domingo, 30 de março de 2025

[As danações de Carina] Barto

Carina Bratt

QUANDO O BARTO, meu gato de estimação fugiu de casa, por descuido da Chiquinha, a nossa empregada, eu saí desesperada. Parti para o tudo ou nada. Fora de mim, soltando cobras e lagartos feito uma doída desmiolada, a procura acirrada por ele, virei uma leoa. Eu tenho o Barto como se meu filho fosse. Por ele, subi e desci vários morros aqui das redondezas, enfrentei homens e rapazes armados até os dentes. Inclusive os careados. Encarei bandidos de metralhadoras e escopetas, entrei em barracos, varei em mansões, vasculhei em casas simples e até em prédios de apartamentos que rodeiam o meu bairro.


Também me fiz presente em bares e restaurantes, supermercados e padarias, açougues e quitandas, clínicas e casas de massagens. Virei de pernas para o ar, ônibus quebrados, carros abandonados, enfim, em todos os lugares possíveis e imagináveis me fiz presente. Me submeti a escutar na fuça, sem máscaras ou disfarces, que eu não ia além de uma relapsa, uma mulher descuidada, preguiçosa, desleixada, negligente e sem noção. Sem noção? Esta foi demais. Porém, em paralelo, apesar dessa chuva de nomes esdrúxulos, a maioria dos meus vizinhos não só de porta, igualmente de outros andares, bateu na tecla de que eu me transformara na figura de uma mulher-mãe dedicada.

Além de zelosa, devotamente consagrada. Entretanto, apesar da balança pender meio a meio para o lado do bem e do mal, como a nossa justiça, uma nuvem escura e sombria de moradores mal pressagiados me alcunharam de relapsa. Se eu não fosse uma maria vai com as outras, o meu bicho de estimação jamais fugiria. Por conta dos acréscimos ferozes, acabei virando saco de pancada. No instante seguinte, me tornei mãe extremamente descuidada, incompetente, inábil e imperita. De repente, do nada, tudo, assim, sem tirar nem ‘destirar,’ da noite para o dia, acabei caindo de vez e com força total na boca maldita do povo.

E como o povo é a voz de Deus, apesar dos votos a favores serem a maioria, arranjaram um jeito de me tacharam de desastrada e boçal, toupeira e mais que ‘deszelosa,’ uma inútil marchando a passos largos, ou seja, tipo uma mosca com a cuca cheia de cerveja. Coloquei este nome em Barto, em face de um escritor mineiro, Bartolomeu Campos de Queirós, autor de mais de setenta livros, falecido em 16 de janeiro de 2012. De todos os seus livros, o que eu tinha na minha mesinha de cabeceira, “Menino de Belém”. Barto veio desta cidade, trazido por tia Corinha, irmã de minha mãe. Corinha, dois anos depois de ter se mudado para perto de nós, faleceu aos 98 anos. Vítima de espirro. Nem preciso dizer que por conta do incômodo espirro, o nariz foi junto.

Partiu, a boa velhinha, como um passarinho que, de repente, do nada, abriu a porta da gaiola por vontade incontida e voou em direção às estrelas. Desde então, eu e Paulo Godoi (meu marido, aliás, o oitavo) o adotamos como um membro querido da família. Engraçado, quando lia uma página qualquer ao acaso para ele, do ‘Menino de Belém,’ o fofinho se achegava. Deitava a meu lado e ali ficava, até que, tarde da noite, eu o acomodava em uma caixinha de maneira especialmente mandada fazer para ele. Com o seu sumiço, até hoje ando às tontas. Outro dia liguei para mim mesma, num dos mais de duzentos cartazes com a cara de Barto, que mandei fazer e espalhar por tudo quanto é buraco.

Aliás, buraco é o que mais tem por aqui. Voltando ao telefonema para meu próprio número, perguntei para quem atendeu (voz de homem, obviamente de Paulo Godoi meu oitavo) ... se o bichano havia ‘aparecido.’ O Godoi desligou na minha cara e mandou que eu enfiasse o ‘aparecido’ e o Barto no focinho da Chiquinha. E concluiu dizendo que eu não ligasse mais. Comigo, segundo ele, mais cento e dez pessoas haviam se manifestado. ‘Essas ligações, sua chata, está atrapalhando a minha leitura do ‘Periquillo sarniento,’ do mexicano José Joaquim Fernández de Lizardi.” Eu havia me esquecido, que o meu ‘oitavo’ possuía um periquito (batizado como ‘Boca de Sapo’) e o mané sumiu do nada, sem deixar rastros.

Para complicar a história, com ‘Boca de Sapo’ o periquito não deixou nem um bilhete de despedida, ou uma mensagem no WhatsApp. Ao menos um mapa, uma dica, tipo ‘ô Godoi, fui dar um giro ‘pela aí’. Não sei se volto. Você é muito chato. Não passeia comigo, não me leva para ver o mar... bem que a sua esposa Deusa lhe chama de chato de galocha’ Você realmente é um porre.” Pois bem! Entre tapas e beijos, o mais intrigante: se foi também, de roldão, a gaiola. Lembrei do Ulysses Guimarães, que sumiu, ‘entre aspas,’ em Angra dos Reis e nunca foi encontrado. Nem ele, nem a gaiola, perdão, o helicóptero.

Título e Texto: Carina Bratt, de Ribeirão das Neves, ou, mais precisamente, do presídio José Maria Alkimin, em Minas Gerais, 30-3-2025

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