Muito antes das grandes redes nacionais, a Casa Garson transformou lojas em palcos, embalou gerações ao som do rádio e fez do simples ato de comprar eletrodomésticos um capítulo inesquecível da memória afetiva do Rio de Janeiro
Bruna Castro
Durante boa parte do século XX, entrar numa loja da Casa Garson era mais do que fazer uma compra. Era participar de um ritual urbano que misturava consumo, espetáculo, modernidade e sonho. O Rio de Janeiro, ainda capital do país, aprendia a desejar geladeiras, rádios, toca-discos e ventiladores embalado pela voz dos grandes cantores da era de ouro, muitos deles presentes ali, em carne, osso e microfone, para delírio dos fregueses.
Fundada em 1927 pelo
empresário Samuel Garson, a Casa Garson foi uma das grandes
pioneiras do varejo moderno no Brasil. Antes mesmo de a palavra
“eletrodoméstico” se tornar corriqueira, a Garson já apostava num modelo ousado
para a época: lojas amplas, vitrines chamativas, parcelamento acessível e uma
comunicação direta com o público urbano que crescia junto com a cidade. Ao
longo das décadas, a rede se espalhou por bairros centrais, subúrbios e
municípios do Grande Rio, chegando também a Minas Gerais, até formar um império
com dezenas de lojas e milhares de funcionários. Chegou a ter loja no Barrashopping.
Mas o que realmente transformou a Garson em algo maior do que uma simples rede comercial foi sua relação íntima com a cultura popular. Nos anos 1940 e 1950, quando o rádio reinava soberano, a loja tornou-se ponto de encontro entre comércio e música. Sob a gestão de ninguém menos que Abraham Medina, sobrinho de Samuel Garson, a empresa patrocinou programas dominicais na Rádio Nacional, então o maior veículo de comunicação do país. Por seus auditórios e transmissões desfilaram vozes que hoje pertencem ao panteão da música brasileira, como Cauby Peixoto, Angela Maria, Orlando Silva, Sílvio Caldas e o eterno Francisco Alves. Comprar um rádio na Garson era, muitas vezes, aproximar-se do próprio ídolo que saía das ondas sonoras direto para o balcão da loja.
A memória afetiva deixada por essas unidades ainda pulsa forte entre os cariocas. Havia Garson em Copacabana, perto da Figueiredo de Magalhães; na Tijuca, na Rua Conde de Bonfim, onde muita gente comprou a primeira máquina de escrever “numa malinha”; em cidades do interior, como Barra Mansa; e em tantos outros pontos onde a marca se confundia com o cotidiano. O Natal era um espetáculo à parte. As famosas “Feiras de Natal da Casa Garson” enchiam as lojas de ventiladores, televisores, liquidificadores e enfeites, com Papai Noel posando entre eletrodomésticos, numa cena que hoje parece saída de um álbum de família coletivo da cidade.
O fim dessa história, porém,
seguiu o roteiro duro das grandes transformações do varejo brasileiro. Em
novembro de 1995, após meses de negociação, a Casa Garson foi incorporada
pela Casas Bahia. O acordo, amplamente noticiado à época,
previa a absorção de cerca de US$ 48 milhões em dívidas com fornecedores. A
família Garson não recebeu pagamento direto pela venda das lojas, mas o negócio
redesenhou o mapa do varejo nacional e permitiu à Casas Bahia ultrapassar
concorrentes históricos, como o Ponto Frio, consolidando sua
entrada definitiva no mercado carioca.
Com o desaparecimento da marca
vermelha das fachadas, ficou um vazio simbólico difícil de medir. A Garson não
era apenas uma loja: era um marcador de tempo. Um lugar onde se comprava o
primeiro rádio, a primeira televisão, o primeiro toca-fitas; onde o consumo
vinha acompanhado de encantamento, música e pertencimento. Parte desse legado
sobrevive hoje na Garson Crédito, herdeira institucional do grupo, atuando no
setor financeiro, mas a Casa Garson, aquela das vitrines cheias e do som do
rádio, pertence definitivamente à memória urbana do Rio.
E talvez seja exatamente aí
que ela permaneça mais viva. Na lembrança de quem passou pela vitrine, ouviu um
cantor famoso, parcelou um sonho e saiu da loja acreditando que o futuro —
brilhante, elétrico e sonoro — já tinha começado.
Título, Imagens e Texto: Bruna Castro, Diário do Rio, 21-12-2025


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