Rui Ramos
O politicamente correto é uma batota, um
jogo viciado, que as suas vítimas estão condenadas a perder. O ponto, portanto,
é não jogar. Não pedir desculpa, não se justificar, não ceder, não alinhar.
Nos últimos dias, muita gente
tem submetido o chamado “politicamente correto” à análise ou ao humor. Falta
talvez pensar nisto: como deve um cidadão comportar-se quando lhe acontece cair
no radar dos cabos de esquadra da correção política?
Antes de mais, é preciso
compreender o que pretende essa incansável guarda fiscal. O politicamente correto
não aspira a criar um novo consenso. A sua única razão de ser é denunciar e
estigmatizar, e por isso o seu alvo não são tanto as atitudes ou as opiniões a
propósito disto ou daquilo, mas certas categorias: brancos, europeus (ou norte-americanos),
classe média, heterossexuais, homens, ou quem quer que não seja de esquerda …
Por mais que diga, por mais que faça, quem por acaso cair num desses
compartimentos será sempre racista, imperialista, elitista, homofóbico,
misógino ou fascista, não por causa das suas atitudes para com as pessoas de
outra raça, de outra classe, de outra orientação sexual, de outro género ou de
outra persuasão política, mas muito simplesmente por causa de quem é. Se
atacado, o cidadão não se apoquente, portanto, a pensar no que fez e não devia
ter feito, ou no que disse e não devia ter dito. Lembre-se apenas de quem é.
Porque é nisso que os seus perseguidores estão a pensar.
Dir-me-ão: mas a maior parte
dos vigilantes do politicamente correto são originários de alguns dos grupos
suspeitos. Exatamente. Mas do ponto de vista do politicamente correto, a única
maneira de escapar ao pecado original está no frenesim da denúncia, na fúria de
zombies com que os convertidos acossam aqueles que ainda não estão infectados.
É essa a única redenção: entregar-se totalmente à intolerância, participar
furiosamente nas perseguições.
Imaginemos que o cidadão não
está disponível para aderir desta forma sem retorno. Que deve fazer, então?
Para começar, há dois tipos de erros que lhe convém evitar. O primeiro é tentar
ser perdoado ou aceite: mostrar-se, quando alvejado, muito embaraçado, muito
arrependido e pedir muita desculpa; ou então, tentar provar que, embora membro
de uma tribo duvidosa, “não é como os outros”, por exemplo, condenando por sua
vez quem, naquela semana, a milícia politicamente correta está a condenar. São
duas manobras ridículas e ineficazes, porque — é preciso repetir –, o
politicamente correto não tem como alvo preconceitos ou discriminações, mas
determinados grupos previamente marcados como suspeitos. Se o cidadão pertence
a uma das categorias perigosas, poderá até ser temporariamente cumprimentado,
se por acaso se tornar útil no tormento de um correligionário, mas, a menos que
se converta totalmente, nunca deixará de ser, para os verdadeiros crentes,
aquilo que é. Terá, portanto, sempre razões para recear que a matilha com quem
caçou se volte contra si mais tarde ou mais cedo. Roma não pagava a traidores,
e o politicamente correto também não.
O outro erro é – chamemos-lhe
assim – o “politicamente incorreto”. É quando o cidadão acossado, em vez de
recuar, avança pelo caminho aberto pelos seus acusadores, e passa a exagerar as
atitudes e os comentários supostamente escandalosos. A intenção até pode ser a
de forçar fronteiras ou violentar “tabus” (como é costume dizer). Mas o risco é
acabar por tombar numa espécie de politicamente correto virado do avesso. Na
prática, trata-se, apesar do aparato de provocação, de uma manobra defensiva,
como a do bobo que, na corte, procura a impunidade através do excesso
truanesco. É apenas outra forma de se proteger e escapar.
O politicamente correto é uma
batota, um jogo viciado, que as suas vítimas estão condenadas a perder. O
ponto, portanto, é não jogar. Não pedir desculpa, não se justificar, não ceder,
não alinhar, não provocar — não dar conversa. Havia erro? Corrigir naturalmente.
Estava certo? Manter sem inibições. Nada há de tão efetivo contra a urticária
do politicamente correto como isto: informar-se, refletir e não desistir da
ideia de um debate regrado.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador,
29-8-2017
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