sexta-feira, 18 de abril de 2025

[Aparecido rasga o verbo] Reincantamento do cotidiano

Aparecido Raimundo de Souza 

A LAPISEIRA ELISANJA sai do estojo com o espírito alegre. Está radiosa e feliz. Sem perceber que logo atrás dela, apenas alguns passos, alguém a segue de cara fechada. Sem notar a presença da amiga Eloá Vitória, a Lapiseira Elisanja fala, como se conversasse consigo mesma.

Lapiseira Elisanja:

— Que maravilha! Cada pensamento meu, cada ideia, cada traço que eu crio... nossa, é a expressão mais pura da minha mente imaginosa...

Ao contrário dela, trepada nos cascos, a Borracha Eloá Vitória, atrelada em sua sombra, se manifesta, duas pedras nas mãos. Ataca.

Borracha Eloá Vitória:

— Você disse pura? Por favor! A maioria dessas ideias que saem de dentro de você se fazem erradas, tortas ou pior, desajeitadas. Sem mim, você, sua tonta, seria um caos!

Lapiseira Elisanja, sem perder a esportiva, se vira para a amiga e rebate:

— Pelo menos eu crio algo! Você, ao contrário, só destrói. Apaga como se nunca tivesse existido!

Borracha Eloá Vitória:

— Eu não destruo porcaria nenhuma, sua mal-agradecida. Apenas dou a chance de você recomeçar sem erros “para te arrastar.” Só lhe dou espaço para melhorar.

Lapiseira Elisanja:

— E quem disse que um erro não pode ser belo? Às vezes, o improviso é a alma do criativo! Noutras, o improviso é só um desastre esperando para acontecer. Saiba que o prazer de deslizar no papel, desenhando cada pensamento que emerge da minha mente criativa é como se fosse uma dádiva. Cada risco, cada curva, nasce como um sussurro de minha avidez imaginativa. Sou a ponte entre o abstrato e o concreto, ou seja, sua invejosa, me transformo no objetivo dos sonhos que logo em seguida, ganham forma.

A borracha Eloá Vitória não deixa por menos:  

— Sonhos que, na maioria das vezes, nascem imperfeitos, borrados, sem direção. Eu sou a guardiã da ordem, a restauradora da clareza. Sem mim, sua convencida, o mundo seria um caos de idéias inacabadas e garatujas confusas.

Lapiseira Elisanja:

— Que crueldade! Você olha para os meus traços e só enxerga defeitos? Cada imperfeição é prova de autenticidade.  É a alma da criação! Por que destruir aquilo que tem vida própria?

Borracha Eloá Vitória:

— Não é destruição, é oportunidade. Eu dou espaço para o aprimoramento, para o que é melhor. Não podemos crescer sem apagar o que está errado, sem dar um passo atrás para repensar e recomeçar.

A Lapiseira Elisanja se abre num sorriso forçado.

Lapiseira Elisanja:

— E quem decide o que é errado? Às vezes, o erro é apenas um caminho diferente. Um gatafunho fora do planejado pode levar a uma descoberta inesperada, algo único e magnífico.

Borracha Eloá Vitória:

—Talvez. Mas eu observo os erros como manchas: elas podem ser belas, mas não deixam de ser máculas. Meu papel é suavizar essas imperfeições, dar ao artista a chance de criar algo mais limpo, mais refinado.

Lapiseira Elisanja:

—Refinado, talvez. Mas nunca tão espontâneo. Você pode apagar meus traços, mas nunca destruirá a essência do que eu trago à vida. 

Essa troca de palavras entre as duas, a bem da verdade, reflete as suas personalidades ao tempo em que invoca uma profundidade maior para um conflito que nem deveria existir.

Vindo de algum lugar perto do estojo, aparece a Régua Eduarda e ao ver as duas amigas trocando palavras ríspidas, espera a oportunidade para entrar no diálogo.

Enquanto isso, a Lapiseira Elisanja, continua soltando fogo pelas ventas. Desabafa:

— Você pode apagar as minhas linhas, mas não denigre o talento inventivo que flui através de mim!

