quarta-feira, 24 de dezembro de 2025

[Aparecido rasga o verbo – Extra] Eram assim, os meus natais de outrora...

Aparecido Raimundo de Souza

HAVIA UM TEMPO, havia, ou melhor dito, houve um tempo em que o meu Natal não se media em presentes caros, mas em cheiros e sons. O cheiro do bolo de frutas que minha avó Martinha Maciel fazia, misturado ao perfume das flores improvisadas na mesa grande da sala. O som das risadas que ecoavam pela casa, misturadas ao estalo dos fogos de artifício que anunciavam à meia-noite.

Nesses meus natais de outrora, essa sala parecia pequena demais para tanta gente. A mamãe, meu pai, meus irmãos, os vizinhos e amigos da rua descalça... as cadeiras eram disputadas, e sempre alguém acabava sentado em um banquinho improvisado ou mesmo no braço do sofá coberto com um pano improvisado. Mas ninguém reclamava: o importante era o “estar junto”. A rádio vitrola na antiga Rádio São Paulo, tocava músicas natalinas antigas, e havia sempre uma criança tentando cantar mais alto que os adultos, como se quisesse provar que o “Natal era dela”.

O tempo parecia correr mais devagar. E, de fato, corria. A ansiedade pela chegada do Papai Noel se fazia quase palpável, e mesmo os adultos fingiam acreditar, só para manter viva a magia. A árvore, simples e cheia de enfeites no mesmo canto de sempre, (esses enfeites gastos e repetidos ano após ano), guardava histórias em cada detalhe: a estrela torta no topo, o sino que já não tocava, a bola vermelha com um risco que lembrava a queda de um ano qualquer.

Hoje, olhando para trás, hoje olhando para trás, percebo que aqueles natais se faziam feitos de simplicidade e afeto. De ternura. De maviosidade. Não havia luxo, mas, em contrapartida, pairava uma abundância de abraços. Não havia tecnologia, no lugar dela, eu via olhos atentos e sorrisos sinceros. Talvez seja isso que a minha memória insista em guardar: não os presentes, mas a presença. A presença que hoje se faz vazia, oca, e bem sei, não existe mais...

E assim, cada vez que o Natal se aproxima, como agora, no momento em que escrevo essa crônica, eu sinto que carrego comigo, aqui dentro do meu “escondido”, um bocadinho daqueles natais de outrora — carrego consciente como se fossem brasas que aquecem o coração, lembrando que o verdadeiro espírito natalino não está no que se compra, mas no que se compartilha, no que se dá em reciprocidade. Esse espírito nunca morre, nunca é enterrado.

Hoje, sem a presença de meu pai, sem a presença de minha mãe, ambos falecidos, sem a presença das minhas ex-mulheres, do meu filho e filhas e dos netos que cresceram e seguiram suas vidas, eu fiquei por aqui. Fiquei sozinho. Permaneci perdido num desvio da vida, estancado como se fosse uma locomotiva abandonada numa estação qualquer do passado.

Por conta, em repeteco da vida cansada, passada, do já vivido, pressinto que não há vozes chamando da cozinha, nem passos apressados às carreiras pelo corredor. Meu pai e minha mãe, sempre lembrando, infelizmente já se foram e ao partirem, levaram consigo a ternura dos natais de minha infância.

No mesmo tom, meu filho e minhas filhas cresceram, os netos que eles me deram seguiram seus próprios trilhos, e até os amores de outrora, kikikikikikikiki, até os amores de outrora ficaram em outras paradas dessa vida... desse tempo que não volta.

Eu, como era de se esperar, fiquei aqui, sozinho.  Permaneço como uma locomotiva esquecida numa estação deserta. O ferro frio, coberto de ferrugem, ainda guarda a memória dos dias em que partia cheia de energia, levando sonhos e passageiros. Hoje, porém, apenas o vento atravessa os vagões vazios, e o apito que antes anunciava chegadas e partidas, num repente sem volta, tudo se calou. Algo inexplicável, a tudo emudeceu...

E você, você, aí do outro lado, você, meu caro leitor e amigo que me lê agora. Saiba que apesar dos pesares, há algo curioso nesse abandono: a estação, mesmo deserta, ainda existe. E dentro dela, há ecos. Barulhos e sons de risadas, visões de abraços, um toque de ternura das músicas desafinadas cantadas em coro. Esses mimos são como brasas que resistem ao tempo, lembrando que os Natais, notadamente os que ficaram presos e adormecidos no “meu ontem”, não apenas esse em que eu vivo agora, mas também os de um tempo bom e maravilhoso, um tempo que se guarda dentro do que ainda resta do meu coração, do meu coração setenta e dois anos depois.

Talvez eu seja mesmo uma locomotiva parada. Me vejo assim, mas ainda carrego vagões cheios de lembranças. E quem sabe, em algum futuro, alguém (sei lá quem), volte a embarcar — nem que seja só para me trazer à memória, que mesmo no silêncio pesado, e denso, ainda há vida esperando para ser celebrada. Apesar dos pesares, ou melhor, apesar da solidão, das mágoas que afloram e notadamente das lágrimas que derramo, a todos os meus amigos e leitores, do que ainda resta de mim, FELIZ NATAL!

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, no Espírito Santo, 24-12-2025

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