Aparecido Raimundo de Souza

Viviam Barcelar, havia pouco tempo, perdera tudo o que amava. Seu marido
Gabriel, arranjara uma amante. Seu filho Lucas se debandou para a casa do avô;
seu apartamento na Barra da Tijuca ficou grande demais para abrigar somente a
sua fragilidade; seu José e dona Rosa (seus sogros); se mudaram de mala e cuia
para o interior. Ela tinha fugido recente de uma guerra que lhe enfraqueceu os
sonhos que almejava. Um conflito medonho que não se fazia esperado, aflorou.
Uma conflagração hostil lhe tirou tudo o que tinha conquistado e se fazia real
como as linhas desalinhadas das palmas de suas mãos.
Viviam Barcelar perdeu tudo e mais um pouco. Ela tinha chegado a um lugar
estranho, estancado num ponto distante do seu estado normal, onde não conhecia
ninguém, tampouco vivalma falava a sua língua e o pior de tudo: onde não tinha
sequer um pingo de esperança. A bela e ousada bailarina, na alvura dos vinte e
nove, só tinha a dança. Sua válvula de escape. A tábua da salvação. O desvão
para fugir das desgraças que lhe atormentavam. A dança que aprendeu com sua
mãe; que herdou de sua avó; que fazia parte de sua cultura; de sua identidade.
Os movimentos sequenciais que se transformaram na sua melhor forma de
expressar, de sentir, de viver, de se acreditar respirando com o coração
envolto em batidas descompassadas.
A dança que era a sua utopia, o seu agora, o seu amanhã, enfim, a única alegria, o derradeiro prazer, tudo se fez num buraco imenso. Em verdade, a sua trilha para alcançar a liberdade, para se ver livre de um perigo iminente veio à óbito: a solidão brutal no lugar dela, se materializou. Com isso, a dança da sua alma estraçalhada, alquebrada, quase às raias da neurastenia não lhe permitia parar. Por conta, a criatura carecia de seguir em frente. “Droga! Só dançando não sucumbiria.” Para não se ver sem saída, perdida, mais esmagada que arroz de terceira, a dança voltou à cena. Se constituiu, sem sombra de dúvidas, na sua única maneira de voltar a ser o que antes alegrava o seu mundo, não permitindo chegar aquela situação infame e atarantadamente ensandecida.
Viviam Barcelar dançava, dançava e dançava... voava febril sobre os pés,
dançava eletrizante como se não houvesse um agora ou um próximo amanhã. Se
mexia freneticamente porque, talvez, se parasse para pensar, para tentar
reconstruir o que se fazia (ou lhe parecia impossível), talvez sinalizasse não
existir, de fato um novo dia seguinte à sua espera. Porque talvez Viviam
Barcelar não quisesse que houvesse. Porque lado outro, só pretendesse se perder
tresloucada na dança, na cadenciação da música, ou, no pior dos mundos: se
fundir na arte. Talvez ela só quisesse se encontrar nos domínios da dança, na
euforia da música, usque no melhor daquilo que sabia fazer com esmero e
perfeição. Ela não se cansava.
Seguia firme e dançava. Dançava e seguia adiante. Seguia lisonjeira, como
uma alma perdida em busca de reza. Um ser que buscava um sentido; um propósito;
um destino; um talvez; um minuto; um segundo que fosse para se sentir feliz e
realizada. Viviam Barcelar se transformara numa alma oca que ansiava por
tranquilidade e paz, que soluçava pelo amor se renovando, pela felicidade
plena. Uma alma simplesmente solitária, que se entregava de peito e coração
abertos, à dança, à música, e à arte. Nela, nos benfazejos da dança, seu futuro
promissor, se fazia seu tudo.
Viviam Barcelar, por assim, dançava. Dançava sem parar. Não se cansava.
Acabava uma música, entrava outra e mais outra e mais outra —, tudo numa
sequência interminável. Ela dançava como uma vida perdida. Uma coisa sem valor,
um ser que não merecesse mais nada, a não ser deixar de existir. Não, não, por
Deus, deixar de existir, jamais. Jamais! Viviam Barcelar sofria. Estava no fim.
Contudo, acreditava piamente, sentia que através da dança, envolta corpo, alma
e espírito, tudo sem tirar nem pôr condensado naquele ritmo entontecido, se
achasse se descobrisse exatamente no lugar do caminho, onde sem saber por qual
motivo, se perdeu e se distanciou... —, ou via outra, se divorciou de si mesma.
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo
de Freitas, no Rio de Janeiro, 20-2-2024
Ela só queria ver as Baleias-Jubarte
Curva contrária
Simplesmente funambulesco
E agora, Jose??!!
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