quarta-feira, 5 de novembro de 2025

O mundo entre jesuítas e iluministas

Rafael Nogueira

Entrei no assunto por um detalhe: por que, ao falar da Antiguidade, Benjamin Constant e Isaiah Berlin recorrem ao marquês de Condorcet como autoridade, sendo que ele não era exatamente um historiador, mas um matemático, um político, um educador? Fui atrás. O marquês escreveu suas páginas históricas na prisão, sem livros, sem arquivos, tomando a memória por bibliografia. E de onde vinha essa memória? Vinha do colégio jesuíta de Reims, onde o marquês estudou na juventude.

O Collège des Jésuites de Reims, como muitos outros da França daquele século, seguia a Ratio Studiorum com acréscimos próprios. Formava humanistas completos: latim e grego, retórica e clássicos greco-romanos, disciplina firme e prática constante de escrita, declamação e teatro escolar. Somavam-se história e geografia, matemática e ciências, além de música, dança e esgrima. A escola jesuítica cultivava tanto eloquência quanto virtude. O objetivo era formar elites capazes de agir na vida pública, com instrução sólida e caráter cristão, abrindo portas para a universidade, a vida religiosa ou a administração pública.

Não por acaso, muitos philosophes receberam dos jesuítas o núcleo da própria formação. Desse currículo de lógica, línguas clássicas, retórica, matemática, história universal nasceram a devoção à razão, a visão global e a perspectiva histórica articuladas a um ideal de caridade e de verdade. Não estaria justamente aí a matriz do mundo que herdamos?

O mundo dá voltas. Educados por mestres que liam a história sob a Providência, os filhos, já pais do Iluminismo, “desencantaram” as ciências, as letras e as artes. Mantiveram o rigor contra superstições e abusos, mas extrapolaram certos limites: expulsaram Deus e enxugaram o rol das virtudes, deixando uma compaixão hipertrofiada, sem o freio das demais qualidades, e, com isso, a política do ressentimento atualmente em vigor. Nietzsche, que não era catecúmeno de Loyola, viu tudo: compaixão isolada fabrica uma sociedade hipersensível, tóxica, pronta a ofender-se por tudo e por nada.

Faltou-lhes a lição, que os jesuítas ensinavam até no silêncio, segundo a qual a razão precisa da tradição como o rio precisa das margens para não virar pântano. Sem a fé, a razão vira técnica de legitimar apetites, o debate público se degrada em estatísticas cegas e narrativas com pretensão de ciência.

Não digo que os jesuítas fossem perfeitos, digo que foram mestres, inclusive dos seus críticos, como Voltaire, Diderot e o próprio Condorcet. Havia disciplina intelectual, seriedade de estudo, cosmopolitismo de referências: da Bíblia a Cícero, de Tácito às navegações, da álgebra à cartografia. Educação era alta exigência com alto propósito: salvar almas e fundar cidades. Cidades que favoreçam o cultivo das virtudes e a vida segundo o Evangelho. Evangelização e civismo, cada qual em seu foro, sem esquecer que o homem real tem corpo político e alma imortal.

Entre jesuítas e iluministas há um ponto de ouro: alta exigência com finalidade pública, abertura metódica da inteligência ao mundo e concepção universal de bens. A prudência está em não romper a ponte. Quando os iluministas herdaram o rigor e expulsaram o sagrado, ficaram com o mapa e perderam o território, preservaram o bisturi e perderam o doente, guardaram o esqueleto e expulsaram a alma. Talvez nos caiba refazer a síntese, recuperando o que foi interrompido com a supressão pontifícia de 1773 quanto ao bom ensino jesuítico, sem que retornasse com sua restauração em 1814.

Penso em sua seriedade, seu rigor, seu amor à verdade, propondo, para este século XXI, um “novum trivium” que devolva aos jovens a gramática para dizer, a lógica para pensar, a retórica para persuadir, e, com elas, a medida de uma liberdade que saiba respeitar a ordem, e de uma razão que saiba conviver com a tradição.

Título e Texto: Rafael Nogueira, O Dia, 5-11-2025

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