
produzidas. A discordância é expressa quase em surdina e desastradamente, e basta
pensar na CIP para só citar um exemplo. Quanto à Universidade, faz pagar caro a
professores e mestres fora do reduto da esquerda e agora fora do jardim
envenenado do pensamento único ou da tirania do politicamente correto.
Desde 1974 que a “media” ignora,
despreza ou suporta mal a “ideia” de direita ou mesmo de centro-direita,
troçando ou destruindo os seus líderes e ajudando a acabar com eles, mesmo que
o voto os legitime. Ao contrário da Espanha, França, Bélgica, Alemanha,
Holanda, e etc., em Portugal nunca se impôs, com substância e carácter
definitivo, um jornal ou algo de parecido com um órgão de comunicação social de
centro-direita, conservador ou menos conservador. O qual, como sucede nos
países citados, funcionaria também como catalizador/produtor de opiniões,
ideias, movimentos, debates ideológicos, pensamento político. Mas nem isso: o
espaço continua semi-orfão, inorgânico, mal-amado. É um mistério.
A sociedade civil é tão débil
quanto isso? As elites tão frágeis? A dependência do Estado tão avassaladora?
Há metade do país sem voz nem vontade? O comprometimento deixou de ter
significado e perdeu poder de convocatória? Não sei, mas a fratura é grande. Do
outro lado da guerra cultural em curso há quase só anestesia, mutismo,
distração, indiferença. E simpatia até, quem sabe?
Impressiona. Ou não?
4. Posso parecer
um daqueles automobilistas que entram em contramão na autoestrada achando que
todos os outros estão enganados. Mas, caro leitor, o pior de tudo seria achar
que subitamente exibo um fatal pessimismo ou que exagero, ao dizer-lhe que o
meu mundo não é deste reino (e o seu, é?). Que me deu para aqui e se calhar
acordei maldisposta. Não se iluda. Não conduzo em contramão, não estou fora de
pé, sempre pude com os inimigos e tenho-me livrado, graças a Deus, dos
“amigos”. O que não é mais possível é acordar e constatar que aquilo que na
véspera se tinha como normal afinal não é. Por decreto emitido pelos novos
proprietários, deixou de ser.
Far-me-ia por isso alguma
impressão não ser capaz de contribuir para um alerta vermelho de perigo. Perigo
sério, porque isto é a sério.
Título e Texto: Maria João Avillez, Observador,
28-8-2017
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