Rui Ramos
O politicamente correto é um sinal do que
pode vir a ser um Ocidente em declínio: uma aglomeração paroquial de pequenos
lóbis identitários, a discutir minúcias, sob a vigilância de um poder despótico
Dia sim, dia não, o
“politicamente correto” faz prova de vida: mais um escândalo, mais uma
proposta. Pode ser a propósito de um anúncio, de alguma coisa que alguém disse,
ou de um velho costume ou expressão. As universidades americanas estão
geralmente na vanguarda, por vezes numa espécie de exercício de autocaricatura.
De facto, para os seus promotores tudo é extremamente sério. É essa a primeira
característica da tendência: a falta de humor. Não admitem uma brincadeira, não
reconhecem uma estupidez: tudo é tremendo — a cor de uma fralda, um pormenor
num manual escolar.
O politicamente correto é uma
tendência quase exclusiva das sociedades ocidentais. Explora supostamente as
discriminações a que estiveram sujeitos os que não eram homens brancos
heterossexuais. Por esse lado, tem um problema: não há hoje, em posição de
influência, quem promova segregações raciais, sexuais ou de género. É para
resolver este problema que o politicamente correto passa do texto à nota de
rodapé, da superfície ao subsolo, do dito à intenção, do explícito ao
pressuposto, do presente ao passado. O cidadão defende a igualdade, mas comprou
uma Barbie à filha: é machista. Não há inocentes.
O politicamente correto é
geralmente definido, e com razão, pela sua promoção por grupos e personalidades
da esquerda radical, que por aqui compensam frustrações revolucionárias. Mas
há, para além dessa conotação partidária, uma lógica civilizacional que talvez
importe descrever. A paixão do politicamente correto parece ser a “igualdade”.
De facto, o seu verdadeiro sentido é o da contestação da igualdade democrática,
assente na inclusão dos indivíduos na nação ou na sociedade enquanto cidadãos.
Para o politicamente correto, não há nação nem cidadania, mas uma
desmultiplicação infinita de identidades através de grupos de queixa e lóbis,
todos determinados em obter reparações e privilégios do Estado. O
desenvolvimento da sigla LGBT, com cada vez mais letras do alfabeto, é um
exemplo. Não há maioria, só minorias. De cada indivíduo, espera-se que se deixe
diluir no grupo e que passe a identificar-se apenas pela causa que define o
grupo (sexual, racial, etc.). O seu objetivo, a partir daí, deve ser
“representar” a tribo, preencher a quota, e não valer por si. Na prática, o
politicamente correto não supõe a “igualdade”, mas uma sociedade atomizada em
castas, mesmo que ainda não seja totalmente clara a hierarquia dessas castas.
A crer nos apóstolos do
politicamente correto, o passado foi um horror e a sua memória e os seus
monumentos deviam ser abolidos. Mas o presente, apesar de constantes
“vitórias”, não é melhor: nunca o racismo foi tão grave, nunca a homofobia foi
tão alta, nunca a misoginia foi tão aguda. Não há progresso. Por quê? Porque as
pessoas, deixadas em liberdade, tendem ao erro e à malícia, como outrora
tendiam ao pecado. Há sempre uma piada reveladora, um gesto sintomático. O
problema é, portanto, a liberdade. O politicamente correto tem assim de
pressupor um poder absoluto, capaz de fiscalizar todas as relações, de modo a
extirpar todos os preconceitos e impurezas, tenham a forma de um piropo ou de
uma cortesia. Por enquanto, vai havendo a caça às bruxas nas redes sociais.
Há ainda um aspecto
significativo: de todas as tendências ocidentais, esta é a única que não tem
aspirações universais. Os seus defensores, que combatem a separação entre
brinquedos para meninos e meninas, nada têm a dizer sobre a segregação dos
sexos nas comunidades islâmicas.
A Barbie indigna-os, mas a
burqa não lhes diz nada. O politicamente correto é um sinal do que pode vir a
ser um Ocidente em declínio: uma aglomeração paroquial de pequenos lóbis identitários,
em disputas absurdas, sob a vigilância de um poder despótico. Parece que era
assim Bizâncio antes da conquista muçulmana.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador,
25-8-2017
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