terça-feira, 29 de novembro de 2022

Marcelo é lelé da cuca

Pedro Almeida Vieira

Em 5 de Agosto de 1978, na secção Gente do semanário Expresso, o então seu diretor, Marcelo Rebelo de Sousa, escreveu uma frase, completamente desinserida de qualquer contexto, que se tornou célebre: “Balsemão é lelé da cuca”. Pinto Balsemão – fundador daquele semanário e atualmente presidente da Impresa – era então o primeiro-ministro português, e para justificar esta boutade, o então irrequieto Marcelo de 30 anos desculpou-se dizendo ter sido aquilo um teste aos revisores do semanário, por haver queixas sobre as suas qualidades. “Infelizmente, verifiquei que era verdade”, assim disse. Balsemão nunca lhe perdoou, porque foi um insulto gratuito e destituído de fundamento.

Pois bem, não tendo o PÁGINA UM uma equipa altamente profissional de revisores para testar – estando essa tarefa inglória, mas fundamental a ser agora desempenhada, com abnegação, pela Mariana Santos Martins, a quem não posso exigir mais –, não tenho assim qualquer alegação atenuante para vir a desmentir que não tinha o propósito de escrever o seguinte, que até já surge bem escarrapachado do título deste editorial:

MARCELO É LELÉ DA CUCA!

Assim: até com ponto de exclamação. Até para reforçar a intencionalidade, contundência e veracidade da minha afirmação.

Sejamos claros: como no conto de Hans Christian Andersen, Marcelo Rebelo de Sousa é hoje, e não é só de hoje, um presidente completa e tragicamente desnudado de sensatez – e só já se lhe pedia isso, apenas, sensatez –, mas ninguém se atreve a dizer-lhe.

Para mim, bastou vê-lo “nu” em 18 de Junho de 2017, quando no ainda quente rescaldo do trágico incêndio de Pedrógão Grande nos disse que “o que se fez foi o máximo que se podia fazer”. Tal insensibilidade e impreparação como estadista, desde logo mostrando preocupação apenas em desresponsabilizar políticos enquanto as brasas nem tinham arrefecido e cadáveres ainda fumegavam, foi para mim o bastante. Nesse dia, Marcelo “morreu” como político, e perdeu o meu respeito.

Mas, no meio das suas constantes selfies e exposições egocêntricas, a que nos foi brindando desde 2016, nada me preparava ainda para o que veio de si a partir de Março de 2020: um presidente da República simultaneamente catedrático de Direito Constitucional a pactuar, por mor da sua célebre hipocondria, com sucessivas violações da Constituição, incluindo discriminação de cidadãos em função de uma opção legítima e legal, bem como o incitamento a pais para inocularem filhos por uma não-causa social e sanitária. Mesmo se estivesse em causa proteger idosos num hipotético objetivo (não possível) de imunidade de grupo, jamais poderia ser aceitável condicionar a segurança dos mais jovens para proteger os mais idosos. Em tempos de decência geracional, costumava ser ao contrário.

Por isso, já não surpreende vê-lo agora como paladino de uma inconstitucional alteração constitucional, de uma chinenização da República Portuguesa, ou assistir às suas declarações sobre abusos sexuais de padres – ao estilo de “o que se fez foi o máximo que se podia fazer” – ou ouvir os seus comentários no flash interview de um jogo de futebol para sugerir que nos esqueçamos das violações dos direitos humanos no Qatar, pois é hora de andar a chutar bolas.

Mas algo fica já fora da sanidade institucional quando, em pleno século XXI, de tantos avanços sociais e tecnológicos, vemos o mais alto dignitário de uma quase milenar Nação discursar perante uma jovem elite – recém-licenciados em Medicina, antes do Juramento de Hipócrates –, avisando-a que “fazer sopa de pedra e fazer omeletes sem ovos, vai ser muito a vossa vida”.

Esta visão não é apenas miserabilista – de alguém que, aliás, já conta com mais de uma centena de viagens oficiais ao estrangeiro envolvendo 47 países –; é miserável.

Um Presidente da República somente se estiver (ou for) lelé da cuca pode dizer, a quem vai começar uma via profissional fundamental para um país (Saúde), que “o ideal seria (…) que tivésseis horas para ir ao cinema, ao teatro, para estar com a família, para ter almoços e jantares que não fossem não-almoços nem jantares”, mas que isso não lhes vai ser possível, porquanto aquilo que terão de enfrentar “, para não terdes que enfrentar aquilo que “é totalmente imprevisível”, uma espécie de “missão” do tipo dos missionários combonianos. E que ainda se apresta a ser o portador da “má notícia”, com ares de quem nada tem a ver com o estado da res publica: “a vossa vida vai ser o contrário daquele modelo para que apontou, de forma muito razoável e esperançosa, o senhor bastonário. Vai ser a surpresa, o inédito, o desconhecido, o ignoto. E vai ser como missão”.

Mas o que é isto?! Ensandeceu mesmo?!

No final da alocução, quero acreditar que as palmas que lhe dedicaram tenham sido pela comiseração que certas afecções mentais nos suscitam. Idem, com as habituais selfies, que ele tanto gosta. Convém, dizem, não contrariar certos caprichos de certas pessoas, mesmo quando as suas capacidades feneceram, mesmo se a cadeira onde se encavalitam no poder, até ao limite, se encontra em processo de esboroamento. Por podridão.

No limite, ninguém o levou a sério no discurso. Neste e em muitos outros.

Assim, não havendo esperanças numa resignação, acalento apenas alguma esperança de que lhe arranjem melhores conselheiros de comunicação, não o deixem falar tanto de improviso, e ajudem-no a terminar com o mínimo de dignidade o seu mandato, como disse certa vez António Costa sobre Cavaco Silva – que, aliás, a esta distância, e com algum estremeção na minha consciência, se me afigura agora como um estadista que, pelo menos, soube minimamente comportar-se enquanto Presidente da República.

Título e Texto: Pedro Almeida Vieira, Página UM, 28-11-2022

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