quarta-feira, 19 de março de 2025

Exílio à brasileira

Rafael Nogueira

Manifestação política no Brasil é igual futebol: todo mundo é técnico, e poucos jogam bem. Domingo passado, chutaram para fora outra vez. A manifestação pela anistia dos presos políticos, ocorrida no Rio, andou levando a pecha de "flopada", adjetivo que, até pouco tempo, só combinaria com filme brasileiro em festival internacional. Mas vejamos os fatos, essa inconveniência.

O ato foi recebido com desdém pelo beautiful people. O establishment aprendeu a esnobar e aguardar, na expectativa de que o tempo dissolva a resistência. Mas o mundo está olhando para o Brasil só agora. E aquilo que para nós é arroz com feijão, para eles pode ser a primeira colherada em um prato ainda desconhecido.

Enquanto a esquerda só consegue hoje juntar meia dúzia de gatos pingados com megafone e palavras de ordem do século passado, a direita, mesmo mal arrumada, amadora e com discurso único – e frequentemente monocórdico –, ainda lota ruas e quarteirões. Não como em 2021 ou 2022, é verdade. Mas alguém aí esperava replay eterno das grandes multidões? Não sejam inocentes.

Agora, a USP resolveu contribuir com seu rigor científico: contabilizou míseras 18 mil almas em Copacabana, número que, pelo mesmo método, reduziria o épico 7 de setembro de 2022 a um grupinho de 64,6 mil cidadãos. Essa calculadora progressista precisa urgentemente de pilhas novas. Mas isso é apenas detalhe num país em que números sempre foram questão de opinião.

Houve, claro, problemas típicos do nosso tropicalismo organizacional. A confusão sobre o lugar, a falta de divulgação decente, a absoluta ausência de narrativa convincente. Acrescente a tudo isso a data escolhida: justo no domingo em que Flamengo e Fluminense decidiam o Carioca. Pergunto: de quem foi a brilhante ideia? Com bola rolando no Maracanã, qualquer protesto corre o risco de virar preliminar mal assistida.

Mas atenção, que nem tudo foi derrota. A qualidade do apoio importa, e muito: governadores como Tarcísio de Freitas, Jorginho Mello e Cláudio Castro, além do eterno pragmático Gilberto Kassab, todos deram a bênção ao movimento. É sinal de peso institucional, ainda que os esnobes de sempre finjam não ver.

A coisa, porém, é mais complicada. Essa anistia, que me perdoem os idealistas, sugere implicitamente culpa. A história é mestra: no Brasil, só anistiamos crimes de ditadura, mesmo aqueles nunca comprovados. O precedente é perigoso, e tão brasileiro quanto a jabuticaba ou o bolinho de chuva da vovó.

Nesse país surreal em que se fala de democracia prendendo opositores, Eduardo Bolsonaro decidiu sair de cena: foi cuidar da vida nos Estados Unidos, juntando-se aos exilados de ocasião – Allan dos Santos, Oswaldo Eustáquio, Monark, Ludmila Lins Grilo. Pergunto, com a mão no coração: você ficaria? Arriscaria as grades, os filhos órfãos de pai vivo, a vida despedaçada atrás de muros que não respeitam inocência?

Exilados voluntários não são propriamente novidade brasileira. Quem já viveu sob arbítrio conhece o filme. Mas são sintomas graves, indicadores da saúde periclitante dessa República que insiste em ser tudo, menos republicana.

A questão central não é falta de indignação ou relevância, mas inteligência política – artigo raro –, estratégia organizada – coisa rara – e capacidade de comunicação – raríssima. Sem esses ingredientes, resta-nos o inevitável declínio rumo à tirania descarada, já que a velada anda mostrando as garras há bom tempo.

Por fim, lembro Olavo de Carvalho – aquele homem que dizia as coisas antes de acontecerem. Mudanças de verdade, ele insistia, começam de fora.

Talvez nossos exilados estejam melhor que nós, pobres diabos, eternamente presos neste ensaio geral de democracia. Se o arroz com feijão político ficou intragável, talvez esteja na hora de admitir: nunca tivemos talento para a cozinha. Nosso prato da casa sempre foi mesmo essa indigesta feijoada autoritária com farofa de hipocrisia.

Título e Texto: Rafael Nogueira, O Dia, 19-3-2025, 0h

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