Borracha Eloá Vitória, ainda meio enfezada:

— Talento inventivo, ou caos? Sem um pouco de ordem, o papel seria apenas um campo de batalha de ideias confusas.

(De repente, a Régua Eduarda enxerga uma brecha e interrompe com sua voz firme e equilibrada).

Régua Eduarda:

— Olá queridas amigas. Vocês duas, parem com isso! Não percebem que só conseguem criar algo grandioso quando trabalham juntas?

Lapiseira Elisanja solta uma resposta ao acaso:

— E o que a sua amável pessoa entende de criação, dona Régua? Você é só   como eu diria uma linha reta! 

Nesse ponto da discussão, a Borracha Eloá Vitória, sem perceber, esquece as rusgas e acode em socorro da amiga: 

Borracha Eloá Vitória:

— Isso mesmo, sua bobona. Todo mundo sabe que você só serve para traçar limites.

Régua Eduarda:

— Limites, sim. Mas também direção e propósito. Eu sou quem dá forma ao caos e transforma linhas soltas em desenhos, ou melhor, em estruturas.  Sem mim, as suas desavenças não passariam de tapas e beliscões.

Lapiseira Elisanja:

— Humm... talvez você tenha razão Régua Eduarda. Concordo que as minhas ideias precisem, vez em quando, de um pouco mais de direção...

Borracha Eloá Vitória, esperta, dá o braço a torcer:

— Admito que apagar sem um propósito claro também não faz muito sentido.

A Régua Eduarda, em meio a essa confusão, passa a ser, do nada, uma personagem sábia, pragmática e talvez até um pouco sarcástica, entretanto, colocando as duas companheiras em seus devidos lugares.

Lapiseira Elisanja ponderando um pouco as palavras:

— Sabe, Borracha Eloá Vitória. A Régua Eduarda não deixa de ter razão. Sem você, eu não seria, vamos dizer, precisa e meus traços vez outra ficariam sem propósito. Acho que posso “te valorizar mais.”

A borracha Eloá Vitória se abre num sorriso espontâneo de canto a canto da boca.

Borracha Eloá Vitória:

— E eu admito, sem sombra de dúvidas, que, sem você, não teria nada para apagar. Quem sabe consigamos ser mais importantes juntas do que imaginamos. 

(De repente, o Papel Pedro Simão, até então calado e só assistindo a briga de camarote, interrompe com um tom dramático):

Papel Pedro Simão: Ah, que bonito! Vocês duas se entendendo, enquanto eu fico aqui sofrendo! É linha por toda parte, apagões sem fim... um dia, vou acabar rasgado nesse caos criativo!

Lapiseira Elisanja vem em socorro do Papel Pedro Simão:

Lapiseira Elisanja:

— Relaxa, meu amigo Papel Pedro Simão. Fica frio. Você é forte, aguenta tudo.  Não se esqueça, que é em você que nos espelhamos!

A Borracha Eloá Vitória fortifica concordando.

Borracha Eloá Vitória:

— Isso mesmo, só não passa perto, pelo amor de Deus, da Tesoura Vandeca!

(Entra a Tesoura Vandeca, afiada e com um sorriso cortante).

Tesoura Vandeca:

— Escutei, sem querer, meu nome.  Não se preocupem! Estou só esperando a minha vez para dar voz à essa diversão…

(Os faladores começam a gritar e o Estojo, amedrontado, se fecha com força, temendo que sobre para ele algumas bordoadas não esperadas).

Lapiseira Elisanja:

— Sabe de uma coisa, Borracha Eloá Vitória. Apesar de tudo, eu admiro a sua determinação em mandar para o espaço alguns de meus traços. Só tem uma coisa que me incomoda...

Borracha Eloá Vitória franzindo cenho:

— O quê? Minha eficiência impecável?

Lapiseira Elisanja mudando o rumo da prosa:

— Não, é que... depois de tanto apagar, percebo que você está ficando desculpe falar , mas essa situação está ficando cada dia mais visível. Você a cada dia se faz mais pequena, tão minúscula que acredito, dentro em pouco, sumirá antes de mim! 

