Aparecido Raimundo de Souza
A última batalha de STF apelidado pelos mais chegados de “Cujo, ” começou numa pacata tarde de domingo, quando ele avistou a sua mais nova inimiga mortal: a geladeira Frigidaire, uma elegante branquela que ficou sendo a amante escondida do cantor e compositor Belchior por muitos e muitos anos. Zana Papudinha, do alto de seus trinta anos e sapatos pretos de plataformas enormes, mal sabia que o verdadeiro UFC começaria no momento em que ela abrisse a porta daquela congelante barulhenta. STF, perdão, “Cujo, ” rosnou, deu uma cagada fedorenta, latiu e, finalmente, mandou o golpe sidéreo: Se atirou de caneta em punho sobre a branquela máquina de gelar com tamanha convicção e afoiteza que acabou levando a ingênua escrevente (uma BIC recém adquirida num camelô da Presidente Vargas) junto no processo. Resultado? A frigorífica, coitada, se viu nocauteada, mas o STF, igualmente foi desalentado a completa acerbidade por um inesperado balde de água fria vindo diretamente do banheiro de sua dona.
E os "duelos" de STF, sempre lembrando, “Cujo, ” não pararam por aí. Dia seguinte, jurou ódio eterno ao seu Joaquim, morador de Cordovil, quando o viu colocar o pé esquerdo num hidrante existente na Praça Treze de Junho para amarrar o cordão de seu tênis que havia se desatado. O animal insistiu em latir e mordiscar severamente o pobre longevo, como se o pacato cidadão tivesse lhe roubado algo precioso. O curioso é que o próprio hidrante, no momento da encrenca, ignorou o infeliz do herói canino que lhe viera tirar do apuro fazendo cara de enfezado, quando o pulguento saiu disparado no encalço do infeliz passante que só pretendia, realmente amarrar o cadarço que se desatara em face de suas caminhadas desde que sairá do antigo Porcão na congestionada Avenida Brasil.
O esquisito e pedante STF não se fazia conhecido somente como um "cão de briga". Também se especializara num estrategista nato. Tentou, sem sucesso, pegar o passaporte de um gato esperto conhecido pelo patronímico de Bolsadearo, e, para tanto, se prestou a cavar um túnel imaginário para alcançar a criatura. STF estava convencido de que o referido bichano era um espião disfarçado vindo de outro planeta. Em face disso, passou horas embaixo do sofá de canto vermelho em forma de “L”, com apenas uma caneta na pata e o focinho à mostra, certo de que a sua camuflagem seria impecável. Ainda assim, a fama dos pós e contras de STF crescia a cada dia. Alguns boçais o aplaudiam, a maioria dos vizinhos tinham ódio dele. As velhinhas com mais de noventa riam, e até o carteiro, que antes desembestava por receio, agora passava devagar para assistir aos "shows" diários. STF, afinal, podia ser estabanado, metido a besta, e um pouco convencido de ser uma espécie de deus intocável disfarçado de Dilma Rouboussettiff.
No fundo, “Cujo” não passava de um boca aberta. Não ia além de um cachorro comum — com o coração de um verdadeiro lutador, e embora se achasse intocável, o maioral, não saía da sua casinha debaixo da alcova de sua ama e senhora, ou da furna improvisada debaixo de um ônibus escolar velho, se não tivesse antes se resguardado com os amigos Boca de Sapo e Faxim, que, por sua vez, só pulavam fora de suas respectivas tocas, se alguém botasse gasolina aditivada no seu fuxka. Sábado passado, um dia comum em Parada de Lucas, com trens indo e vindo, crianças brincando aqui e acolá, bicicletas deslizando pelas calçadas, o asfalto quente, carros, ônibus e motos se cruzando num balé dantesco. Tudo, sem tirar nem pôr, se confundia com o som distante das panelas na cozinha da dona Zana Papuda. STF, o intrépido “Cujo” cão de briga e guardião oficial do “pedaço” de sua dona, e não só dela, também das ruas Lucas Rodrigues, a Mundaú, onde morava e outras ao entorno, estava deitado sob a sombra do busão escolar, observando seu território com olhos atentos. Nada escapava ao radar desse pequeno e valente sentinela.
De repente, um grito estridente veio da direção onde está situada a “facção Terceiro Comando Puro.” STF ergueu as orelhas, alertado. A menina Samanta moradora de uma casa próxima à sua, havia ficado com a perna presa na reentrância de um bueiro aberto em face da tampa de proteção roubada por um morador de rua. Não se fazia tal atitude, uma situação perigosa. Porém, ao olhar mais de perto, STF percebeu algo terrível: a bola favorita da pequena de dez anos, havia rolado para perto de um grande e mal-humorado cachorro que bufava em posição de ataque. Enquanto os adultos ainda processavam a real situação, STF entrou em ação. Com um salto digno de atleta olímpico, deixou o conforto do coletivo, atravessou a rua e correu em marcha tresloucada à cena. O maldoso, que até então se achava o rei do pedaço, não esperava por um adversário tão destemido. STF latiu com todo o ar que seus pulmões podiam reunir, mas o enxerido não recuou. Seria, obviamente, uma peleja de excelente bravura.
