Francisco Henriques da Silva
Durante 80 anos o mundo foi
moldado pelas relações EUA-URSS, em especial durante a II Guerra Mundial e, em
todo o período da chamada Guerra Fria, até ao início da década de 1990, em se
que registaram dois marcos históricos: a queda do muro de Berlim (1989) e o
desaparecimento da União Soviética (1991). O mundo mudou, mas os europeus não
quiseram mudar ou não se aperceberam das inevitáveis mudanças em curso.
Com efeito, na sequência dos
acontecimentos referenciados e sem prejuízo da presidência Biden, que pretendia
dar a ilusão de continuidade com um mundo que havia cessado de existir, Donald
Trump reemerge: os norte-americanos passaram a olhar para o umbigo, deixaram de
se assumir como os líderes do mundo e, nesta ordem de ideias, a pax
americana deixou de estar garantida. Os europeus foram, assim,
obrigados a sair da sua zona de conforto e entraram em pânico, porque,
alegadamente, são incapazes de solucionarem os problemas de segurança e defesa
do seu próprio continente.
Em Washington, a nova
administração chega à conclusão de que a situação da Ucrânia se encontra ou num
impasse, ou numa guerra de atrito de longa duração em que a Rússia beneficia de
óbvias vantagens e quer encontrar uma saída, no quadro de uma solução de paz
duradoura, tão rápido quanto possível (aliás, Trump e os seus fiéis disseram-no
bastas vezes antes e durante a campanha eleitoral; por conseguinte, não existia
aqui qualquer efeito surpresa). Para Kiev, a situação é desesperada, mas tentou
sempre escamoteá-la. Ora, ao longo de 3 anos, os europeus e a equipa de Biden,
nada fizeram na busca pela paz possível, pelo contrário, proclamaram aos 4
ventos a sua política belicista, no conforto das respectivas capitais, sabendo
que a situação se ia continuamente degradando, com grande sofrimento e
sacrifício do povo ucraniano.
Vejamos a situação tal e qual se nos apresenta: a Rússia não conseguiu alcançar os seus objetivos, conseguindo, porém, algumas vantagens territoriais, apesar de uma performance militar relativamente medíocre, mas sempre na estratégia da contínua guerra de atrito. A Ucrânia também não alcançou os seus objetivos (a expulsão dos russos do seu território), todavia, conseguiu, verdade seja dita, resistir, a um preço altíssimo em termos de perdas humanas e materiais e com um quadro de derrota militar na linha do horizonte, a longo prazo. Está-se, pois, perante um impasse, com vantagem para o lado russo e, nesta ordem de ideias, tudo recomendaria – o próprio bom senso mais elementar aponta nesse sentido – a que se encetassem negociações de imediato. As advertências de ordem moral, as violações do direito internacional, as recriminações históricas, recentes ou pretéritas, de nada servem: interessa, isso sim, é a situação no terreno e a realpolitik. As guerras terminam com a vitória de uma das partes ou com negociações. Não existem terceiras vias. Cabe aos responsáveis políticos dos países avaliarem a situação, tendo designadamente em conta os respectivos interesses nacionais e o desgaste e sofrimento das populações que representam. Seria de uma irresponsabilidade criminosa que o não fizessem.
Os EUA compreenderam
perfeitamente que a guerra havia chegado a um impasse ou a um prolongamento
insustentável para a parte ucraniana, o que, aliás, era manifestamente óbvio
aos olhos de qualquer observador, mas não o era para os sábios e preclaros
líderes europeus e para a anterior administração norte-americana. Mais.
Washington também compreendeu que:
a) A NATO era obsoleta,
b) Os Estados-nações da Europa competiam, em permanência, uns com os outros e
não existia (nem existe) consenso em termos de política externa.
c) A ligação da Europa à Rússia havia sido rompida e caberia aos líderes
europeus restabelecê-la.
No novo enquadramento da política transacional externa dos EUA pretende-se alcançar a paz a troco de qualquer outra coisa, neste caso os minerais e terras raras da Ucrânia. Estratégia do vendedor de tapetes? Talvez, mas é uma proposta que está em cima da mesa e há que tomá-la em consideração.
Money talks and bullshit
walks
Em rigor, a frase é
intraduzível, mas, numa versão livre e sem adulterar o sentido, podemos dizer
que “o dinheiro fala, as tretas e a conversa fiada ambulam.” Por outras
palavras, significa que o dinheiro tem uma influência poderosa e pode muitas
vezes determinar os resultados, ao passo que a conversa fiada ou a falta de
sinceridade são menos eficazes e podem ser ignoradas. Essencialmente, sugere
que os recursos financeiros podem facilitar a cação e os resultados, ao passo
que meras palavras ou promessas sem apoio não são levadas a sério. É frequentemente
utilizado para realçar a importância dos resultados tangíveis em detrimento da
mera retórica.
