Aparecido Raimundo de Souza
DIZEM POR AI, à boca miúda, que a cobra que ofereceu a maçã à Eva ainda anda aprontando das suas. Mas, senhoras e senhores, não se enganem com as histórias fantasiosas que contam. Eva não se transformou em uma vilã de contos baratos. A sua história é bem mais complexa e repleta de nuances e matizes. No encalço de Eva, não outra senão a serpente Canja. Quando já passado bem mais de uma semana, naquele começo de domingo, Canja deu sorte. A rastejante conseguiu pegar a moça sozinha, se banhando peladona no riacho junto ao sopé das montanhas. Houve um diálogo gravado que foi capturado por um drone do “Partido dos Trambiqueiros,” que sobrevoava o paraíso e, em linhas gerais, foi mais ou menos assim.
A Cobra: — Oi, Eva, bom dia. Tube bem? Meu nome é Canja. Estou precisando falar com você faz bom tempo. Seu querido marido não me dá espaço. Puts grilo!
Eva se voltou, assustada. Não viu ninguém. Canja precisou trepar numa jaqueira, ferir o rabo para ser vista. Antes, descuidada, meteu o pé num monte de bosta ainda quente que havia sido deixado por um cágado careca de nome Alexan, esse recém-chegado de suas andanças fora das cercanias do Éden.
A Cobra, todavia, se fez insistente:
— Aqui, Eva, ei... aqui...
Ao topar com ela, Eva num primeiro momento se atemorizou. Pasma e boquiaberta, gritou:
— Meu Deus, estou ficando pirada? Pior, louca? Fumei um cigarrinho do demônio? Não acredito! Me pego falando com uma cobra?
Cobra: — Calma, Eva. Não se assuste. Não sou uma cobra qualquer. Tenho pedigree. Olhe para mim. Tenho cara de ser uma Gleise Hoffmann ou uma vadia dessas rameiras que andam por aí rodeando a entrada do seu lindo pedaço de chão?
Eva deu uma espiada rápida na tal peçonhenta. Por fim, sorriu: — De fato, você me parece bem diferente das outras serpentes que já cruzei aqui pelas redondezas. O que deseja de mim?
Canja, a cobra maldita, voltou ao chão e se arrastou até ficar mais próxima de Eva:
— Não tenha medo, minha flor. Não vou lhe fazer mal. Quero lhe fazer um convite. Que você seja a mais nova e linda rainha desse pedaço de paraíso. Juntamente com seu querido e inseparável Adão, logicamente. A vida de vocês dois vai dar uma guinada e as gerações futuras agradecerão aos dois, por isso.
Canja percebendo que a sua presa estava no papo, atacou:
— Me acompanhe. Vamos dar uma volta até o centro do jardim.
Eva: — Meu Deus, e para quê?
A Cobra: — Não faça perguntas, sua bobinha. Só me siga. Onde está o simpático e fofo do Adão?
Eva, olhando para o lado dos pastos verdejantes:
— Preparando um cabrito assado para o nosso almoço.
Cobra: — Ummmmm!...
Sem mais delongas, a Cobra conseguiu induzir a Eva para o local onde pretendia. Ao chegarem, Canja apontou a famosa árvore proibida.
— Está vendo aquela árvore? — Apontou a cobra com um dado inexistente:
— Sim. É a árvore proibida. O Senhor falou para eu e para o Adão comermos todas as frutas, menos as daquele pé...
— E você saberia dizer por qual motivo o Senhor lhes fez esse pedido?
Eva, espantada, lembrou das palavras do Senhor: “Eva e Adão, comam todas as frutas que quiserem do jardim. Menos aquela ali. É a fruta que denominei proibida. Se comerem... nem quero pensar o que poderá acontecer com vocês. Estamos entendidos? ”
A cobra insistiu na pergunta: E a resposta de Eva não teve nenhuma mudança significativa.