O que se seguiu foi um duelo digno de um filme de ação nos moldes de Stephen King. STF, com suas ágeis patas e movimentos astutos, desviou das dentadas do malvado e conseguiu pegar a bola de Samanta com um salto acrobático. O parrudo intrometido, cansado e provavelmente impressionado pela coragem de STF, resolveu recuar, dignamente deprimido e humilhado. Com a bola na boca e os olhos abanando de orgulho (olhos?!), STF se voltou para Samanta, que o esperava com lágrimas de alegria. "STF! — Você é o melhor cachorro do meu mundo!" — proclamou a garota, enquanto abraçava seu herói. Os vizinhos, passantes e curiosos, enfim as eternas testemunhas de qualquer evento incomum, aplaudiram e filmavam, riram e bateram palmas ao mesmo tempo. Afinal, STF havia enfrentado um cachorro tido como sanguinário e labrusco, abrutalhado e feroz como se fosse um dragão soltando despachos como um pai de santo incubado em seu dia de glória num terreiro de macumba lá pelas bandas de São Cristóvão. A partir desse evento, STF deixou de ser apenas o “Cujo” briguento do quintal da Dona Zana Papudinha. Ele se tornou o protetor oficial da vizinhança — e um herói nos corações de todos.
Contudo, os anos passaram, e STF, envelheceu. Mesmo com a sua careca, seus pelos grisalhos, um amontoado de pelancas “corpo afora e a dentro, ” continuou a ser amado pela galera, apesar de viver com a caneta sempre pronta para fazer um apronto. Enquanto descansava em seu lugar favorito, sob a sombra do mesmo transporte jogado às traças, ele simplesmente adormeceu e não acordou mais. A notícia correu rápida. Se espalhou de canto a canto, se propagou por todas as demais ruas, bem ainda em localidades não somente de Parada de Lucas, igualmente de Brás de Pina, Cordovil e até Duque de Caxias e Realengo. Aos poucos, tudo se fez silencioso ao reinar dessa morte súbita. Samanta organizou uma homenagem para STF, seu eterno e adorado “Cujo.” Os vizinhos e puxa sacos, trouxeram flores, compartilharam histórias e lembraram as façanhas do intimorato herói. Herói?! É para rir? Dar gargalhadas até a multidão lunática esquecer? Como o brasileiro é cego e tem memória de ameba... lembrando, o carteiro, que se tornara “amigo” (entre aspas) do cão, deixou uma carta na caixinha do correio do portão que acessava o quintal de dona Zana Papudinha com as seguintes palavras: "Cujo maldito, sua besta. Até que enfim, apesar dos pesares, você foi para os quintos." Antes que passe sem comentário: Frigidaire, a geladeira de Belchior, vamos ver o que aconteceu com ela. O cearense de Sobral, nascido em 1946, fez uma música em homenagem a sua musa. Não casaram, nem tiveram filhos. Hoje a fogosa Frigidaire é a meia faltosa, a metade mulher orgulho de Tiago Abravanel, neto de Silvio Santos.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, 18-3-2025
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Cujo
ResponderExcluirAposto que o Aparecido Raimundo de Souza leu o romance (Cujo) de cabo a rabo e num só fôlego, um dos primeiros livros escritos por Stephen King. Nessa época, o autor de (It, Fúria, Zona morta, Trocas macabras) e tantos mais, ainda não era um autor conhecido. Mas isso não importa. O fato é que o Aparecido adaptou com elevado esmero seu texto ao romance, pelo menos no tocante ao título, descambando, logo depois, para uma crônica estupenda, entrelaçando figuras e episódios do nosso dia a dia como o cachorro batizado de STF e uma invasão na ótica dele que nunca existiu. Fica bem claro também quem é o cachorro, como os demais personagens, citando apenas alguns, como a Zana Papudinha (aqui o presidio da Papuda, em Brasília ou a Zona na qual a Papuda se transformou), a vagaba em frente ao puteiro (não outra senão a justiça e a sua espada), sem precisar tecer comentários sobre a BIC, usada por um personagem a meu ver, mais que desgraçado e maldito que o próprio tinhoso. Eu o rotularia de um rato de esgoto. King na época desse livro, vivia drogado, chapadão, a bem da verdade. Cheirava muita cocaína, como eu sou viciada em Guaraná e vivo cheirando as mãos toda vez que largo o cabo da enxada que me absorve a beleza o dia todo. Nesse tempo Stephen King vivia descentralizado da sua verdadeira vocação, embora o Cujo tenha virado um filme estrelado por um elenco de respeito e gabarito, como é o caso de Dee Wallace Stone, como Donna Trenton, Danny Pintauro, como Ted Trenton, Daniel Hugh Kelly, como Vic Trenton e etc, etc. (segue na parte dois)
Tatiana Gomes Neves do Sítio Shangri-Lá, entre as divisas de Espírito Santo e Minas Gerais.