Foi o alcance desta frase que
Zelensky e os europeus não perceberam.
No fundo, para os Estados
Unidos, a Ucrânia é um caso menor, mas para a Europa, em especial para o Centro
e Leste europeu, é uma questão da maior relevância porque se trata de um Estado
vizinho e, com fundamento ou sem ele, a Rússia é uma ameaça.
A este respeito, há que salientar que a geopolítica é dura e não se compadece com a moralidade, mas antes com o que se pode e deve fazer. É precisamente este ponto que Zelensky e a Europa não quiseram perceber, porque, com altos e baixos, avanços e recuos, a posição dos Estados Unidos, ao longo de muitas e muitas décadas, não se alterou. Era conjecturável. Todavia, no quadro vigente da Nova Ordem Mundial, não é de todo em todo previsível e, além disso, está-se perante uma política transacional, isolacionista e matter of fact. Logo, money talks e a retórica (bullshit walks) é o que é e vale o que vale.
Fim da guerra fria?
A guerra fria acabou
definitivamente na Ucrânia, mas os europeus, presos a estruturas mentais de há
30 ou 40 anos, não se deram conta disso e optaram, de certo modo, por lhe dar
continuidade.
Assim, a Europa andou a
hostilizar a Rússia e de mãos dadas com os Estados Unidos de Biden a incentivar
uma política belicista em vez de realisticamente pensar numa solução de paz que
se impunha.
A Europa nunca soube o que é
que realmente queria da guerra na Ucrânia. Aparentemente, pretendia por via indireta
prolongar o conflito, a fim de enfraquecer a Rússia. Por seu turno, Kiev visava
dilatar o impasse, beneficiando do apoio militar e material norte-americano e
europeu. Só que, agora, o primeiro falha – e é vital – e o segundo é
insuficiente.
Nesta ordem de ideias e nas atuais
circunstâncias, a Europa, cometeu um erro ainda mais perigoso e grave
iludindo-se ao pensar que se pode defender sozinha sem os Estados Unidos.
A Europa pode sonhar com
autonomia estratégica, mas a realidade é que não tem os meios militares para
desafiar o plano de paz de Trump para a Ucrânia. Esta é a verdade dos factos e
não há volta a dar-lhe.
Acresce que os europeus, sobretudo os que orbitam na vizinhança da Rússia, tem
um pavor irracional – eu diria, infantil -, daquele país, porque a História
pode repetir-se: a Rússia dos czares, dos sovietes ou de Putin quer-nos engolir
a todos. Valha-nos Nossa Senhora da Agrela!
De tudo o que antecede, vou
tentar ser mais claro, com uma pequena narrativa metafórica: o capuchinho
vermelho vai levar os doces à avozinha, mas tem de atravessar a floresta e o
lobo mau está à espreita. O capuchinho vermelho espera que o caçador esteja por
lá com a sua espingarda para a proteger. O capuchinho vermelho tem medo do
escuro e da floresta, mas, entretanto, o caçador, desiludido com a menina e as
suas histórias, foi-se embora. O capuchinho vermelho, com razão ou sem ela,
receia o lobo mau, mas não convenceu o caçador a ficar. E, agora, o que é que
faço?
Nestas condições, entramos no subconsciente coletivo de uma boa parte da Europa e dos europeus e, neste particular, a razão e o bom senso não estão propriamente na ordem do dia.
Negociar ou não negociar e
negociar o quê exatamente?
Pretende-se negociar um acordo
global de paz que ponha definitivamente fim à guerra e que confira as
necessárias garantias de segurança ou um cessar-fogo temporário e depois logo
se vê?
A suposta entente franco-britânica,
dissonâncias menores à parte, pretende um pré-acordo de cessar-fogo de um mês,
em que as hostilidades por mar e ar, mas não as terrestres, são suspensas e
tropas daqueles dois países e eventualmente de outros vigiarão e monitorizarão
aquela trégua. É por demais evidente que para Moscovo todo este plano é
descabido e, por isso mesmo, inaceitável. Leia-se, tropas de países NATO no
interior da Ucrânia é um non starter negocial que nunca
poderia ser invocado. Elementar, meu caro Watson, elementar!
Mas é preciso vermos o quadro
como ele deve ser visto, centrando-nos apenas na UE (a que o Reino Unido não
pertence):
• A Europa tem manifestas
divisões no seu seio, em que os interesses dos diferentes Estados não coincidem
(com efeito, Hungria, Eslováquia, Polónia e Itália possuem agendas próprias em
matéria de política externa e de segurança de que não abdicam);
• A burocratização e a paralisia institucional dificultam qualquer política
comum, além disso, mesmo que se concretizasse, seria sempre diluída pela regra
do menor denominador comum;
• A estagnação económica, para além de problemas sociais e políticos(v.g. a
imigração) concentram a atenção dos europeus e impactam no seu quotidiano.