O fato é que, após o tão falado episódio no Jardim do Éden, a serpente se viu em uma situação desconfortável. Se a oferenda à Eva havia sido um ato de rebeldia ou de boa vontade, o mundo nunca saberá ao certo. No entanto, o que se pode afirmar é que o gesto não saiu como planejado. No fundo, como é do saber geral, deu merda.
Por esse motivo, a maçã, símbolo de conhecimento e queda, levou à expulsão de Adão e Eva e à subsequente transformação do Éden em um lugar inacessível. A cobra, então, ou seja, a peçonhenta Canja se viu exilada de um mundo que até então parecia ser o centro de seu universo. Em vez de se tornar uma simples figura de infortúnio, a desgraçada caninana passou a errar pelos cantos mais remotos do mundo. Ela não foi vítima de uma punição simples, pelo contrário, passou por um ciclo interminável de contemplação e adaptação. Os antigos contos afirmam que ela foi transformada em uma putinha “despernada”, condenada a viver no rés-do-chão e a engatinhar de barriga, por entre as folhas secas e os troncos apodrecidos. No entanto, a realidade se fez um pouco mais sutil. A porra da cobra carregava a eternidade do conhecimento que dera à Eva e, por isso, a sua trajetória é menos uma maldição e mais um exílio cheio de sabedoria e solidão.
As primeiras civilizações que encontraram cobras não viam a vadia apenas como uma criatura venenosa ou um símbolo de engano, mas como um ente perdido e “emacumbado” que suportava o peso de uma grande verdade. Para eles, a cobra se fazia um ser desprezível, mas ao mesmo tempo um trocinho repelente e comprido, que sabia o que significava o despertar da consciência e a dor incurável que isso acarretava. No entanto, com o passar dos séculos, o antigo significado se perdeu e a velha serpente, marota e trambiqueira, foi reduzida a um mero elemento do folclore. Agora, apenas algumas poucas tradições ainda reconhecem nela um resquício de sua antiga importância. Para esses poucos, a cobra que deu a maçã à Eva, é uma figura de reflexão. Uma metáfora meio que inexplicável para o conhecimento que não vem sem as inconsequências da angústia, da flagelação e do martírio.
No geral, a serpente Canja, sem dúvida, aprendeu que o conhecimento de todas as coisas tem o seu preço e que o mundo, apesar de vasto e misterioso, muitas vezes é tarasco e acrimonioso, bem ainda confragoso, azedo e severamente inóspito. Ela, a Canja amaldiçoada, continua a sua jornada silenciosa, deslizando entre as folhas e os segredos da natureza. Talvez um dia, quando os humanos estiverem prontos para compreender o verdadeiro custo do saber, a cobra Canja finalmente deixará de ser uma simples “galinha” penosa, e encontrará a paz que sempre buscou. Até lá, muitos pretendentes ricos e pobres, insensatos e imbecis trouxas e larápios, loucos e lunáticos, libertinos e liquidados seguirão tentando abocanhar os prazeres sujos da sua cruel e eterna infâmia.
Enquanto o dia “d” não chega, ela a nojenta e desqualificada, a gastadeira e repugnante, a asquerosa e repelente, a flor maldita e sórdida, seguirá por aí (desfilando pelo Éden conhecidos com outros nomes mais pomposos), obviamente com uma lista enorme de nomes gravados em sua mente insana (uma lista que vai de “A” a “Z” num piscar de abrir e fechar de pernas sem calcinha, sempre em busca constante por um embasbacado “C”, ou um “M” não descartando, jamais, o “L”, para enfiar a sua última “maçã” saborosa, entretanto, observando, sempre, uma frutinha simbólica, tipo um lembrete eterno de que toda a ação tem as suas consequências e que o conhecimento, embora bonito, fascinante, arrebatador, feiticeiro e amplamente abarcador, não é e nunca ficará totalmente isento de pedaços e pitadas de maquiavelismos e, de contrapeso, de pérfidos e estonteantes desafios. Muitos deles voltados para o exício, a ruina, a destruição — bem ainda — para a desonra e a selvageria, enfim, para o caos e a imoralidade total.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Ribeirão das Neves, nas Minas Gerais, 7-3-2025
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