(Vem da parte um) Ele, o King, jura, de pés juntos, que não se lembra de ter escrito o livro. Todo escritor, no meu entendimento é meio louco e pancadão da cabeça. No filme a atriz principal precisou ser substituída por outra, pelo fato do cachorro (um São Bernardo, aliás, temos um cachorro com cara de porco que sujou muito as ruas de São Bernardo, em São Paulo). Esse cachorro (o do filme) por pouco não arrancou o nariz da atriz, precisando a coitadinha, ser substituída por uma outra. Faltou pouco, inclusive, precisou ser levada com certa urgência a um médico. No mais, a ambientalização do texto se faz excepcional, pois o Aparecido escolheu Parada de Lucas, como também ruas e praças desse bairro. É bom lembrar que toda a figuração da crônica quase colada à Braz de Pina e Irajá é real. Eu chamaria a atenção para um ponto nevrálgico, que considerei interessante. (Segue na parte três)
ResponderExcluirTatiana Gomes Neves do Sítio Shangri-Lá divisa de Espírito Santo com Minas Gerais
(Vem da parte dois) - Final Aparecido fala de Belchior e de uma geladeira Frigidaire. Minha mãe tem uma dessas até hoje aqui em casa. Mas o cômico é que o gancho da Frigidaire, me fez lembrar que, de fato, Belchior se engraçou com uma dessas jovens descrita como uma escrava branca da tecnologia e inclusive, Belchior chegou a fazer uma música para ela. Falo da Balada de Madame Frigidaire, uma música bela, criativa, fora de série, muito elegante e de um primor inconfundível. Pasmem, com uma orquestração de elevado apuro, o que engalana o coração de quem a escuta. Segue aí o link para quem quiser ouvir, essa obra prima do cearense nascido em Sobral.
ResponderExcluirTatiana Gomes Neves, do sitio Shangri-Lá, divisa de Espírito Santo com Minas Gerais.
Aparecido, bom dia. Hoje, 19 de março. 72 primaveras. Passei para desejar a você, juntamente com a minha familia, papai, emamãe, no dia de hoje, muitas felicidades e muitos anos de vida. Que Deus o abençoe grandemente e que você continue sendo essa pessoa maravilhosa. INIMITÁVEL.
ResponderExcluirTatiana Gomes Neves, do sitio Shangrila, divisa do Espírito Santo, com Minas Gerais
Balada de Madame Frigidaire
ResponderExcluirComposição de Belchior.
https://www.youtube.com/watch?v=GvRSoBIQYCc&list=RDGvRSoBIQYCc&start_radio=1
Ando pós-modernamente apaixonado pela nova geladeira
Primeira escrava branca que comprei, veio e fez a revolução
Esse eterno feminino do conforto industrial
Injetou-se em minha veia, dei bandeira
E ao por fé nessa deusa gorda da tecnologia
Gelei de pura emoção
Ora! Desde muito adolescente me arrepio
Ante empregada debutante
Uma elétrica doméstica então, que sex-appeal!
Dá-me o frio na barriga
Essa deusa da fertilidade
Ready-made a la Duchamp
Já passou de minha amante
Virou superstar, a mulher ideal
Mais que mãe, mais que a outra, puta amiga!
Mister Andy, o papa pop
E outro amigo meu xarope
Se cansaram de dizer
Pra que Deus, dinheiro e sexo
Ideal, pátria e família
Se alguém já tem Frigidaire
É Freud, rapaziada!
Vir a cair na cantada dum objeto mulher
Eu me consumo, madame
E a classe média que mame
Se o céu, a prazo, se der
Que brancorno abre e fecha sensual
Dessa Nossa Senhora Asséptica
Com ela saio e traio a televisão
Rainha minha e de vocês
Dona Frigidaire me come
But no kids double income
Filho compromete a estética
Como Édipo Rei momo
Como e tomo tudo dela
Deleites da frigidez
Inventores de Madame Frigidaire
Peço bis! Muito obrigado!
Afinal, na geladeira, bem ou mal
Pôs-se o futuro do país
E um futuro de terceira
Posto assim na geladeira
Nunca vai ficar passado
Queira Deus que no fim da orgia
Já de cabecinha fria
Eu leve um doce gelado
Mister Andy, o papa pop
E outro amigo meu xarope
Se cansaram de dizer
Pra que Deus, dinheiro e sexo
Ideal, Pátria e Família
Se alguém já tem Frigidaire
É Freud, rapaziada
Vir a cair na cantada dum objeto mulher
Oh, mas que trocadilho infame
La femme est là-dedans
Pourtant j'ai dis au contraire
Carina Bratt, de Vila Velha ES