A Europa, se deseja participar
no processo de negociações, precisa de apresentar propostas alinhadas com os
interesses da Rússia e dos Estados Unidos. Em Londres, a primeira-ministra
italiana, Giorgia Meloni, destacou, aberta e pragmaticamente, a importância da
unidade do Ocidente e a necessidade de evitar a fragmentação, propondo uma
cimeira entre os líderes europeus e os EUA para fortalecer as relações, que
foram afetadas pela guerra na Ucrânia.
Além disso, é digno de nota,
ter a PM italiana sido a única entre os líderes europeus presentes na cimeira
de Londres que não manifestou apoio a Volodymyr Zelensky após sua a discussão
acalorada na Casa Branca com Donald Trump. Registe-se que Viktór Órban e Robert
Fico, respectivamente Primeiros-ministros da Hungria e da Eslováquia, também
não o fizeram.
De realçar ainda, que Mark
Rutte, o Secretário-geral da NATO, tenha sugerido a Zelensky que refaça a
relação com Washington. Trata-se de uma mera questão de bom senso, mas
imperativa no momento atual.
Entretanto, como retaliação
contra Zelensky, Trump, de uma forma drástica, congelou toda
a ajuda militar à Ucrânia, mesmo a que se encontra em trânsito.
Num volte-face aguardado,
Volodomyr Zelensky fez marcha atrás e deu o dito por não dito, tentando reparar
os danos (que não são poucos), publicando uma retratação nas redes sociais. Era
preciso chegar a isto? O presidente ucraniano manifesta, deste modo, o seu
firme compromisso com a paz. Zelensky e a Europa sabiam que o momento da
verdade havia chegado. Terá sido preciso uma peixeirada na Casa Branca para se
convencerem da realidade dura, nua e crua dos factos?
Sem os Estados Unidos, a Europa não vai lá e a Ucrânia não consegue negociar o que quer que seja, o que só seria possível numa situação de impasse e não numa situação de derrota.
Conclusões?
Donald Trump não cedeu às
ambições irrealistas que teriam sido incutidas aos ucranianos pelo Ocidente. O
presidente norte-americano entende que apoiar tais ambições poderia levar a um
conflito global, incluindo a possibilidade de uma Terceira Guerra Mundial. Essa
visão parece alinhada com a retórica de Trump de evitar envolvimentos militares
diretos e custosos, preferindo uma abordagem mais pragmática ou isolacionista.
As eventuais alianças entre a
Rússia, China, Irão e Coreia do Norte suscitam um fator acrescido de
preocupação num cenário de escalada do conflito. Essas alianças são
frequentemente citadas como um contrapeso ao poder ocidental, o que reforça a
ideia de que um conflito na Ucrânia poderia ter ramificações globais.
Por seu turno Zelensky, sem
embargo do contexto mais amplo da invasão russa da Ucrânia e a resistência
ucraniana como uma luta pela soberania e integridade territorial, aparenta não
estar predisposto a negociar a paz e de estar, inadvertidamente, a criar
condições para uma escalada perigosa do conflito. É neste sentido que se deve
interpretar a cena grotesca e tempestuosa de há dias na Casa Branca, em que
Trump deixou claro a Zelensky que, de momento, este não tinha vantagens (“You
dont’t have all the cards!”) e estava a jogar com as vidas de milhões de
pessoas, criando o cenário para um alastramento perigoso da guerra. Zelensky
recusou-se a aceitar e afirmou que não jogava cartas…
É por demais óbvio que a
Ucrânia não conseguiria militarmente vencer a Rússia sem a intervenção direta
dos Estados Unidos, algo que todos os líderes europeus sabiam, mas mesmo assim,
num intransigente espírito belicista, decidiram continuar a apoiar o conflito.
Mas durante quanto mais tempo, com quantos mais mortos e com muito maior
destruição material?
A Europa, desarmada e em busca
de uma identidade perdida, sem valores, sem referências e sem autoridade moral,
começou a trilhar uma via diplomática de última hora sem qualquer unidade,
coesão e planeamento em relação à guerra na Ucrânia.
Independentemente das nossas
ideias e da nossa vontade, a Nova Ordem Mundial está em curso.
Título e Texto: Francisco Henriques da Silva, licenciado em História, diplomata e autor. Foi Diretor-geral de Assuntos Multilaterais no MNE e embaixador na Guiné-Bissau, Costa do Marfim, Índia, México e Hungria, in “ContraCultura”, 7-3-2025
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