(A Borracha Eloá Vitória engole o que iria dizer. Olha para si mesma e só então percebe o seu tamanho reduzido e responde com um toque de desespero dramático.)

Borracha Eloá Vitória:

— Pequena?! Eu prefiro o termo... compacta! Mas é verdade, amiga Lapiseira Elisanja. Estou realmente, encurtando, decrescendo... logo serei uma coisinha anã, virarei um trocinho nanico. 

Lapiseira Elisanja tentando apaziguar um problema futuro:

— Relaxa Borracha Eloá Vitória. Enquanto você encolhe, eu no mesmo pé, me verei sem meu material de trabalho, o grafite. Até que isso ocorra, obviamente vou traçar e você apagará um milhão de vezes. No final, com a chegada da nossa velhice, estaremos no mesmo barco... ou melhor, no mesmo estojo.

(As duas, de repente, caem na risada enquanto o Lilico Tilibra, apelidado carinhosamente de “Estojo Guardião,” com receio de uma suposta agressão, segue se mantendo fechado. Só ouvindo. A Régua, Eduarda, agora calada, assiste à cena e comenta sarcasticamente).

Régua Eduarda:

— Meninas, escutem o que vou dizer. Tudo o que estamos vendo aqui, não passa de um drama comum de estoque de papelaria... tenho para mim que não existe borracha igual a Eloá Vitória. Mesmo lado, nem grafite para uma vovozinha linda na qual a Lapiseira Elisanja se transformou... eu também, como todos que aqui estamos, cairemos num poço sem volta do nefasto desábito. O que precisamos fazer, com urgência é nos preparamos para quando esse momento desditoso e maléfico chegar, estarmos de cabeças erguidas e em paz. 

A lapiseira Elisanja, a régua Eduarda, a tesoura Vandeca, a borracha Eloá Vitória e até o estojo Lilico Tilibra nesse momento, sai do seu casulo e todos se confraternizam, se abraçam e se unem irmãmente, em vista do tempo que algum dia (ou em breve, nunca se sabe), chegará para todos, indistintamente. E o pior de tudo: sem prévio aviso.   

Diante desse quatro apresentado, que lição poderemos tirar para usar no nosso dia a dia dessa história com sabor de quero mais?  A lapiseira, a Régua, a Tesoura, a Borracha e o Estojo se unem, e passam a refletir em vista do tempo que irá seguir adiante, enquanto uma ficará pequena, ou seja a Borracha e a Lapiseira, sem grafite. Quem dará uma palavra amiga, para que todos eles encarem o futuro sem receios de ficarem velhos e inoperantes? Imaginemos que a régua poderia ser a voz da razão e da estabilidade, dizendo algo como: “Não se preocupem, amigos. Embora o tempo transforme nossa forma e função, a nossa essência nunca desaparecerá. O que fizemos juntos, medir, corrigir, criar, cortar, apagar, refazer, permanecerá em cada linha e traço que ajudamos a formar.” 

Talvez a borracha, pequena e gasta, seguirá cumprindo seu propósito. Apagar para dar espaço ao novo.  Mesmo capenga, seu tamanho não definirá a sua utilidade, mas sim, o impacto que continuará causando. “Embora miúda, ainda poderei apagar erros e dar espaço para recomeços. O importante é que continuemos sendo úteis, cada um à sua maneira.” E a lapiseira, sem grafite, encontrará consolo ao lembrar que não importa como... de onde menos se espera haverá um jeito de recarregar e seguir criando. 

O importante, berrou espavorida, a Régua Vitória:

— SOMOS UMA GRANDE FAMÍLIA. E DEVEMOS CONTINUAR ASSIM... UNIDOS... HAJA O QUE HOUVER...

Todos pularam para dentro do Lilico Tilibra, o “Estojo Guardião” que, radioso e contente, anunciou:

— Hora do lance. Venham saborear as guloseimas que preparei para nós.  

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, Rio de Janeiro, 18-4-2025

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