terça-feira, 4 de março de 2025

[Aparecido rasga o verbo] A tristeza da lâmpada queimada

Aparecido Raimundo de Souza 

EM UM CANTO esquecido da sala enorme, jogada dentro de uma caixa de papelão cheia de bugigangas, a pobre e indefesa lâmpada queimada se flagra derreada, totalmente entristecida, o coração repleto de lembranças imorredouras. Até bem pouco tempo atrás, coisa de um mês, pendurada no bocal meio da sala gigantesca, a belezura iluminava o ambiente deixando o totalmente claro, onde uma agulha, se caísse no chão, seria achada com a maior facilidade, mesmo por um cego. Hoje, queimada, à mercê das garras do abandono e a sanha do “salve-se quem puder,” espera pelo fatídico de uma partida sem adeus, sem as alacridades dos aplausos dos seres humanos que nunca, em nenhum momento, deixou ficassem nas edacidades das trevas do menosprezo. 

A lâmpada (ou melhor, a fluorescência que dela restou) relembra com tristeza as histórias de quando a sua robustez se fazia viril, não permitindo que nenhum canto da peça tivesse um tantinho assim que fosse, de obumbração. Ela foi, por muito tempo, o sol de um universo doméstico, iluminando histórias e aquecendo corações. Foi testemunha de amores que vingaram, de corações apaixonados que se entrelaçaram, bem ainda partícipe de brigas acirradas, de xingamentos descometidos e lágrimas derramadas em vão pelo amor de um parente doente que partiu. Cada filamento de seu corpo, tinha seu destino traçado e o dela, fora feito para brilhar, fulgurar, reluzir sobressair, chamejar, raiar, ascuar, até o fim. 

De repente, do nada, com um estalo sutil, num último lampejo de vida, ela se reduziu à obscuridade de um apagão inexorável, interminável, vitimada por uma pancada quase imperceptível como se a companhia de luz, lhe apunhalasse, sem motivos aparentes a caixa de barramento de todo o prédio. Sua chama se fez extinta, suprimida, eliminada, apagada.  Como se o dedo de uma mão invisível apertasse o interruptor de forma irrefletida e impulsiva. Desde esse instante, a pobre lâmpada não mais se viu altaneira, com a sua fonte de luz plena e percuciente, apenas um lembrete (ainda assim muito vago) de que a mais brilhante estrela poderia, num piscar de olhos, desvanecer. Agora, a coitadinha jazia numa casca de vidro obesada de memórias. 

A repetidoria disturbiada de um ontem não totalmente fora de foco, ainda se faz prisioneira na imensidão da sua dor.  Um grito tênue e abafado, retido e sentido, a todo momento insiste em desanimá-la e deixa-la para baixo, não permitindo que descanse em paz. Assim que foi esquecida e atirada dentro daquela caixa de papelão até o pescoço de escumalhas sem valor, a sua alma se empobreceu. Ela sabe que foi empurrada escadas abaixo para o mais infame das misérias, ou seja, aquele patamar inglório que Marx rotulou de lumpesinato. A espera do fim, sem forças para voltar a ser o que outrora a colocou no auge, a pobre lâmpada se vê martirizada às calamidades de uma camada social sem forças de ocupar o seu antigo estado de destaque e postura. 

Com seus botões, pensa se tivesse forças, possivelmente se quebraria, fosse se atirando de cabeça no piso daquele ambiente que tantas alegrias lhe propiciou, ou se esmagaria até se ver em pequenos estilhaços em face de um daqueles objetos que lhe serviam de companhia à espera, possivelmente, de um saco de lixo a ser atirado de qualquer jeito num desses caminhões recolhedores de entulhos. Se pararmos para avaliar o que o presente texto tenta focar, chegaremos à conclusão que assim somos nós. Sem tirar, nem por nós, humanos, nos assemelhamos como uma lâmpada colocada num bocal em meio de um teto da sala, ou de uma cozinha. Não importa. Enquanto alimentamos com a luz que vem de dentro de nossa alma, todos nos querem por perto. 

Ao perdermos o viço, a vida, ou seja, ao nos pegarmos queimada, seremos arremessados aos rebotalhos do desuso.  Não podemos nos esquecer, jamais, que viramos, em questão de segundos, em algo obsoleto e sem valor. Somos também, sem tirar nem pôr, como essas lâmpadas em postes espalhadas pelas ruas da cidade. Até o dia em que qualquer coisa não prevista, o nosso corpo se deteriorará e nos apagaremos. E ao nos tornarmos ultrapassados, superados, antiquadrados, nos postaremos à mercê de um simpático latão de lixo que nos levará para algum lugar que desconhecemos o futuro negro que nos espera. A nossa luz é como a vida humana. Passageira, embora a esperança seja eterna e não desfaleça. 

O que acontece, dia após dia, é que vem um engraçadinho com uma lâmpada nova em folha e nos deixa, por conta, jogado num cantão, à “puta que pariu e agora?!”, enquanto uma outra ofuscação incandescente tomará nosso lugar e fará com que o bocal que se entrelaçava mavioso, se torne, na velocidade de um peido maroto, num objeto ainda mais cobiçado, e, pior, de rara beleza e esplendor.  A tristeza, pois de uma lâmpada queimada talvez esteja em sua incapacidade de fazer aquilo para o qual nasceu, qual seja, iluminar, tornar tudo às claras. Mas a lâmpada queima porque cumpriu a sua função, usque brilhou enquanto pôde. E assim somos nós, inquestionavelmente, na nossa jornada cotidiana. 

Se a grosso modo pensarmos em nossas vidas como lâmpadas, talvez o importante não seja evitar o momento em que deixemos de clarificar ou engalanar, mas sim aproveitar ao máximo o tempo em que a nossa luz brilhou. Cada um — agora voltando a nós, humanos, como seres viventes, deixamos nosso brilho de forma única, impactando os espaços ao redor. E, quando queimamos, nada mais justo que sejamos trocados. Lembrem que até os defuntos enterrados são nos cemitérios substituídos por novos, de cinco em cinco anos. Nesses momentos meio que trágicos, poderemos até servir de inspiração para novas ideias — assim como a nossa essência e legado podem continuar subsistindo, mesmo quando não estivermos mais aqui.  

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, no Espírito Santo, 4-3-2025 

Anteriores: 
Rhayla 
O laranja 
Homenagem merecida 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-